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A política na era do algorítimo

Por Natanael Alencar

As campanhas políticas agora contam com ferramentas mais poderosas para conquistar votos: perfis matemáticos sobre nossas personalidades. Eles são construídos a partir de quantidades massivas de informações que disponibilizamos online, coletivamente. Ou compreendemos esta nova configuração high tech da política ou seremos presas fáceis de sofisticadas campanhas de manipulação.

Em 2018, nós brasileiros testemunhamos como a internet foi uma peça chave nas eleições. Não necessariamente por bons motivos: disparo de notícias falsas espalhadas por robôs, discursos sectários e radicalizados, ou mesmo a prioridade do atual presidente que era (e ainda é) dada às anedóticas transmissões ao vivo do Facebook, ao invés do formato de debate. Todas essas estratégias não são de forma alguma inéditas, visto que a arena digital vem mostrando potencialidades decisivas há muito tempo – e isso ficou óbvio pelo menos desde a eleição do presidente norte-americano Barak Obama, em 2008. O que chama a atenção atualmente é o nível de coordenação de múltiplas variáveis e de matematificação a que chegamos. É um cenário que muda as dimensões da política e precisamos nos esforçar francamente a entendê-lo se quisermos nos preservar de novas modalidades de manipulação.

O marketing político, sobretudo em períodos eleitorais, sempre chamou a atenção pública – basta lembrarmos João Santana ou Duda Mendonça, este último um dos principais personagens do documentário Entreatos, dirigido por João Moreira Salles, sobre a eleição de Lula. As campanhas de convencimento, a alta alocação de recursos, o investimento nas regiões simbólicas do discurso, a sensibilização segmentada do eleitorado e mesmo a criação estética de uma aura carismática poderosa são de fato questões complexas e de difícil articulação. 

Sempre foi preciso uma quantidade considerável de dados para montar estratégias confiáveis, eficazes – como pesquisas focais de intenção de voto, por exemplo.  Hoje em dia os dados estão infinitamente mais abundantes, mais específicos, mais extensivos sobre diferentes regiões da vida do eleitor e vêm sendo utilizados para investidas bem mais agressivas nos grandes processos de tomada de decisão democrática, como eleições indiretas e referendos. A política entrou na era do big-data de forma irreversível – e isso tem tudo a ver com a dimensão online que nossas existências adquiriram. 

(Des) Informação como arma de guerra cultural

Escândalos recentes que trouxeram à tona o lado sombrio da inovação tecnológica estão geralmente atrelados a figuras-chaves que delataram todo o esquema. É exatamente o caso da Cambridge Analytica (CA) e de Christopher Wylie, programador de aparência e trajetória peculiares que revelou como funcionava o uso de dados de redes sociais, especialmente do Facebook, para conduzir o rumo de processos eleitorais ao redor do mundo (a campanha pelo Brexit e a eleição de Donald Trump são apenas alguns deles). Em outubro do ano passado, Wylie lançou um livro (Mindfuck: Inside Cambridge Analytica’s Plot to Break the World / “Confusão Mental: por dentro da trama da Cambridge Analytica para quebrar o mundo”, em tradução livre) no qual relata operações e objetivos da CA, ambos conectados com a ascensão e a organização da extrema direita global.

Para Wylie, a “Cambridge Analytica mostrou como nossas identidades e comportamentos se tornaram mercadorias no comércio de dados de alto risco”. A partir do acesso aos dados disponíveis em mais de 80 milhões de perfis de Facebook – quantidade massiva de informações sobre usuários, ou seja, Big Data – a CA definia micro alvos psicográficos, que é uma forma de agrupar pessoas por comportamentos, atitudes e disposições. Isso é mais específico do que utilizar dados demográficos (renda, sexo, região, idade, etc), pois lida com aspectos muito mais subjetivos – como, por exemplo, a tendência de alguém a ser mais ou menos sensível a discursos racistas. No contexto das eleições presidenciais norte-americanas e do Brexit, no Reino Unido, as pessoas alvo deste procedimento não eram vistas apenas como votantes, mas elas eram miradas a partir de suas personalidades, de seus perfis psicológicos.

De posse desses dados e definidos alguns parâmetros de perfis psicográficos específicos, eram criados algoritmos de modelo estatístico para fazer previsão de características desejadas. Assim, por exemplo, foi possível identificar pessoas mais vulneráveis (e por isso suscetíveis) a concordar com discursos radicais relacionados a pautas como imigração, moralismo ou segurança pública. A segunda grande etapa do trabalho da CA era então criar, embasada nos perfis psicológicos, mensagens específicas que potencializassem a filiação de cada perfil ao comportamento desejado. Definia-se o tom, o conteúdo, o tópico, quantas vezes a pessoa precisava ser tocada por aquele tipo de mensagem até que mudasse ou reforçasse a forma que pensa sobre algo. No fim das contas, o que a CA foi capaz de realizar foi uma condução, ou mesmo transformação, da percepção da realidade, funcionando como uma arma cultural da extrema direita apontada para mudança política. 

Ao provocar ou fortalecer certos sentimentos e ideias, alimentando certas narrativas, a natureza e o propósito da CA, para Wylie, envolveram manipulação mental e lavagem cerebral. Foi, além disso, um experimento antiético, pois envolveu a psicologia de todo um país sem o consentimento ou consciência das pessoas e no contexto de um processo democrático. Esse arsenal tecnológico voltado especificamente para, segundo o programador, “conquistar os corações e mentes dos eleitores” tem se tornado mais poderoso. 

Parte desta estratégia envolveu o design de narrativas – os projéteis dessa arma de guerra cultural. Com isso em mente, o ambiente das redes sociais contribuiu para a disseminação rápida de desinformações, especialmente em períodos eleitorais, quando a militância digital se engaja apaixonadamente – e empresas são contratadas para gerir bots que divulgam automaticamente informações fora de contexto ou manipuladas, mentiras, ironias ou meias verdades, em um esquema de produção social deliberada de ignorância.

Nesse sentido, as fake news ganharam um terreno fértil, explica a pesquisadora Marta Alencar, mestranda em Comunicação Social na Universidade Federal do Piauí. Para ela, a questão da checagem da veracidade de notícias (fact-check) é importante no confronto direto às limitações à democracia, ao fôlego autoritário e à alienação da população. Além disso ela indica que legislações mais detalhadas que impeçam a manipulação e comercialização de dados das pessoas por plataformas digitais (de redes sociais à farmácias) são parte de uma missão política contemporânea essencial. 

Risco para a Democracia

No ambiente virtual, nós não chegamos sequer a hesitar em compartilhar nossas informações pessoais. Corriqueiramente, deslizamos os dedos sobre a tela para receber e enviar mensagens que chegam por nossas redes sociais, onde passeamos distraídos e onde estamos vulneráveis, deixando um rastro volumoso de nossas vidas. Ali, o marketing digital explora nossas fragilidades estéticas, financeiras e mesmo existenciais para nos apresentar produtos, serviços e nos estimular com necessidades que, no fundo, não são reais. É um modelo de negócio baseado na extração da atenção humana – por isso todo um trabalho de design para construir plataformas viciantes, onde gastamos centenas de horas sem perceber.  

Tendo à mão os dados que tão inocentemente entregamos à conglomerados, praticamente impérios, como o Facebook (também detentor do Instagram e do WhatsApp), a CA esteve no centro de uma estratégia matematificada do campo político para angariar filiação a certas posições, tornando a disputa por votos muito mais complexa e sofisticada, dirigida por algoritmos capazes de arranjar um grande número de variáveis e de definir perfis psicográficos. Pelo vazamento, ainda que não de forma direta, de informações que abasteceram os bancos de dados da CA e empresas associadas, o Facebook foi recentemente condenado a pagar 500 mil libras (quase R$ 3 milhões de reais), a maior multa possível no Reino Unido por transgressão da lei de violação de dados. Tendo em vista a extensão do dano, é considerado um valor baixo, tanto que a empresa sequer recorreu.

Com o advento da internet, nossas vidas, nossos comportamentos e atitudes alimentam bancos de dados e passaram a ter um alto valor. Deixamos rastros em abundância em nossa existência online – e isso é crucial em uma economia baseada na informação e no conhecimento. Produtos que desejamos, lugares que visitamos, tornamos explícitos nossos gostos, intenções, afiliações, dúvidas (o Google sozinho é responsável por quase 90% do tráfico global de buscas), nossos afetos, nossos hábitos e costumes. Antoinette Revroy, pesquisadora belga, chama a atenção que ao passo que legamos docilmente uma imensa quantidade de dados sobre nossas atividades, existe em paralelo um imenso poder de cálculo, processamento e tratamento desses dados. Tal poder de modelizar, antecipar, prever e afetar comportamentos leva preocupações com questões de vigilância, manipulação e violações de privacidade a outros níveis.

“É frustrante o desdém que alguns entendidos da área da computação ou que tenham proximidade da área da tecnologia apresentam quanto ao problema da vigilância de dados. Nós não deveríamos subestimar esse tipo de ação. A gente está em um mundo novo, complexo, no qual o capitalismo passa do econômico ao universo dos dados. Ainda não damos o peso e o cuidado que deveríamos. Não é que a pessoa decida não usar mais redes sociais, mas que tenha noção do que está acontecendo com os dados dela. É muito complicado que uma empresa detenha dados de bilhões de pessoas – representa um poder político imenso. E essas informações podem ser vendida para os mais diversos fins. Por exemplo, através da mineração de dados, criam-se relações, criam-se padrões e tira-se valor disso para ser usado em marketing, propaganda”, explica Filipe Saraiva, professor da Faculdade de Computação, na Universidade Federal do Pará. Para ele, leis de proteção como o Marco Civil para Internet, fariam com que “certos tipos de dados fossem proibidos de ser utilizados por uma empresa”.

A clássica arena pública se transforma e onde antes haviam discursos emitidos para que todos ouvissem, avaliassem e debatessem, eles vêm formatados específica e matematicamente para cada tipo de audiência, ajustada a variações de personalidade – sussurros no ouvido como um canto de sereia ou um feitiço. Cada um ouve uma mensagem absolutamente diferente, alfaiatada para ter certo impacto, para calibrar e direcionar opiniões, vitaminando fissuras e fragmentando ainda mais a sociedade. 

Enxurradas de narrativas alternativas, ou pura e simples desinformações, desnortearam nosso terreno comum a tal ponto que precisamos constantemente checar o nível de realidade dos fatos em contraste com sua “realidade” virtual. Como ficou óbvio a partir das intervenções na arena pública efetuadas por agências como a Cambridge Analytica, as eleições perderam muito de sua integridade e a democracia encontrou novos riscos.

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