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Acabou-se a brincadeira? O Teatro do Boi e a estrela da gente boieira na mira do Lagoas do Norte

A Zona Norte de Teresina, berço da cultura do bumba-meu-boi na cidade, hoje corre o risco de minguar a brincadeira.  O antropólogo e brincante do Boi Estrela Dalva, Lucas Coelho, traz este ensaio sobre os impactos causados à tradição do boi desde a implantação do Programa Lagoas do Norte.

Mourão enfeitado para a morte. Foto: Lourdes Coelho, 2009.

Quando comecei a brincar boi no final dos anos dois mil e vivi a cidade em festa em frente o Teatro do Matadouro, não imaginava que o universo boieiro teresinense (e o próprio Teatro) passariam por mudanças tão profundas. Lembro de chegar com outros brincantes no terreiro do mestre Pedro Barros ao final da tarde, de pegar nossas fardas, procurando as matracas, chiadeiras e pandeiros para subirmos no ônibus que nos levaria para o Encontro de Bois no Matadouro, o bairro. Apesar do amontoado de coisas na sede do Boi Estrela Dalva, cada um reconhecia seu instrumento – eventualmente tinha nossas iniciais riscadas à ferro ou pintadas de esmalte.

Miolo, vaqueiros, nego Chico e Catirina do Estrela Dalva. Foto: Chiquinho Pereira

Nem sempre havia vestimentas para todos (as), porque em dias de representação, como falava mestre Chagas, brincantes apareciam e (sobretudo!) reapareciam aos montes! Brincar no Encontro de  Bois, na rua, junto a outros bois e plateias era o momento mais esperado desde o início dos ensaios. Em uma arena minada pela presença dos contrários (leia-se: brincantes de grupos rivais), o espetáculo marcava publicamente nosso pertencimento ao  batalhão. Era ainda uma espécie de prova de fogo para brincantes egressos do Mirim Estrela do Matadouro – que pela primeira vez apareciam dançando em um “boi grande”.

Com a reforma do Teatro –  intervenção prevista no bojo de obras do Programa Lagoas do Norte e iniciada pouco depois do meu batizado no batalhão de seu Pedro – a oficina do Boi Mirim teve seu fim anunciado. Além da interrupção desta e outras atividades, as melhorias estruturais do espaço trouxeram consigo mudanças nos seus públicos. O antigo Matadouro Municipal, hoje Teatro do Boi, é  uma das evidências do processo de expulsão dos pobres e atração dos ricos para a zona norte da cidade.

Cordão de caboclas do Boi Mirim Estrela do Matadouro. Foto: Chiquinho Pereira, 2009.

O  Teatro do Boi desempenhava funções vitais na vida artístico-cultural teresinense.   Dançarinos e atores, hoje atuantes na cidade, iniciaram suas carreiras na condição de alunos das aulas de dança e artes cênicas oferecidos naquela instituição – ou mesmo utilizando o lugar  para ensaiar coreografias e outros espetáculos. Antes da reforma, o Teatro do boi era conhecido e reconhecido pelas oficinas de dança, teatro, música, corte e costura que ofertava. Em pesquisa realizada nos anos de 2015 e 2016, a antropóloga Nayra Sousa acompanhou as ressignificações do Teatro  por seus públicos, bem como vivências e narrativas sobre os usos deste espaço antes e após sua “revitalização”, inaugurada em 2012. Nas conversas com os usuários deste equipamento cultural, a pesquisadora ouvia com frequência que “o teatro do boi virou um luxo” (SOUSA, 2017).

A pompa do teatro do boi pós-reforma, com sua fachada refeita, palco  reconstituído e cadeiras novas reverteu-se em um custo oneroso demais aos usuários do, agora, “Teatro Novo”. Algumas oficinas ofertadas, por exemplo, passaram a exigir a compra de instrumentos e figurinos. Além disso, atividades de grande impacto afetivo e artístico-cultural nas comunidades do entorno – como aquelas relacionadas às aulas de percussão com materiais reciclados e o  Boi Mirim – saíram da programação oficial do Teatro (SOUSA, 2017). Não por acaso, a “comunidade do entorno” reside em bairros afetados pelo processo de expropriação territorial levado a cabo pelo Lagoas do Norte. Não por acaso também esta mesma comunidade é composta por gente majoritariamente negra e (ou) economicamente vulnerável.

O Boi Mirim Estrela do Matadouro, sob o comando  do mestre Chagas ( o Chico), atuava na formação de novas gerações de brincantes. No diálogo com um dos mais antigos amos de bumba-boi da cidade, a meninada tinha acesso privilegiado a técnicas e segredos da prática boieira. Preparados inicialmente pela mão do Chico, crianças e adolescentes partiam para outros grupos já experimentados nas batidas, passos e ritmos tidos como tradicionais. Esses meninos e meninas eram inclusive disputados por donos de boi, sobretudo da zona norte.

O início da reforma do Teatro (2010) marca o processo de desmantelamento do Boi Mirim, o que pode ter sido mais um fator importante para o declínio no número de bumba-bois ativos na cidade. Ao analisar a política cultural teresinense para o bumba-meu-boi, Chiquinho Pereira mapeou no ano de 2009 cerca de vinte batalhões. Destes, a maior parte se encontrava na zona norte. No Poty Velho, o Terror do Nordeste; no Mafrense, o Nosso Brasil; no São Joaquim, o Maioba do São Joaquim e o Terror das Campinas; na Vila São Francisco Norte, o Dominador do Sertão; no Parque Alvorada, o Estrela Dalva. Hoje em dia, o número de bois não passa de 1 e sequer o Estrela Dalva, um dos grupos mais tradicionais,  brincará esse ano. A ausência do Teatro do Boi como este importante lugar de formação e interlocução entre velhos e novos brincantes tem graves consequências no universo boieiro e seus públicos – que ainda esperam por investigações mais aprofundadas.

Boi Terror do Nordeste no Encontro de Bois. Foto: Chiquinho Pereira, 2009.

Todos os anos bois nascem e morrem.  Como bem explicou meu pai (PEREIRA, 2011), as forças atuantes nesse processo são inúmeras. Elas vão desde  conflitos familiares, questões de saúde dos mestres, sonhos, falta de recursos, demandas espirituais entre contrários até as complexas relações entre gestores e brincantes no âmbito da formulação e execução de políticas públicas para esse segmento. Pontuo isto para não me acusarem de estar criando uma relação causal única entre  reforma do Teatro e precarização de grupos de bumba-meu-boi em Teresina. Minha intenção foi mostrar, contudo, como um lugar outrora central nas dinâmicas do universo boieiro teresinense tem passado (não ileso) por mudanças na constituição e renovação de seus públicos desde que intervenções feitas via Programa Lagoas do Norte ocorreram. As  oficinas de dança, a despeito de tudo, são as únicas que se mantém com relativa autonomia dentro da instituição, a exemplo do grupo Corpo de Baile (SOUSA, 2017).

Destaco que  a reforma em si não é o problema. Ter acesso a um Teatro “novo”,  bonito e em boas condições estruturais não era apenas um desejo antigo dos moradores da região, mas também um direito resguardado constitucionalmente. O problema está quando a população negra e pobre residente em seu entorno tem suas possibilidades de acesso a este equipamento cultural reduzidas, seja porque não podem  pagar ou não mais se sentem contempladas pelas atividades oferecidas, seja porque foram escarradas para lugares cada vez mais distantes dos seus antigos lugares de vida e morada.

O que antes era  um espaço de acesso amplo e livre para as pessoas residentes em bairros circunvizinhos, tem se transformado em um  equipamento cultural descolado da realidade social onde está inserido, com o público das oficinas cada vez mais restrito e poucos espaços de interlocução com a comunidade. Em que pese as precariedades  de quem atua por dentro da gestão cultural em seus cotidianos institucionais, destaco que as transformações ocorridas no Teatro do Boi fazem parte de um processo de expropriação territorial perpetrado por parcerias público-privadas contra o povo da zona norte.  Tal qual novilho no curral, “ele tá jurado”! E dessa vez não tem festa, nem vinho.

 

Texto: Lucas Coelho Pereira é brincante do Boi Estrela Dalva, cientista social formado pela UFPI e doutorando em antropologia pela Universidade de Brasília.

 

 

 

REFERÊNCIAS

SOUSA, N. J. S. Por dentro do teatro do boi: etnografia dos públicos da cultura no complexo cultural Teatro do Boi em Teresina (PI). Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Teresina: Universidade Federal do Piauí, 2017.

PEREIRA, F. S. BUMBA, MEU BOI! (Cultura Popular e a Política de eventos em Teresina –PI: encontros e desencontros na arena Pública da festa). Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Política Públicas. Teresina: Universidade Federal do Piauí, 2011. Disponível em:

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