O SUS – Sistema Único de Saúde, apesar de todos os seus problemas, é nosso melhor exemplo de sistema coletivo integrado e, de fato, público e gratuito e que vem provando sua eficácia ao que se propõe: democratizar o acesso a saúde. No entanto, uma das lições da atual pandemia é que a eficácia do SUS depende de uma rede muito mais ampla de prevenção e combate, que inclui desde condições de higiene dentro de nossas casas, o acesso à água tratada e ao sistema de saneamento básico. Sobre isso, vínhamos discutindo como a cidade de Teresina acumula uma negligência histórica na garantia desses serviços básicos de saúde. Nesta cidade, existem ainda 45 mil teresinenses sem acesso à água tratada, 40 mil domicílios sem banheiro e a escandalosa marca de aproximadamente 76% dos domicílios sem atendimento à rede de esgoto. Leia aqui
Um outro serviços público essencial nessa rede de proteção à saúde é o transporte público. No entanto, desde o início da pandemia, com a suspensão do transporte coletivo, uma grande lacuna de prevenção ficou desamparada em Teresina, prejudicando diretamente os mais pobres. A cidade não teve capacidade nem de garantir que a população mais vulnerável chegasse aos postos de saúde, nem que a massa trabalhadora evitasse aglomerações. Segundo dados da Strans 20 mil passageiros continuaram demandando por transporte público durante a pandemia que, com a suspensão dos ônibus, se amontoaram nas conhecidas vans da cidade.
A importância do sistema de transporte coletivo no suporte ao SUS vai desde garantir o acesso das pessoas à postos de saúde, como também depende do transporte coletivo o combate a disseminação da doença. Para isso, tão importante como manter o serviço em funcionamento, é necessário garantir as medidas mínimas de saúde sanitária. A experiência de Teresina durante a pandemia do coronavírus nos permite dar o diagnóstico do quanto nossa saúde vai mal.
O sistema de transporte é um serviço tão essencial que é através dele que é possível se acessar aos demais serviços essenciais, tanto que, desde de 2015,o ‘transporte’ foi incluído como direito social no artigo 6º da Constituição Federal (art.6º). Em Teresina, a garantia desse direito é uma urgência de saúde pública
Nosso sistema entrou para a UTI quando os trabalhadores rodoviários do transporte público da capital anunciaram greve. A reivindicação principal foi por saúde, isso porque, em meio a pandemia e expostos a contaminação, os mil trabalhadores tiveram os planos de saúde cortados e ameaçados de demissão.¹ Foram mais de 50 dias sem transporte público em Teresina e sem nenhum subsídio da Prefeitura Municipal.
E quem precisa do transporte público?
Em Teresina, a falha operacional na rede de saúde que complementa o SUS foi quase um atestado de óbito aqueles e aquelas que sustentaram o isolamento da maioria da população e dependiam do transporte público, entre os quais operários de fábricas, lavadeiras, empregadas domésticas, frentistas, garis, atendentes do telemarketing (esses muitos dos quais estudantes que previamente tiveram sua meia passagem cancelada) e artistas. Em pesquisa realizada em abril, a Prefeitura Municipal de Teresina reconheceu quem são essas pessoas: 55% mulheres, 60% trabalhadores do setor privado e 30% fazem parte do grupo de risco do coronavírus.² A ausência de informações sobre a raça dessa população usuária denuncia o racismo institucional que contamina esse sistema.
Cientes dos resultados da pesquisa, o que fez o poder público para proteger essas pessoas?
Na última semana (dia 20 de agosto), por meio do Decreto Municipal 20.027, a Prefeitura de Teresina impôs mais uma restrição ao transporte público coletivo: agora os ônibus poderão circular apenas com passageiros sentados. No entanto a decisão veio desajustada com a disponibilidade da frota, que ainda se mantém escassa frente ao aumento da demanda pelo transporte público com a retomada da maioria dos serviços. Na prática, a realidade dos que mais necessitam se deslocar por Teresina se divide entre um cotidiano exposto a contaminação do precário transporte coletivo, no amparo da bicicleta para os maiores deslocamentos e na caminhada entre os trajetos menores. Uma outra parcela tem sido obrigada a aumentar suas despesas com os serviços de transporte por aplicativo.
Levando-se a sério a importância do transporte público em nosso sistema de proteção à saúde, diversas ações e políticas públicas devem ser implementadas a fim de ampliar as possibilidade de deslocamento seguro. Como exemplo, o aumento da frota de ônibus com efetiva fiscalização e controle de demanda dos usuários; implantação de ciclovias que conecte os principais pontos de demanda e aumento da área de calçadas.
Pela lógica do sistema de transporte público de Teresina, que se apresenta como mero transportador da mão-de-obra teresinense e não como um direito, o que houve foi a total privatização do transporte que deveria ser público. Aos empresários foi entregue a responsabilidade pela higienização dos veículos. O serviços dos trabalhadores do transporte público foi substituído pelo serviço ainda mais precário e agora terceirizado. Aos passageiros que antes compartilhavam o ônibus, agora se aglomeram também em vans, micro ônibus. O que confirmamos foi que não existe transporte nem público, nem coletivo em nossa cidade, que não há alternativas acessíveis para quem não pode pagar para se locomover e que, na verdade, construiu-se uma cidade onde apenas os 40% da população que possui automóvel (carro e moto) tem minimamente garantido o seu direito constitucional de ir e vir.
A cidade é um organismo vivo. Como no corpo humano, cujas artérias transportam vida, nosso sistema circulatório é vital para nossa sobrevivência enquanto seres coletivos e dependentes uns dos outros. Se é possível traçar um diagnóstico da cidade de Teresina nesses tempos de pandemia, podemos afirmar que, a partir do nosso sistema de mobilidade urbana, vivemos os males de um corpo sedentário, atrofiado pela imobilidade consequente de um sistema circulatório em crise. Digamos que a ‘hipertensão’ causada por seu histórico de autodepreciação expõe hoje um quadro clínico de uma cidade adoecida. No entanto, nosso prognóstico pode ser mais animador, crente na resistência imune do povo desta cidade. Tecnicamente, nossas possibilidade terapêuticas apontam para um futuro em que as pessoas possam ser menos dependentes do transporte individual e onde se possa caminhar, pedalar e viver mais em ar puro. É necessário a compreensão de que não estaremos bem enquanto as soluções forem individuais e que nossa atenção a saúde depende de um sistema muito mais amplo de cuidado, coletivo.
Referências:
¹ https://www.youtube.com/watch?v=DgPrXa4vgwc&feature=emb_logo
Por Luan Rusvell. Arquiteto Urbanista / Movimento Popular pelo Direito à Cidade
Foto: Kelson Fontinele. @cidadeobservada e Ocorre Diário.
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