A chuva, as águas, a vida e as pessoas são os sujeitos de uma história que Teresina insiste em invisibilizar. Dá uma sacada no texto do Luan Rusvell, sobre a resistência dos saberes das pessoas Atingidas Pelo Lagoas do Norte. Em um único som, eles e elas perguntam “Lagoas do Norte Pra Quem?”
Na Zona Norte de Teresina, o jeito de viver é outro, o fluxo é outro. Nessa região, o ritmo de vida segue um ritmo natural. Os que vivem naquele território herdaram dos primeiros povos indígenas que habitaram aquele pedaço de chão uma sensibilidade que lhes permite tirar proveito de tudo que a terra oferece. Hoje, os ribeirinhos usam dessa sabedoria para lidar com os problemas urbanos atuais. Para essas pessoas “a chuva é boa, os rios são a solução” e “risco é uma construção social”, palavras da admirável Maria Lúcia Oliveira, uma das resistentes da Av. Boa Esperança.
O processo de urbanização de Teresina foi algo tão violento, nos rumos da modernização, que acabou por alterar drasticamente todo o sistema de drenagem natural da nossa cidade. Enchente é algo que nós criamos, ela é produto do processo de impermeabilização da nossa terra ao longo do tempo. É uma resposta natural à essa maquete de concreto que erguemos para viver.
Na semana em que a Prefeitura Municipal anunciou mais 50 milhões de reais para as obras de drenagem das águas na zona leste e na zona norte, os moradores da zona norte passavam confiantes por mais um ciclo das águas. Isso porque a sabedoria dos mais velhos reconhece o sistema de drenagem natural do lugar onde vivem e bem sabem da importância das 11 lagoas da região. Quem vive lá explica que todas as lagoas da zona norte estão naturalmente interligadas e que uma equilibra a cheia da outra, não permitindo que tudo alague. Além das lagoas, explicam que as áreas de vazante – margem do rio onde se forma uma espécie de canal por onde as águas passam quando seu leito transborda – também servem para amortecer a cheia.
Quando o rio desce, essas vazantes se tornam uma terra fértil para plantar. Tudo que planta nasce: quiabo, abóbora, maxixe, cana, feijão. Tudo. Para as comunidades ribeirinhas do norte de Teresina, o período de chuvas não é algo ruim, não são tempos de calamidade e sofrimento. É somente parte do ciclo natural a que eles já estão acostumados: existe o tempo de plantar, o tempo de colher e o tempo de recuperação da terra, que é quando as águas sobem. Para essas pessoas, “a chuva é boa”.
Quando os primeiros povos chegaram por aqui, escolheram o meio dos rios para viver. De muito antes conheciam a riqueza que é viver em uma “mesopotâmia”: terras férteis, alimento em abundância, água farta, proteção natural. Quando a “civilização” chegou por aqui logo reconheceram o melhor local para instalar a nova capital do Piauhy: entre rios porque são vias de transporte e escoamento de mercadorias. “Os rios são a solução”.
“Risco é uma construção social”
A vida de quem vive à beira dos rios é outra. Sempre foi assim. Em Teresina existe duas formas de olhar para os rios, também sempre foi assim. A história conta que, ainda na primeira metade do século XIX, passando pelo médio Parnaíba, Conselheiro Saraiva e sua turma tomou fé de um povoado que existia às margens do rio Poty, nas proximidades do encontro com o rio Parnaíba. Após sua visita técnica ao povoado, a sentença foi dada: ao norte não se pode implantar uma cidade, muitas lagoas, terra argilosa, encontro de rios com períodos de cheias – a área de risco foi decretada!. Sendo assim, a 6 km ao sul dali, nas terras da chapada do corisco, foram demarcadas as terras da primeira capital planejada do Brasil.
155 anos depois da fundação da nova capital, em 2007, os planos urbanizadores chegaram ao norte de Teresina sob o nome de Programa Lagoas do Norte. 165 anos depois, os laudos técnicos do conselheiro parecem ainda valer. Hoje, os moradores que continuam vivendo nessa região são oficialmente classificados como “moradores de área de risco”.
Pois bem, as regras urbanas finalmente alcançaram a região entre rios e uma nova ordem foi assinada: quem sempre viveu ali não poderá mais – as remoções foram decretadas. O argumento é de que a população que reside nessa área sofre anualmente durante o período de chuvas, que suas casas alagam e que por isso devem ser removidas. Fora isso, os problemas de poluição ambiental, ocupação desordenada do espaço e os baixos índices de qualidade de vida somam-se à esses argumentos, os quais foram reforçados para conseguir o financiamento de US$176,39 milhões junto ao Banco Mundial para execução do projeto. Os problemas existem, são uma realidade. Uma realidade comum dos bairros que se constroem às margens da cidade “oficial”.
A violência do processo continua e, nessa etapa, segue os princípios de uma Política de Reassentamento Involuntário (parte do Programa Lagoas do Norte), como se os que habitam aquele lugar fossem os responsáveis pelos problemas.
Hoje, quem vive entre as lagoas do norte de Teresina resiste. Resiste, sobretudo à esse título tecnocrata que foi socialmente construído e que ainda permanece. O que permanece também sãos os rios, com toda sua fartura, e as lagoas. O ciclo de chuvas também se mantém, anualmente. Assim como também deve se manter as comunidades tradicionais que harmoniosamente vivem nesse território e que mantém viva uma relação que a cidade nos arrancou: a cidade de hoje vira as costas para os rios e encobre as suas lagoas.
Porém, algo mudou, e o que os dados técnicos não dizem é que a área de risco agora tem valor. Descobriram o privilégio que é morar em meio à rios e lagoas. As armas da resistência são muitas e a sabedoria do povo do norte é a principal delas. Dessa vez, quando a “civilização” mais uma vez chegou, a comunidade logo anunciou: “querem transformar a área de risco em área de ricos”.
Texto: Luan Rusvell
Fotos: Lucas Coelho Pereira. Autor da tese “Os reis do quiabo: meio ambiente, intervenções urbanísticas e constituição do lugar entre vazanteiros do médio Parnaíba em Teresina-Piauí “
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