Texto de Celso de Brito, professor de Antropologia – UFPI
Uma apresentação cultural organizada pelo SESC-PI e protagonizada por jovens artistas da cidade de Teresina tornou-se o termômetro a partir do qual se faz possível medir a relação entre o poder público e a juventude negra da periferia desta cidade.
Mediante o argumento de uma “denúncia anônima”, um grupo de policias militares armados e mascarados promoveram mais uma ação que levanta a questão sobre a preparação da força militarizada em nosso país e mesmo sobre a pertinência de sua existência: elas existem para “servir e proteger” a quem?
Historicamente, manifestações afro-brasileiras como a Capoeira, o Candomblé e o Samba foram criminalizadas e duramente perseguidas. Parece-me que o caso da nova “onda” Hip-Hop que tem animado as tardes e noites da periferia de Teresina-PI nos mostra que, após quase dois séculos, ainda vigora o imaginário analisado por Azevedo e registrado na expressão “Onda negra, medo branco” (2004).
Como atestam análises antropológicas recentes (Batista, 2018; Silva, 2018), além de uma opção de entretenimento, o Hip-Hop é um “movimento sócio-político” que atua junto a juventude negra e pobre de nosso país, um segmento negligenciado pelas políticas públicas e considerado, na grande parte dos casos, como agente da violência e não como vítima.
Agora não são mais os Haussas, os Malês e Nagôs que populam o imaginário presente nas instituições de segurança pública brasileiras, mas seus descendentes: os integrantes das diferentes Crews[1] de Hip-Hop e dos Grupos de RAP.
Em Teresina, o Hip-Hip começa na década de 1990 com o “Movimento Circuito Jovem” elaborado por Nilo Gomes, Jorge Canalito e Lima e o Grupo Flagrante, formando-se, assim, o que Silva (2018) chama de “novos griots”[2] ou MCs, cujas palavras rimadas expressam a realidade da periferia, ao mesmo tempo em que contribuem para reflexão sobre ela.
Dentre outras Crews e Grupos locais estão “Corja”, “Reação do Gueto” e “Original Bomber” e uma das vozes deste segmento é Marco Gabriel, um jovem negro estudante de Ciência Política (UFPI) e militante do Movimento Hip-Hop. Em um de seus RAPs ele descreve a função formativa destes novos griots: “Avisar a juventude que chegou a nossa hora, avisar o diretor que vamos ocupar a escola… Avisar a classe trabalhadora dos ataques, explicar as PLs e as PECs da maldade!”
Definitivamente, estas narrativas dos novos griots MCs refletem a permanência da desigualdade estrutural de nosso país, reiteradamente atualizada em diversas atuações do poder público, como na abordagem da PM na Casa do Hip Hop (situada no Parque Piauí, zona Sul de Teresina) ocorrida no último dia 08/08. Tratava-se de uma atividade cultural inserida na programação do SESC-PI. Os expectadores do show e os próprios artistas foram mantidos sob a mira de escopetas por cerca de 30 minutos! Tudo ocasionado por uma “denúncia anônima” sobre uso e tráfico de drogas e a presença de pessoas armadas no local. A forma agressiva da abordagem evidencia que quando se refere à conexão entre violência e população negra periférica, a denúncia adquire um alto grau de convicção (sem provas)! Nada mais natural para uma instituição de um pais ancorado num racismo sistêmico: lidar contra a violência (mesmo que suposta) usando violência!
Além de racismo, poderíamos colocar na conta de nosso histórico colonial a misoginia e o machismo ali presentes. Dentre as manifestações de violências ocorridas, podemos citar o episódio de um policial masculino que, ao tentar revistar uma mulher, encontrou resistência e reagiu com agressividade física e verbal contra ela.
Eu não tenho dúvidas de que o tratamento ofertado pelos policias envolvidos seria diferente, caso a denúncia apontasse para um bar da Av. Nossa Senhora, zona Leste de Teresina; eles provavelmente passariam por lá, averiguariam visualmente o local, consultariam o proprietário educadamente e, após validarem suas convicções (sem procura de provas) constatariam o óbvio neste quarto de racismo institucional: brancos de classe média não são violentos. Também não tenho dúvida de que Todo mundo com a mão na cabeça e na parede agora!, frase com a qual a polícia se anunciou na Casa do Hip-Hop, seja um “comando” inequivocamente utilizado segundo critérios social e racialmente definidos!
Agredir a juventude pobre e negra, por extensão sua cultura, parece ser um parâmetro legítimo de civilidade para a PM e, o que é pior, aceito por grande parte da sociedade brasileira. O conhecido lema “servir e proteger” considera este segmento da sociedade como sendo criminoso e violento: aquele de quem se deve ser protegido, nunca aquele que deve ser protegido. Pensar em “servir” a população negra e pobre… humm, imaginem? o avesso do avesso do avesso?… Seria demais para nossa suposta democracia racial, apesar de ser nada mais que fazer valer a nossa Constituição de 1988.
Na prática, pobres e negros no Brasil não são sujeitos de direito, outra reminiscência de nosso passado colonial, igualdade no Brasil só aparece no papel ou na contabilização dos votos nas eleições! Se pensarmos que este episódio da Casa do Hip-Hop aconteceu em pleno período eleitoral, um dos poucos, senão o único momento no qual a periferia e seus moradores adquirem algum valor de negociação político, a situação se torna ainda mais alarmante.
Seria de se esperar alguma retratação do poder público. Mas sendo pessimista quanto a tal possibilidade, gostaria, contudo, de expressar meu otimismo. O que me acalenta é saber que o velho ditado “o que não mata fortalece” é, neste caso, uma regra: acontecimentos como este promovem a união de forças entre os jovens da “quebrada”, organizando-se contra as consequências nefastas do medo branco da onda negra enraizado nas instituições brasileiras.
Como o novo griot MC, Marco Gabriel, deixa ecoar em seu RAP:
Deixa com o Hip-Hop a instrução da quebrada,
Organiza, ousa e direciona a nossa raiva.
A nossa união é de importância extrema,
Nós da periferia revoltados com o sistema.
Ligar toda a mãe que perdeu filho inocente
Na violência urbana de polícia contra a gente!
(Gabriel, 2017).
Que o Hip-Hop continue sendo uma ferramenta de organização política contra as diferentes faces do racismo incrustado em nossas instituições e que capoeiristas, candomblecistas, umbandistas, sambistas e regueiros de Teresina sigam este modelo.
Este é um momento propício para a elaboração de pautas e negociação junto aos candidatos piauienses.
Representantes das distintas linhagens da cultura afro-brasileira teresinense, uni-vos!!!
Referências Bibliográficas:
AZEVEDO, C. M. Marinho de. Onda Negra, Medo Branco. 2a Edição, São Paulo: Annablume, 2004.
FELIX, J. B. de Jesus. Hip Hop: Cultura e Política no Contexto Paulistano. Curitiba: Editora Appris, 2018.
GABRIEL, Marco. Periferia tá Invadindo (EP). Teresina: Calabouço Gangster, 2017.
SILVA, A. L. da. Nas ondas do rap: surfar na arte de narrar. Curitiba: Editora Appris, 2018.
[1] Forma como se chamam os Grupos de Hip-Hop.
[2] Porta-vozes da comunidade e do mundo para a comunidade em que vivem, uma espécie de versão atual dos griots tradicionais africanos, antigos contadores de histórias que tinham como objetivo narrar os acontecimentos passados e presentes da comunidade em que vivem para a comunidade em que vivem (Silva, 2018).
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