
Reportagem: Luan Matheus Santana
Em dezembro de 2024, o Território Quilombola Lagoas recebeu com entusiasmo a notícia de que o decreto de titulação dos mais de 50 mil hectares do quilombo estava na mesa do Governo Federal, pronto para a assinatura presidencial. Além do Lagoas, foram encaminhados ainda outros dois decretos, um para o Território Quilombola Contente, localizado no município de Paulistana, e outro para o Território Quilombola Macacos, em São Miguel do Tapuio.
O decreto relacionado ao Território Macacos foi o primeiro a ser despachado, com decreto publicado ainda em dezembro do ano passado. O que tem incomodado as lideranças quilombolas é que a demora na titulação está acontecendo justamente com os dois territórios que estão em processos de conflitos. No Quilombo Contente, o conflito se dá em torno do impacto da construção da Transnordestina, que cortou o território ao meio; já no Quilombo Lagoas, a relação conflituosa se relaciona com os interesses de empresas mineradoras, que tentam escavar o território.
Para Cláudio Teófilo (70 anos), liderança quilombola e integrante da Associação Territorial do Quilombo Lagoas, essa demora no despacho da titulação não é fruto do acaso. “Com certeza, a pessoa com muito poder chegou lá e disse: não manda esse decreto para o presidente, porque o presidente assina. E, uma vez assinado, a gente vai perder a força de lutar pela mineração”, desabafa.

A preocupação da comunidade é justificada: como já mostramos aqui no Ocorre Diário, desde 2015 a Mineradora SRN Holding tenta adentrar o território quilombola para exploração de ferro sem realização de uma consulta prévia ou diálogo mais amplo com a comunidade acerca das consequências desse processo. Os impactos sociais, ambientais, geomorfológicos e da paisagem natural do quilombo já estão previstos no Estudo de Impacto Ambiental e acendeu um sinal de alerta na comunidade.
Além da destruição ambiental, a mineração compromete o modo de vida das comunidades, pode contaminar os rios, desalojar famílias e desagregar práticas culturais ancestrais, como a produção algodão, milho, feijão, gergelim, amendoim e girassol orgânicos na comunidade Queimada da Onça. A mineração representa, na prática, uma nova forma de colonização que não respeita histórias, memórias e os direitos constitucionais dos povos quilombolas.
Nossa reportagem procurou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que afirmou que “o processo administrativo do Incra que trata da regularização fundiária do Território Quilombola (TQ) Lagoas (54380.002161/2008-03) encontra-se devidamente instruído e foi encaminhado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar – MDA, com proposta de publicação de Decreto Declaratório de Interesse Social, com fins de desapropriação dos imóveis incidentes no TQ Lagoas”, afirmou em nota.

O INCRA afirmou ainda que a diferença entre a área reconhecida e delimitada (52.365,8449 ha) para a área objeto de Decreto de Interesse Social (59.544,3881 ha) está regularmente justificada pela exclusão de área correspondente ao imóvel Fazenda Nova (2.821.5568 ha), já adquirido pelo Incra e atualmente em fase de titulação para a associação representativa da comunidade quilombola.
“Considerando que todos os estudos relacionados ao levantamento de informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas, etnográficas e antropológicas, obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas foram devidamente concluídos, não é possível à Superintendência Regional do Incra no Piauí determinar os critérios adotados na definição de quais territórios têm seus decretos assinados e publicados. No entanto, assumimos o compromisso de dar continuidade aos procedimentos relacionados à regularização fundiária dos territórios quilombolas no estado do Piauí e com o direcionamento de ações que buscam conferir maior celeridade ao andamento dos processos”, afirmou o INCRA, em nota.
A titulação do território é mais do que um reconhecimento formal; é a garantia de sobrevivência física e cultural. Sem a assinatura do decreto, o quilombo permanece vulnerável a processos de exploração por parte das mineradoras e das pressões econômicas externas. A mineração não só destroi a terra, mas desestrutura as comunidades e perpetua ciclos de desigualdade e marginalização.

Titulação das Terras é crucial para barrar mineração no território
O impacto da mineração vai atingir parte das 119 Comunidades Quilombolas que ali vivem desde seus ancestrais escravizados, em completa harmonia com a natureza. O território tem 62.375 hectares, distribuídos entre os municípios de São Raimundo Nonato, São Lourenço do Piauí, Dirceu Arcoverde, Fartura do Piauí, Bonfim do Piauí e Várzea Branca.
A vida dessas comunidades no Quilombos foi sempre tranquila. Embrenhados no meio da caatinga, as cercas não separam os terrenos, que são de uso comum da comunidade e das outras vidas que ali vivem. Até que, em 2015, surgiram as primeiras tentativas de instalação da mineradora no território.
Em 2019, descobriram que a autorização prévia para a Mineradora SRN Holding explorar minério de ferro. Foi como se o céu tivesse desabado sobre suas cabeças. “Já se sabia que havia gente grande invadindo nossas terras, desmatando, tirando madeira desde 2015, mas, só descobrimos que já era a mineradora quando anunciaram a mineração”, conta Cláudio Teófilo.

Em 2019, a empresa apresentou os Estudos seguido do Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), automaticamente rejeitado por todas as comunidades do território que consideraram que o trabalho afronta seus direitos. Indignados e revoltados, sobretudo porque se viram completamente fora dos planos da empresa, que exclui até mesmo o certificado de reconhecimento do Quilombo, pela Fundação Nacional Zumbi dos Palmares, em 2009. Esconderam também que o processo de demarcação pelo INCRA está em andamento, o mapa está publicado e a finalização da titulação em curso, por meio do trabalho do Instituto de Terras do Piauí – Interpi.
É preciso mobilizar
A resposta de Cláudio e de outros líderes quilombolas é clara: é necessário mobilizar a população local e exigir a atuação dos representantes políticos. “Está na hora deles mostrarem que estão à defesa da população. Porque, se nesse momento, vereadores eleitos que nós temos dentro do quilombo não entrarem para dar uma palavra por nós, já sabemos que eles não estão a favor da população e sim a favor da mineração”, afirma.
Essa luta não é apenas pelo Quilombo Lagoas, mas por todos os territórios tradicionais que enfrentam ameaças semelhantes. A proteção do Quilombo Lagoas é um ato de resistência e de reafirmação de direitos historicamente negados. A mineração, como modelo de “desenvolvimento”, precisa ser repensada para que respeite vidas, culturas e territórios.

Deixe um comentário