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APAGAMENTO ÉTNICO E A (RE)EXISTÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS DO PIAUÍ

O Piauí é um dos poucos, senão o único Estado do nordeste onde a colonização se inicia e tem sua força e foco pelo interior e não pelo litoral, impulsionada pela expansão das fazendas de gado e das expedições jesuítas. Não à toa a exemplo de sua primeira capital, a atual, Teresina, capital planejada, é a única do nordeste que não se localiza no litoral. Tendo nascido no interior desse Estado, lembro de aprendermos cedo na escola que fomos a primeira unidade da federação, e uma das únicas, onde a colonização teria dizimado todas as comunidades indígenas, significando que não apenas nenhuma comunidade indígena existiria mais, como também suas culturas estariam perdidas. Este imaginário formou não apenas a minha identidade como a de muitos de meus conterrâneos, e é com ele que venho dialogar neste texto.

Embora a inexistência de povos indígenas no Piauí não seja uma realidade empírica – os dados disponibilizados pelo ultimo censo do IBGE (2010) apontam a existência de aproximadamente 3 mil indígenas no Estado(autodeclarados) – esta falsa percepção reflete sobre nós um certo imaginário populacional no qual os indígenas muito dificilmente fazem parte. Esse imaginário, construído não apenas pelos livros didáticos de história do Piauí, mas também por todo o conjunto da indústria cultural, nos força a autopercepção de uma população majoritariamente diluída em categorias amorfas, tradicionalmente mobilizadas no Brasil, como “pardos”.

Atual governador do Piauí, Wellington Dias, e lideranças indígenas. Foto: divulgação

Embora o relatório de estudos sociodemográficos para cidades com presença de comunidades remanescentes de quilombos, disponibilizado pelo IBGE(2007) , referente ao ano 2000,já apontasse o Piauí como um dos menores índices de autodeclarados brancos(26,2%), no contexto do nordeste, ao lado do Maranhão(26,7%) e Bahia(25.2%), é a categoria parda que abocanhava a grande maioria das autodeclarações, com 64,6%. Os autodeclarados indígenas no Estado representavam, ao lado do Rio Grande do Norte, o menor índice de todo o Nordeste (0,1%), ambos.

De lá para cá é notório o esforço do movimento negro, por exemplo, na reivindicação de maior reconhecimento social e de políticas públicas voltadas à valorização e visibilidade da população negra, embora ainda cercada de inúmeros desafios, tais esforços resultam paulatinamente na autoafirmação da identidade negra como pertencimento político e social que pode ser percebido, por exemplo, no deslocamento dos percentuais de autodeclaração com crescimento, a nível nacional, de 13,6% entre os censos de 2000 e 2010. Para Silva (2013) em análise feita para o IPEA, esse crescimento está atrelado a um aumento da identificação racial, e não a um incremento das taxas de fecundidade.

No entanto, a mesma tendência não pode ser facilmente observada quando se trata das populações indígenas no Estado, que permanecem percentualmente em termos autodeclaratórios na margem de (0%) em 2010. Ainda falamos muito pouco sobre quem somos, e a menos de um ano para a realização do próximo censo demográfico, este é um indicador importante para levarmos em conta.

Esse imaginário de uma “não população” indígena se torna, por si só, uma ferramenta extremamente poderosa de silenciamento das reivindicações destes povos diante de suas condições de habitação e vida. Contribui para o apagamento da história de resistência dessas populações seculares, que resistem bravamente diante da realidade de se localizarem em um dos únicos Estados do país sem áreas indígenas demarcadas (além do PI apenas o RN e o DF não possuem demarcação de terras indígenas), e na perpetuação da ausência de políticas públicas efetivas de reconhecimento, proteção e valorização. Este conjunto de fatores não é característico apenas do Piauí, e já foram alvo de estudos clássicos da sociologia nacional, que identificou no imaginário da falsa democracia racial brasileira um dos principais pilares de perpetuação do racismo estrutural que ainda impera entre nós.

Outra consequência desse imaginário de ausência indígena é a forma como ele consegue dissociar as categorias simbólicas e práticas usadas comumente para expressar e enaltecer um “modo piauiense de ser”. Ou seja, aqueles atos, práticas e expressões cotidianas que reivindicamos como características de um tipo próprio e singular do indivíduo piauiense, (e comum a todo grupo cultural) expressas em todas as áreas: na cultura; na culinária; na moda; na linguística como o sotaque, ou na formação das palavras regionais; em práticas corriqueiras e no próprio nome do Estado (piau-i = o rio dos piaus, ou rio com muitos piaus, do Tupi Guarani).

Todos estes exemplos, e muitos outros, são identificados no cotidiano do Estado como marcadores de uma regionalidade que nos distingue culturalmente de outras populações regionais. O “modo piauiense de ser” é, também, e profundamente, um modo indígena de ser, pois os traços do regionalismo, da linguística, do comportamento corporal, e de tantas outras feições regionais, são frutos de uma transmissão cultural marcada por aqueles que habitavam este território e pelo contato com outros povos e tradições culturais que a este território chegaram.

Outra característica importante do preconceito étnico/racial operacionalizado neste caso é a sua transversalidade, expressa na perversa capacidade com que o preconceito e a descriminação furam até mesmo as fronteiras de classe. O exemplo mais simbólico deste fenômeno vêm do próprio governador do Estado, Wellington Dias, que, identificado como indígena é alvo constante de ataques raciais. Quantos piauienses podem dizer que nunca se depararam nas redes sociais com expressões racistas em referência ao governador, tais como “esse indiozinho”; e inúmeras outras que pejorativamente recorrem à sua fisionomia indígena para desqualificá-lo?

A questão mais inusitada vem, no entanto, não apenas da descriminação por ele sofrida, mas da contradição a que ela expõe este imaginário da não existência de indígenas no Estado. Eles não apenas existem como, também, estão no poder e em todas as áreas da sociedade. Neste sentido, ao negar-se o pertencimento cultural indígena do Estado opera-se não apenas um profundo apagamento étnico, como operacionaliza-se, como afirmei anteriormente, uma sofisticada dissociação das categorias de representações práticas e simbólicas, no sentido Bourdiesiano do termo.

Mas o exemplo de Wellington Dias é emblemático não apenas por expressar a não fronteira de classe relativa ao preconceito racial, ou a contradição fundamental entre o imaginário da “não população” indígena de um lado, e a identificação fenotípica do governador com um indígena do outro. Afinal, o fenótipo de Wellington Dias é o mesmo de grande parte da população do Piauí, principalmente as populações sertanejas. Isso nos abre um importante campo para debate não apenas sobre o que nos define enquanto povo, mas, principalmente, que categorias, que formas de definição estamos aceitando historicamente como nossa.

O movimento negro tem ensinado que o apagamento só se reverte à partir da sua exata oposição, ou seja, da afirmação política da origem e, principalmente, neste caso, do presente indígena do Estado e sua população. Neste tocante, e por fim, o próprio governo estadual poderia ser muito mais contributivo do que tem sido, dando visibilidade aos movimentos indígenas auto-organizados e sendo um executor de suas reivindicações. Por tudo isso, e no contexto de recentes e crescentes ataques aos povos originários, é necessário afirmar que no Piauí não são só 3 mil, são 3 milhões.

Notas:

1 Disponível em: <http://indigenas.ibge.gov.br/> acesso em 03.09.2017
2 Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/portal-antigo/publicacoes/relatorioIBGE_pdf> acesso em 03.09.2017
3 Dados disponibilizados pela Associação Nacional de Ação Indigenista(ANAI) destaca a situação fundiária de três povos autodeclaradas indígenas em território piauiense, são eles: Cariri(da serra grande); Codó cabeludo e Itacoatiara (Tabajara), ambos em situação de indefinição quanto a situação fundiária. <http://www.anai.org.br/povos_pi.asp acesso em 03.09.2017> Já Romeu Tavares, representante da funai piauí, em entrevista a um site local expõe a existência de mais comunidades, porém ambas circunscritas a três regiões, são elas: “Queimada Nova, Lagoa de São Francisco e em Piripiri. Os grupos são Cariri da Serra Grande, Tabajara do Nazaré e Tabajara Itacoatiara, Tabajara dos tucuns e Tabajara Ypy, respectivamente.” <http://cidadeverde.com/noticias/217875/ibge-contabiliza-cerca-de-3-mil-descendentes-de-indios-no-piaui acesso em 03.09.2017>
4 Para mais referências acessar: <http://www.dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/piaui/> acesso em 03.09.2017

Referências

SILVA.Tatiana Dias. Panorama social da população negra. In Igualdade racial no Brasil: reflexões no ano internacional dos afrodescendentes. SILVA.Tatiana, GOES. Fernanda(org).Brasília, IPEA, 2013. p.13 a 28.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder. Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

 

Texto de Breno Botelho
Piauiense, Mestrando em Sociologia ( UFF/RJ)

Comments (1)

  • esmeralda de limasays:

    1 de setembro de 2021 at 8:44 AM

    amei saber que nesta nossa regiao existe este povo maravilhosos .tenho sangue de indio sou binesta de indio segumdo meu pai disse quando eu era crianca que a bisaavo dele era india

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