Entre os dias 5 e 8 de junho de 2022 aconteceu o 1º Encontro da Rede de Comunidades Impactadas por Instituições Financeiras Internacionais – IFIs . A proposta desta rede, que existe desde 2020, é unificar a luta das comunidades da América Latina impactadas por Bancos Internacionais e buscar estratégias de resistência e reparação contra os danos causados.
Neste primeiro encontro estiveram presentes comunidades impactadas do Chile, Paraguai, Guatemala e Colômbia. Do Brasil, representantes de 3 regiões estiveram presentes: São José dos Campos/SP, Simões/PI e Teresina/PI, cidades que hoje são exemplos dos prejuízos causados pelo capital internacional, mas também inspirações de organização e luta comunitária.
Uma outra finalidade da Rede é criar o Sistema de Alerta Prévio, um mecanismo que tem por objetivo avisar com antecedência as comunidades que serão impactadas por projetos financiados por Instituições Financeiras Internacionais.
Comunidade Boa Esperança apresenta sua metodologia para expulsão do Banco Mundial de seu território
Nos início dos anos 2000 iniciou-se os acordos entre a Prefeitura Municipal de Teresina e o Banco Mundial para financiamento do Programa Lagoas do Norte. Um megaprojeto de urbanização do território de 11 lagoas da zona norte e que abrange 13 bairros da região. De acordo com o memorial justificativo do plano urbanístico desenvolvido para Programa o objetivo seria transformar a região em um “parque habitado, com enorme potencial para ativar a economia da região e se consolidar não apenas como um destino para negócios e tratamento hospitalar, mas também como destino turístico”. Para que isso se tornasse realidade seria necessário também a remoção de 3.200 famílias de suas.
O Banco Mundial topou o empréstimo e, sem consulta à população que vive na região, o contrato de aproximadamente US$ 190 milhões de dólares (em torno de 600 milhões de reais em valores atuais) foi assinado. As obras iniciaram por volta de 2008 e, até 2014, pelo menos 1.600 famílias já haviam sido retiradas de suas casas.
Foi em 2014 também que os rumos dessa história mudaram. Nesse ano a Prefeitura de Teresina iniciou o selamento das casas da Boa Esperança e anunciou a remoção das mais de 200 famílias que vivem na comunidade. A justificativa? as obras de duplicação da av. Boa Esperança, que deveria passar por cima das casas, das vidas e das memórias daquela comunidade. De preferência sem deixar vestígios.
A partir daí deu-se início as estratégias de resistência comunitária para defender suas casas e seu território. Suas metodologias, todas fundamentadas nos métodos de educação popular de Paulo Freire, envolveram, entre outras, atividades culturais, oficinas, inúmeras manifestações e a articulação de uma ampla rede de apoio, incluindo o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Piauí. Cada passo era decidido a partir das assembleias comunitárias, organizadas pela associação Centro de Defesa Ferreira de Sousa. Maria Lúcia de Oliveira Sousa, vicepresidenta do Centro de Defesa e eu que escrevo esse texto, Luan Rusvell, contribuindo como assessor popular, participamos do Encontro.
Sul do Piauí e as promessas do ‘desenvolvimento sustentável’
Que o Piauí é uma terra cheia de riquezas nós já sabemos. No entanto parece que o capital internacional também se atentou para isso. Por esse motivo, além da Boa Esperança, uma outra comunidade piauiense foi convidada a participar do encontro da Rede. Trata-se da comunidade remanescente quilombola Serra dos Rafaeis, localizada no município de Simões, sul do estado.
Por lá, os impactos chegaram por meio da instalação de um dos maiores parques de energia eólica do Brasil, construído no território da Chapada do Araripe e que abrange, além de Simões, os municípios de Marcolândia/PI e Araripina/PE. Em 2015 foi inaugurada a primeira etapa do Projeto, onde foram investidos 1,1 bilhão do total de 5,5 bilhões previsto para esta fase. Em julho de 2021 o Governo do Piauí assinou concessão para investimento de mais 15 bilhões de reais para ampliação do projeto. Entre os financiadores estão o Banco Nacional do Desenvolvimento – BNDES e outras diversas instituições financeiras privadas internacionais, como o Banco Itaú e o Banco BTG Pactual.
Seu José Antônio Nonato, conhecido por Zezito, representante do Quilombo Serra dos Rafaeis não sabia o montante dos investimentos que chegavam ao seu território, assim como, há anos atrás, só soube da construção do parque eólico quando as obras já estavam iniciando. O que ele conhece bem, são os impactos que vem sentindo na pele que incluem conflitos fundiários, devastação de matas nativas e quase nenhuma melhoria na qualidade de vida local, diferente as promessas de ‘desenvolvimento sustentável’ e em ‘equilíbrio com a natureza’ que eram propagandeadas.
O Parque Eólico é um dos empreendimento da empresa Casa dos Ventos e tem capacidade para produzir energia para 400 mil residências, no entanto nenhum megawhatts fica em Simões. “
Nós continuamos pagando por uma energia cara e só ficamos com os prejuízos”
denuncia seu Zezito em relato sobre os impactos em sua comunidade
Chile, Paraguai, Colômbia, Guatemala e Brasil firmam aliança contra bancos estrangeiros
Se, a princípio, as diferenças culturais e o distanciamento geográfico entre essas comunidades pareciam uma barreira, a história de cada uma delas se unifica nas narrativas de luta contra o que chamam de “projeto de colonização contemporânea da América Latina”, cujo financiamento internacional são atravessados por instituições como o Banco Mundial, Banco Interamericado de Desenvolvimento e Banco de Desenvolvimento da China.
Conheça um pouco mais sobre essas comunidades.
São José dos Campos, interior de São Paulo, foi escolhida como sede deste primeiro encontro pela emblemática luta que diversas comunidades locais fazem contra os investimentos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) desde 2006. Jardim Uirá, Berta Flores e Jardim Santa Cruz são algumas das comunidades, articuladas por meio da Associação de Favelas de São José dos Campos, impactadas por projetos de urbanização e mobilidade urbana que já removeram dezenas de famílias de suas casas.
Outra comunidades em ameaça de desterritorialização é o Banhado, comunidade centenária remanescente quilombola onde vivem 460 famílias em uma região de vale com imensa riqueza de água e que utilizam para a moradia e produção de alimentos e criação de animais. Desde que foram selados para remoção em 2010, o Movimento Banhado Resiste tem peitado o projeto da Prefeitura Municipal que pretende construir uma super via de trânsito no local onde hoje estão as casas das pessoas. Em 2016 uma frente comunitária levou suas denúncias ao Mecanismo Independente de Consulta e Investigação (MICI) do BID, que reconheceu as irregularidades dos projetos e seus impactos, cancelando parte do financiamento de mais de R$ 300 milhões que tinha acertado com o município.
Hoje, mesmo a comunidade do Banhado tendo conseguido diversas vitórias como a instituição do Parque Natural Municipal do Banhado, a demarcação do território com Zona Especial de Interesse Social – ZEIS e a elaboração, junto com a USP, do seu Plano Popular de Urbanização e Regularização Fundiária, a Prefeitura de São José dos Campos garante a execução do projeto e hoje busca novos financiamentos.
Chile
Do Chile esteve presente o No Alto Maipo, articulação comunitária que luta contra a construção de usinas hidroelétricas na região dos andes chilenos e que afetará todas as comunidades que vivem às margens do rio Maipo, próximo a Santiago, capital do Chile.
Veronica Ahumada vive em uma localidade com aproximadamente 10 mil habitantes. Ela conta que ficou sabendo sobre a construção da hidrelétrica através de uma amigo que trabalha na prefeitura local e desde então começou a trajetória de mobilizar a sua e outras comunidades contra a execução das obras. Sem nenhuma consulta pública e com financiamento do BID, as obras começaram do dia pra noite.
“Quando os primeiros canteiros de obras foram instalados, cerca de 2 mil homens se mudaram para meu povoado e de repente tudo mudou”.
Veronika Ahumada
Veronika denuncia que o principal impacto foi sobre as mulheres. Com a chegada dos homens aumentaram também os casos de assédio e abuso sexual.
Também do Chile são as Mulheres Changas, descendentes dos povos Changos – comunidade tradicional que habita a costa chilena e viviam originalmente de forma nômade a partir da cata de mariscos. Como estratégia de resistência contra as ameaças ao seu território, região de Tocopilla, esse grupo de pescadoras artesanais passaram a reivindicar sua ancestralidade contra o extrativismo exploratório causado por grandes empresas de criação de mariscos e mineradoras.
Elas denunciam que essas empresas tem represado e poluído as águas e vem limitando o território onde elas podem trabalhar. Hoje organizadas através da associação das Muheres Changas de Tocopilla fazem frente também a cultura machista de sua região que afeta seus modos de vida.
Guatemala
Na Guatemala a luta se mobiliza contra os impactos causados pela construção de redes de transmissão de energia elétrica. São 359 comunidades afetadas em todo o país, hoje organizadas em torno da Coordenação de Comunidades Afetadas por TRECSA (Transportadora de Energia de Centroamérica S.A.)
No caso da Guatemala, os projetos são financiados pela China através do Banco de Desenvolvimento da China – CDB e com perspectivas de recurso do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. As comunidades guatemaltecas reclamam os danos causados em seus territórios como a destruição de florestas, lagoas e fontes de água e a perseguição e criminalização do movimento comunitário. Além disso, denunciam sobre a privatização e controle da energia elétrica do país através de multinacionais e dos esquemas de corrupção que envolvem a execução do projeto.
As investigações do Ministério Público da Guatemala apontam para a inconstitucionalidade do projeto TRECSA, acordado pelo Governo Federal em 2013, principalmente pela ausência de consultas públicas e pela violação de Direitos Humanos. Atualmente o projeto segue avançando, assim como também avançam as lutas comunitárias em defesa de seus territórios.
Colômbia
Águas para vida, não para a morte! é esse o grito compartilhado pelo movimento colombiano de atingidos por barragens, organizado em torno do Movimento Rios Vivos – organização que reúne diversas associações comunitárias de mulheres, jovens, barqueiros, pescadores, transportadores, empregadas domésticas e todos os afetados pelo megaprojeto da hidrelétrica Hidroituando, uma das maiores obras de infraestrutura da história da Colômbia, em construção desde 2010 e que atinge 12 municípios do distrito de Antioquia. O projeto é executado a partir de um empréstimo de 900 milhões de dólares do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID.
Apesar do movimento ter ganhado força na luta contra os impactos de Hidroituando, os conflitos pela defesa do território às margens do rio Cauca é secular, principalmente por conta da exploração colonizadora de minérios. Somente para a construção da hidrelétrica 400 famílias foram removidas de suas casas; o movimento também denuncia a perseguição e assassinato de lideranças e ativistas. Segundo dados apresentados pelos Rios Vivos, no território do rio Cauca houve 62 massacres desde a década de 1980, com 372 pessoas assassinadas e até 643 desaparecidas até hoje.
“Nos acostumados com os corpos de nossos companheiros descendo pelo rio. Então nós os retirávamos das águas e fazíamos sua cova ali mesmo, às margens do Cauca”
Liderança do Movimento Rios Vivos
Entre os pedidos de mitigação dos impactos causados pelas obras de Hidroituando, o movimento pede respeito a seus mortos, alertando que o alagamento de parte do território afetou seus cemitérios comunitários.
Em 2018 o caso colombiano foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH dado a gravidade das violações aos Direitos Humanos.
Paraguai
Vitorino, 66 anos, vive em uma província em uma área rural do Paraguai. Ele conta que levava uma vida tranquila até a notícia da instalação da primeira fábrica de celulose do Paraguai, que será construída no território onde vive. O anúncio foi acompanhado do alarmante aumento dos conflitos pela terra que fez do filho de Vitorino uma das vítimas, assassinado em 2020.
Segundo Vitorino, todos os moradores locais passaram a sofrer constantes assédios para a venda de suas terras, além da prática ilegal de grilagem. A Paracel, multinacional responsável pelo projeto, atualmente já acumula 189 mil hectares de terras na localidade, segundo dados apresentados pela empresa. O megaprojeto envolve ainda a monocultura de 100 mil hectares de eucalipto e a construção de infraestruturas para escoamento da produção, com investimentos totais de 3,5 bilhões de dólares, em parte financiados pelo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento.
“Se as ameaças são as mesmas por que então lutamos separadas?”
Ao fim do encontro, a certeza é de que a América Latina é um só território e de que existe um projeto de exploração em curso há mais de 500 anos. Por isso, uma das questões que a Rede se propõe a superar é: “se as ameaças são as mesmas, por que então lutamos separadas?”
Texto: Luan Rusvell
Imagens: Rede de Comunidades Impactadas por IFI´s
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