
Por Coletivo Antônia Flor
Tem sido propagado, especialmente pelas últimas gestões do Governo do Estado do Piauí – mas não só – a narrativa de que o Piauí virou referência nacional em regularização fundiária, incluindo de povos e comunidades tradicionais. Para além dos números exibidos em propagandas institucionais, é preciso se perguntar o que significa a política de regularização fundiária dentro da história de violações de direitos, expropriação de territórios de povos indígenas e negros que funda o Estado do Piauí.
Dia 01 de dezembro é considerado o Dia Estadual de Luta pela Reforma Agrária no Piauí. A data rememora o assassinato de Antônia Flor, liderança rural, da comunidade de gameleira, de Piripiri. A Luta de Antônia Flor incomodava os expropriadores e grileiros, que sempre se intitularam donos, e seus representantes. A covardia não poderia ter sido mais representativa: Antônia Flor morreu no seu território, na sua casa. A invasão colonial continuava à espreita.
O Dia Estadual de Luta pela Reforma Agrária é preciso ser relembrado, não apenas em memória à Antônia Flor e todas/os aquelas/es que dedicaram sua vida na luta por terra e território no Piauí, mas por resgatar a pauta da Reforma Agrária no Estado. Se, por um lado, alcançamos números impressionantes em relação à regularização fundiária, a pauta da Reforma Agrária tem ficado de lado.
É importante reforçar o sentido da Reforma Agrária e o que a faz ser diferente de regularização fundiária. Primeiramente, entendemos como necessário afirmarmos que nenhum território tradicional, seja no Piauí, ou no país, pode ser considerado “irregular” e que a política voltada para estes seja a de uma “regularização”. Não se trata apenas de uma discussão de palavras: o Estado, seja representado por Governos Estaduais ou Federais, tem uma dívida com o povo negro, indígena e pobre piauiense, o reconhecimento de seus territórios é um direito das comunidades e um dever do Estado.

Se a ideia é apontar irregularidades, podemos apontar a irregularidade do Estado Brasileiro que em sua Constituição de 1988 determinava a conclusão de demarcação de todas as terras indígenas até 1993, e nunca o fez. Podemos apontar, também, a irregularidade do Estado do Piauí que nunca cumpriu sua Constituição Estadual de 1989, que determinava a revisão de todas as alienações (vendas) de terras públicas a partir de 1970. Essas revisões, se feitas de maneira correta, seriam (e ainda são) fundamentais para atacar as irregularidades, as ilegalidades das incorporações de várias terras ao longo do Estado – que implicavam, quase sempre, em desterritorialização e expropriação de territórios tradicionais.
Exemplos de irregularidades não faltam, e sabemos que o nome irregular não dá conta a todos esses processos de violência e expropriação. A irregularidade fundiária, no Piauí, começa e se reproduz pelo Estado. Irregularidade esta, da qual as comunidades são vítimas, como fora a comunidade de Gameleira, terra em que Antônia Flor foi alvejada.
Em 2022, o Coletivo Antônia Flor promoveu o debate “De quem é a Terra?”, onde questionamos a destinação da arrecadação de terras devolutas (terras públicas ainda não identificadas ou demarcadas) feitas pelo Estado do Piauí nos últimos anos. 02 anos depois, o Estado continua anunciando arrecadações recordes de terras públicas sem apresentar, de forma detalhada, o destino destas terras.
Pela Constituição Federal de 1988 a destinação de terras públicas deve estar diretamente ligada à política de Reforma Agrária. A reforma agrária é mais do que uma distribuição de títulos de terra, ela é uma política para o campo brasileiro, que deve envolver respeito aos direitos das comunidades, dos trabalhadores rurais e do meio ambiente. As terras públicas, por determinação constitucional, devem atender essas funções.
No debate de 2022, movimentos, comunidades e organizações populares piauienses apontavam o perigo que é uma política de “regularização fundiária” que não enfrente as ilegalidades, as grilagens e as violações aos territórios e ao meio ambiente. Entre os relatos, comunidades que estavam, à época em procedimentos de regularização fundiária, destacavam conflitos com grileiros e o agronegócio (sojeiros), que se dava não apenas pelo espaço da terra em si, mas pela forma de produzir do agronegócio que afeta diretamente à vida daqueles territórios, como o uso nocivo de agrotóxicos na região.
O cenário apresentado era de comunidades que conquistariam a propagada “regularização fundiária”, mas estariam com seus territórios precarizados ou mesmo impedidos de ter vida em dignidade. Se uma das coisas que identifica uma comunidade originária ou tradicional é sua relação com a terra, seu modo de viver, receber um título, por um lado, mas presenciar as águas de sua comunidade se tornando tóxica não garantiu o direito da comunidade de estar em seu território.
É preciso louvar a ação do Governo do Estado que concedeu títulos de regularização fundiária para 165 comunidades tradicionais. Mas também é preciso lembrar que o Piauí tem liderado, na região Nordeste, a ocorrência de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Não se questiona a importância do aumento de territórios quilombolas titulados pelo Estado. Mas apontamos a existência de, pelo menos, 33 territórios atingidos por conflitos desiguais no campo, que ameaçam a vida e a existência das comunidades. Entende-se os avanços legais para viabilização de titulação de territórios, mas repudia-se as alterações legais e a reforma inconstitucional que legaliza a grilagem no Piauí.
A Luta por Reforma Agrária, empunhada por Antônia Flor, passava por mais do que uma reivindicação à um “pedaço de terra”, mas por uma terra digna, saudável e de tamanho suficiente para as famílias viverem do campo. Ao passo que o INTERPI anuncia 03 milhões de hectares arrecadados, as regularizações fundiárias anunciadas apontam que as comunidades estão recebendo títulos de minifúndio – o contrário que aponta nossa Constituição. Como exemplo, apontamos regularizações feitas pelo Instituto para comunidades tradicionais com área até 30 vezes menor que o mínimo para uma família viver na região, segundo as normas.
Questionar para onde vai a destinação de milhões de hectares de terras arrecadados pelo Estado, no Piauí, é uma das formas de se manter viva a memória de Antônia Flor, a Reforma Agrária, e respeitar o direito das comunidades empobrecidas, das/dos trabalhadoras/es rurais, da população negra, indígena e tradicional – por entendermos que elas não precisam de “regularização”, mas sim de reparação!

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