Em tempos paradoxais, a disputa entre defesa de direitos humanos e a negação dos mesmos nos deixa atônitos, porque afinal, não somos todos humanos? A alegoria pode parecer conveniente: E se lá de outro planeta os outros serem nos olharem confusos perguntando “Sério que os humanos estão se questionando sobre direitos humanos? Não são eles humanos, portanto, beneficiários dos direitos? Menino”. São essas reflexões que a professora Maria Sueli Rodrigues traz para fechar o Curso Ações Coletivas e relações de Poder: Reflexões nas cosmovisões Ubuntu, Ukama e Bem Viver”. O 1º Círculo de saberes: Pensar/Agir na Sociedade trouxe debates para (des) organização destes tempos.
Sueli destaca que a narrativa amplamente divulgada coloca os povos da África, Ásia “pobre” e América Latina e Caribe como povos não conscientes de si, logo são não-humanos. Para alçar o patamar de humano tornaram-se cristãos, mas passados mais de 500 anos a condição de humanidade ainda não chegou a todas as pessoas. Sueli destaca que só há 71 anos que dizemos que todas as pessoas são humanas.
Militante aguerrida dos direitos humanos, Sueli destaca que tanto a direita como a esquerda defendem os direitos humanos desde a Segunda Guerra Mundial, pois os países signatários da ONU são obrigados a positivar os direitos humanos na constituição como Direitos Fundamentais. Para ela, a diferença é que no contexto político-partidário, os partidos de direita se mantém em um posição de conservar as relações de poder e o de esquerda em uma posição de mudar essas relações. Aí você pode estar pensando “ah, então é tudo igual, direita e esquerda”. Calma, não se apresse! Você diria que o reflexo da lua em um rio é a própria lua? Então, bora lá.
Declaram universalmente os direitos humanos, mas não mudam a racionalidade
Sobre o contexto pós-guerra e afirmação dos direitos humanos, “O que acontece é que foi declarado que todos são humanos, mas isso não mudou nada porque não mudou a filosofia, não mudou a história, não mudou a sociologia, não mudou a política, continua do mesmo jeito, eles achando que não somos civilizados”, afirma Sueli estabelecendo a diferença prática entre direita e esquerda no tocante aos direitos humanos.
O notório é que, de um lado estão os discursos para manter as aparências e diplomacias diante da geopolítica mundial e, de outro, estão aqueles que em suas ações levam a cabo a necessidade de garantir a humanidade a todos, pondo fim, portanto, às desigualdades sociais.
Além disso, professora Sueli compreende que a extrema direita não defende Direitos Humanos e estão por toda a Europa e a Euroamérica. Prova disso está nos EUA representado pelo Trump que foi eleito com esse discurso e no Brasil do mesmo jeito com Bolsonaro. “Quando as pessoas negam os direitos humanos surge a necessidade de dizer e defendê-los todos os dias. Isso é uma tarefa de todos nós porque estamos enfrentando aquilo que aconteceu na II Guerra, ou seja, estamos enfrentando um movimento que considera que só alguns são humanos”, analisa.
“Quando as pessoas negam os direitos humanos surge a necessidade de dizer e defendê-los todos os dias. Isso é uma tarefa de todos nós porque estamos enfrentando aquilo que aconteceu na II Guerra, ou seja, estamos enfrentando um movimento que considera que só alguns são humanos”
Sueli traça também tarefas em um cenário onde os direitos coletivos são duramente atingidos. “Dessa forma, o primeiro passo na luta cotidiana é evitar que os direitos presentes do Art. 1 ao 17, mesmo com muitas mudanças, da Constituição sejam retirados. No entanto, isso é difícil porque temos uma profunda admiração pelos nossos direitos individuais, fazendo com que a nossa individualidade impeça a gente de pensar comunitariamente, o que reforça o avanço desses movimentos extremistas”.
Os artigos da constituição referido (1 ao 17) são aqueles que, no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, versam sobre os direitos coletivos e sociais, justamente uns dos que estão sendo mais atingidos atualmente.
Sobre as ausências que se fazem presenças: Comunidade Quilombola de Contente, Presente!
Nosso terceiro debatedor do círculo é Francisco Rodrigues, mais conhecido como Chicão, da comunidade quilombola de Contente (Sul do Piauí). Pouco antes de iniciar nossa aula recebemos a mensagem no grupo “Olá boa noite passando aqui pra avisar que o Chicão não vai poder participar da aula pq tá ajudando o motorista ali com um trator quebrado”. Mesmo assim, não fizemos por menos, trouxemos as memórias previamente deixadas por Chicão que se transformou em texto contando sobre sua história e memória coletiva em defesa do território ancestral contra os impactos da construção da Transnordestina.
Carla pontuou que a não participação do Chicão no debate devido a uma demanda que surgiu na comunidade é um exemplo do que representa as cosmovisões de resistência e compara ao Ukama. Para Carla Fernanda Lima, devemos começar um novo a partir da filosofia Kemecti (filosofia egípsia) e se nos deixarmos sentir, vamos coexistir e nos sentir pertencente a esse espaço. Segundo ela, “a filosofia ocidental diz ‘penso logo existo. Já a filosofia kemética diz ‘sentimos, logo coexistimos. No plural’”.
Não poderia existir alguém melhor para contribuir no nosso curso Ações Coletivas que Chicão, que ao ser perguntado o que é comunidade e como é sua organização responde “aqui na comunidade todo mundo é primo, pode–se dizer”, revelando a magia e a simplicidade do que é estar junto. “Aqui todo mundo é primo” pode revelar sobre Ukama, filosofia onde o princípio é partilhar do mesmo leite, por isso são iguais em humanidade.
Na comunidade Contente, a Transnordestina chegou arrasando espaços coletivos, dividindo os terrenos que tem pertencimento coletivo e ancestral “Aqui tem os proprietários que são os pais e os avós e os filhos e netos ficam trabalhando nas terras do avô”, diz. Algumas indenizações chegaram ao absurdo de valer de CINCO REAIS a seis mil reais. Casas caíram, famílias foram apartadas da água e, dentre os muitos prejuízos, os modos de vida foram duramente atacados.
Em relação aos impactos da transnordestina, Sueli, que realiza trabalho junto às comunidades, afirma que de fato, houveram implicações no cotidiano das famílias como a dificuldade ao acesso a água devido principalmente aos trilhos que foram construídos no meio da comunidade servindo como obstáculo físico que dificulta a circulação.
Para Sueli, o testemunho do Chicão é muito importante pois destaca o comunitarismo na resolução dos problemas coletivos, uma vez que as comunidades do entorno se juntaram para se auto-afirmar quilombola e defender seus territórios.
Teve muito mais debate neste último dia de curso, ainda falamos sobre a economia da China, sobre a questão do romantismo no futuro, sobre a teoria do decrescimento e outros temas. Além disso, a aula contou com exercício de relaxamento e de imaginação guiado pelo performer Fabrício Andrade. E pra deixar a roda mais recheada de afetos teve sarau virtual. Se está curioso para saber mais, acesse a aula no nosso canal do youtube no link abaixo.
Reportagem colaborativa: por Sarah F. Santos e Gustavo Leite
Edição de vídeo: Ronald Moura
Comments (1)
O saber semear de Sueli Rodrigues: dois anos de sua passagem e a presença coletiva que resistesays:
27 de julho de 2024 at 4:40 PM[…] também:Ação política e Direitos Humanos: “Só há 71 anos que dizemos que todas as pessoas são humana…O que é político? Você faz política? Maria Sueli convida a tomarmos o protagonismo de nossas […]