Em greve desde o dia 10 de março, os professores denunciam as aulas remotas da Secretaria Municipal de Educação de Teresina (Semec) como arremedo, uma farsa e um adoecimento a mais em tempos de pandemia. “Os pais e professores estão sofrendo danos psicológicos muito grandes, só nós sabemos os efeitos”, afirma Luciane Santos, professora de rede municipal.
Segundo Osmarina Moura, professora da rede municipal de Teresina e integrante do movimento de greve, a secretaria tem feito essas aulas sob custo de atingir as fraquezas dos profissionais, seja ela sentimental ou financeira. “As aulas remotas têm sido efetivadas pelas direções das escolas por professores e professoras que têm contratos precarizados, substitutos e estagiários, aqueles que não tem opção de não ministrar a aula e alguns professores movidos pelo medo do desconto (os professores são ameaçados de descontos nos salários, caso não ministrem as aulas), e pelo sentimento alimentado pela secretaria que diz que é um momento de solidariedade com as famílias dos nossos alunos”, afirma.
No entanto, as professoras mais críticas da rede observam que esta solidariedade, a que a secretaria de educação convida os professores, é falha, ou no mínimo, oportunista. Tanto Osmarina quanto Luciane convergem na compreensão de outra solidariedade urgente: garantir o alimento na mesa das famílias.
Para a professora Luciane, essas crianças e os seus pais precisam é de tranquilidade para passar por essa pandemia. “E precisam ter assegurada a sua alimentação. Então, o que deveria ser feito era assim, como no Brasil inteiro, os professores estão defendendo e como foi feito em alguns países, é suspender o calendário escolar, garantir a alimentação dos alunos, garantir que os trabalhadores tenham uma quarentena com um mínimo de sossego e depois quando isso passar conversar e replanejar o calendário escolar”, afirma.
Quem concorda com a professora Luciane é Dona Francisca da Silva Sousa, moradora da Nova Teresina, que tem uma filha de nove anos na rede municipal. Para ela, o calendário deveria ser suspenso. Ao ser questionada pela nossa comunicadora popular, Lúcia Oliveira, sobre o que ela diria se pudesse se encontrar com o prefeito ou o sindicato, ela responde: “para eles resolver, porque eles tinham que encerrar logo as aulas, porque não tem condição de todo mundo pegar esses assuntos e nem as crianças aprender. Já que eles não dão assistência pra gente, que eles encerrasse logo essas aulas por esse ano”, afirma a mãe.
Lúcia Oliveira, nossa colaboradora, observa também que, nas comunidades, as aulas remotas tem agravado os riscos de contaminação, pois na medida em que as crianças não têm internet em suas casas, elas se juntam nas casas da vizinhança onde haja internet, para estudarem.
Para a Pedagoga, militante pelo educação pública e docente da Uespi, Lucineide Barros, esse cenário é muito delicado. Para ela, é necessário colocar a frente sempre as necessidades das crianças e suas famílias. Lucineide explica que o Conselho Nacional de Educação já aprovou que o ano letivo não precisa ser de 200 dias, obrigando apenas as 800 horas totais para o cumprimento da carga horária letiva.
“No entanto, essa carga horária de 800 horas não precisa ser cumprida no calendário civil, ou seja, pode ser cumprida em outro momento. O que considero importante é que a escola mantenha vínculos com as crianças, para que elas se sintam parte da escola, mas não é cabível que essas atividades sejam contabilizadas como atividades oficiais do calendário escolar. Se optamos por isso, prejudicamos o processo de ensino e aprendizagem das crianças, pois nesse modelo que estão implementando de nada contribui para a aprendizagem das crianças”, pondera Lucineide.
Aulas estão sendo bancadas por professores. Essa é a solidariedade?
Segundo Osmarina, mesmo aqueles professores que aderem à ideia da secretaria de que este momento deve ser de solidariedade dos professores para com as famílias das crianças, há reclamação por falta de equipamentos, “professores reclamam que seus celulares pessoais não tem memória suficiente para receber os arquivos da secretaria e o das famílias”, elenca.
Para a professora Luciane Santos, quem está sustentando esse modelo de aulas são os professores. “Na realidade quem está bancando as aulas remotas somos nós professores, em que a gente tem que tá disponibilizando os nossos celulares, a nossa internet, o nosso chip”, explica.
Para Luciane, outro agravante é perda da privacidade: “Nós perdemos completamente a nossa privacidade, porque é o nosso número que está a disposição de toda a comunidade escolar. Os atendimentos aos alunos, porque como é algo muito novo e não foi planejado pela Semec, simplesmente jogou nas nossas costas a responsabilidade de garantir isso, a gente não consegue organizar e os pais estão perdidos. A gente fica em atendimento aos alunos, praticamente, 24 horas por dia”, explica os transtornos vividos diariamente pelos professores durante a pandemia que se soma aos assédios e pressões constantes de cobrança de material.
Deste modo, fica a cargo dos docentes toda a logística de acompanhamento das famílias. Osmarina, aponta que as professoras e professores ficam angustiados ao ver que em salas de 30 alunos, tem retorno de 12 ou 14 alunos. Sobre isso, Francisca, que é mãe, explica a sua trajetória, até descobrir que estavam acontecendo as aulas “Não tive assistência pela escola. Só soube pela professora, que a gente tinha que pegar a tarefa, que já estava contando e a criança tinha que responder e mandar de volta. Nenhuma assistência, eu tô tendo”, afirma.
Esta mãe, Francisca, afirma que sua filha, 9 anos, é muito dedicada e ao sentir falta das tarefas da criança, a professora a procurou para saber o que estava acontecendo: “Ela (a filha) é muito dedicada aos estudos, já recebi as tarefas (por meio da vizinha), mas ninguém (da escola) tinha entrado em contato comigo. A professora estava me procurando, mas como não tenho whatsapp e essas coisas… aí uma vizinha se ofereceu para pegar as tarefas”, afirma acrescentando sua preocupação “não vai ser sempre que essa minha vizinha vai poder pegar as tarefas para minha filha”.
Escolas defasadas e precarização das famílias
Além disso, as professoras apontam que agregada à pandemia, as escolas municipais sofrem por décadas de falta de estrutura – sem acompanhar as inovações das tecnologias da informação e comunicação. “A prefeitura passou esse tempo todo sem investir em tecnologias da informação, na contramão do que acontecia no mundo. Nunca investiu em qualificação dos professores nessa perspectiva e agora, em um passe de mágica, quer impor aos professores, à comunidade escolar, uma dinâmica na qual a gente não foi qualificada”, afirma Luciane Santos.
Os usos das ferramentas tecnológicas são um gargalo na educação brasileira em todos os níveis. Segundo o pesquisador da comunicação, Efendy Maldonado: “Nos processos comunicacionais digitais, se constatam inúmeras possibilidades de criação, produção e mudança social; mas, ao mesmo tempo, ainda existem grandes obstáculos culturais, educativos, políticos e sociais que freiam a mudança” (em “Transmetodologia, cidadania comunicativa e transformação tecnocultural”).
O teórico aborda que o acesso aos aparelhos tecnológicos não garante por si só o potencial de criação. Portanto, por mais que os professores tenham acesso a aparelhos celulares com tecnologia de gravação, por exemplo, é preciso ter outras habilidades tais como: técnicas de edição de vídeo, técnicas de filmagem e, no mínimo, uma formação que propicie a criação de metodologias no ambiente digital.
O maior problema é encontrado no caminho que leva até as famílias. Segundo, Luciane e Osmarina, professoras, os alunos em casa não dispõe de ambientes propícios ao ensino aprendizagem, muitas vezes tem sequer televisão em casa. “Tem relatos de mães que não tem televisão que acesse os canais sugeridos pela secretaria. Tem mães que não tem celular ou trabalham como domésticas e não estão liberadas do serviço e tem que levar o telefone para o trabalho e as crianças ficam em casa. Além disso, elas não têm como acompanhar as crianças nessas atividades”, relata Osmarina.
O resultado desta crônica-realidade é “Além da pandemia e toda a angústia que ela tem trazido, as aulas remotas agravam essa situação trazendo ainda mais tristeza e aborrecimento”, sensibiliza Osmarina.
Para Luciane, a Prefeitura não está levando em consideração a realidade dos alunos das escolas públicas municipais de Teresina. “Sou professora de uma escola da Santa Maria da Codipi, em que boa parte dos meus alunos moram em ocupações, em casas extremamente precárias onde tem apenas um cômodo para uma família grande, em que eles não têm acesso a internet, nem mesmo a TV, só tem um celular na casa. A secretaria desconsidera essas realidades”, aponta.
Dona Francisca, conta que para acessar as tarefas conta com uma vizinha e mesmo assim gera custos. “Eu quero falar sobre essas aulas que o prefeito quer que as crianças assista, mas eu não tenho como pegar essa aula para a minha filha, que eu não tenho internet e nem um celular moderno e acho também que a criança não vai aprender sem a ajuda do professor. A minha filha está pegando a tarefa porque uma vizinha está pegando pra mim, mas aí eu tenho que pagar para imprimir e ela poder responder”, elenca Francisca.
De outro lado, a Secretária de Educação, Kátia Dantas, considera que a prefeitura tem munido o processo educacional de todos as ferramentas necessárias. “Estamos enfrentando muitos desafios com a pandemia e seguindo estratégias para minimizar os prejuízos na educação dos alunos da prefeitura. As atividades não presenciais jamais substituirão o processo de aprendizagem que acontece na sala de aula, mas disponibilizamos todas as ferramentas possíveis para ampliar o acesso dos alunos aos conteúdos estruturantes”, afirma ao ser procurada pela nossa equipe.
No entanto, o que a Secretaria aponta como “disponibilizamos todas as ferramentas possíveis” é justamente o que as comunidades não possuem. Segundo ela “As atividades são enviadas aos pais pelo celular, pela plataforma e podem ser recebidas impressas na escola. Também estamos transmitindo aulas pela TV, outra forma de garantir o aprendizado para quem não tem internet”, afirma. Como nossa equipe de reportagem demonstrou, nem todas as famílias possuem esses equipamentos para ter conexão com esta modalidade de ensino.
50 milhões do Fundeb: “essa verba deveria ir para as famílias e não para as TV’s”
Segundo nota do Sindicato dos(as) Servidores(as) Públicos(as) Municipais de Teresina (SINDSERM) “Profissionais da educação municipal se encontram em greve desde o dia 10 de março e o movimento segue dentro da legalidade. A motivação foi o descumprimento da Lei Federal 11738/2008 que prevê o pagamento integral do piso do magistério, cujo recurso para esta finalidade é garantido pelo FUNDEB e foi repassado ao Município de Teresina”.
A nota segue “No entanto, a decisão dos gestores municipais parece ter sido a de utilizar os recursos para contratação de espaços de televisão e vídeo aulas vinculadas ao Centro de Mídias SP, empresa que foi denunciada pelo site The Intercept Brasil como suspeita de utilizar dados de alunos e professores sem declaração clara de finalidade”.
A entidade solicitou a suspensão das atividades remotas na Educação Infantil, explicitamente ilegais, conforme a LDB – segundo a entidade – e a instauração de inquérito civil para apurar possíveis irregularidades na aplicação dos recursos do FUNDEB.
Para Luciane Santos, “Sem contar que para além dos assédios que estamos sofrendo, trazendo danos psicológicos, a gente vem sofrendo com os danos econômicos. Basta ver o que o Firmino fez esse ano com o dinheiro do repasse dos professores. Ele simplesmente embolsou 50 milhões de reais , que era dinheiro do Fundeb. Esse dinheiro ele está dando justamente para as TVs para veicular essas aulas remotas, que são aulas que já vem prontas de São Paulo, completamente deslocadas da realidade dos alunos do Piauí. Essa verba poderia ser utilizada para melhorar o ensino e garantir alimentação das famílias e não ser passada para as TV’s”.
As professoras também apontam que as videoaulas que foram compradas da empresa de São Paulo, muitas vezes, não tem conexão com o que os professores locais estão ministrando. A questão se agrava, quando as mesmas aulas são enviadas para alunos de várias séries diferentes, sem levar em conta a metodologia diferenciada para as diversas séries.
Segundo as questões levantadas pelo Sindserm é importante:
- que o MPPI solicite a imediata apresentação das despesas correntes com utilização do FUNDEB até o mês de maio de 2020;
- que o MPPI determine que o Município de Teresina apresente os contratos pactuados com as empresas de comunicação, para veiculação das tele aulas, com o Centros de Mídia da Educação de São Paulo, Fundação Jorge Lemann e plataformas utilizadas;
- que o MPPI proponha mediação entre o SINDSERM e a Prefeitura, no sentido do retorno da categoria ao trabalho;
- realização de audiências públicas e reuniões por videoconferência durante os meses de junho e julho, com participação do MP, TCE, SEMEC, especialistas das IES, SINDSERM e quem mais o MP considere importante convocar para iniciar em agosto, ou quando as autoridades de saúde autorizarem, uma proposta dentro da legalidade, da perspectiva de inclusão, com garantia de estrutura e aparato tecnológico e pedagogicamente coerente e aceitável”, apresenta a nota.
Por Sarah F. Santos, Jornalista do OcorreDiário
Em colaboração com Lúcia Oliveira e Luan Matheus com entrevistas realizadas com comunitários e professoras.
Gráficos: Luan Matheus
Edição de Texto: Luan Matheus
Comments (1)
À Osmarina, com luta e afeto: professora e militante piauiense é mais uma vítima da Covid-19says:
8 de abril de 2021 at 4:52 PM[…] educação pública no ensino remoto,com a contribuição do olhar tenro e solidário de Osmarina. Vamos guardar essa reportagem como troféu, daquelas que engrandecem, não as estantes, mas o […]