A última terça-feira, 07 de Setembro de 2021, foi um marco importante (talvez grotesco) para se pensar o projeto de sociedade que está em disputa no país. No Piauí, mas também no Brasil e em outros países, parte da sociedade foi às ruas, defendendo seus interesses e ideologias e demonstrando, para além das reivindicações de cada um, a cara de quem defende cada projeto. Não é novidade o que escreverei a seguir, mas não por isso, deve ser omitido.
Nas ruas o desfile cívico deu lugar às manifestações políticas, as demonstrações de força bélica ficaram estacionadas e foram substituídas pelas forças simbólicas, pelos discursos alegóricos e estéticos de uma formação política ainda presa a um passado autoritário e ditatorial. Da zona norte, emergiu o grito daqueles que clamam por democracia, emprego e comida no prato; da zona leste, as buzinas e roncos dos motores deram a tônica daqueles que pedem intervenção militar e, contraditoriamente, liberdade.
Longe de criar aqui uma polarização entre apoiadores de Lula e apoiadores de Bolsonaro, esse texto busca refletir as camadas por baixo desses discursos, as máscaras que acortinam não apenas as desigualdades econômicas, mas também as estruturas racistas e opressoras do sistema.
Enquanto uma manifestação majoritariamente branca pedia “intervenção militar e socorro aos militares”, a outra, majoritariamente negra, pedia democracia e comida no prato. Os números dão conta de mostrar que o povo preto e pobre segue nas margens, são os mais afetados pela pandemia, pelo desemprego e pela violência. Somam quase 60% das mortes por Covid-19, 72% dos desempregados e a maioria das famílias que vivem em insegurança alimentar. Ir às ruas, mais que uma questão ideológica, tornou-se uma questão de sobrevivência.
Do outro lado da cidade, ir às ruas também era uma questão de sobrevivência, mas dos seus privilégios. Se de um lado foi possível observar uma presença massiva de homens e mulheres negros e negras, movimentos de bairro, moradores da periferia, trabalhadores sem teto… do outro, os carros de luxo protegiam do sol as peles brancas, e davam pistas que aquele era o espaço majoritariamente composto pela classe média/alta de Teresina. É verdade que isso não pode ser visto como uma unanimidade, nem de um lado nem do outros. É evidente que existem outros fatores que motivam as tomadas de posição, como o conservadorismo, que não abraça apenas os mais ricos.
Mas, foi exatamente do alto dos seus privilégios, que famílias inteiras saíram em seus carros, com o ar-condicionado ligado, não se intimidando nem mesmo pelo preço da gasolina (R$ 6,99) em Teresina, que nesta semana atingiu o maior valor do País. Ao contrário, promoveram uma carreata que durou quase três horas, em um percurso que finalizou na sede do Exército Brasileiro no Piauí. A todo momento, os manifestantes pediam uma ação mais contundente do Presidente da República, para que ele “faça o que precisa ser feito”, para evitar a “volta do comunismo no Brasil”.
O caráter racial dessas manifestações não pode ser pormenorizado. Ele indica, mais que um lado político, uma vocação de dominação branca sob os corpos negros, desde a colonização. Em um exemplo simples, são os patrões (brancos) lutando pela permanência dos seus lucros e os trabalhadores (negros) lutando por emprego e vida digna.
O racismo é engrenagem dessas desigualdades, porque atrela o fenótipo ao direito de ser ou não ser, poder ou não poder. O ideal branco europeu (que Aníbal Quijano chama de colonialidade do poder) segue forte seu curso, buscando manter seus privilégios econômicos, as desigualdades sociais e as estruturas racistas no Brasil. As manifestações, de forma grotesca, são uma caricatura do Brasil que defende a volta dos militares. Esse é um Brasil branco, conservador, cheio de privilégios e distantes de uma compreensão de humanidade.
Mas essas manifestações não dizem apenas isso, dizem também sobre resistência e luta do povo preto por reparação, justiça e equidade. Dizem que não são tempos de calar e silenciar diante do racismo e das estruturas opressoras do sistema. É tempo de sair em multidão e romper com as imposições colonialistas, de reescrever a história com nossos punhos, erguidos ou não, de construir outros mundos possíveis.
Texto: Luan Matheus Santana
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