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Comunicação, Direito e Esperança Garcia: a tríade da primeira advogada do Brasil

Carmen Kemoly

Em 2009, quando adentrei os portões da Universidade Estadual do Piauí para cursar Comunicação Social, tinha apenas uma única certeza: a partir daquele momento  minha vida se transformava. Não era somente o fato de minha irmã mais velha ter sido a primeira a ingressar no ensino superior do tronco da minha família materna e paterna. Tampouco era o glamour que meu curso dizia oferecer. Mas havia algo que me dizia interna e meio confusamente que a Comunicação era um espaço extremamente complexo e de disputa para a sociedade.

Ao entrar, ingressei logo nas movimentações estudantis e coloquei os dois pés dentro da Executiva do meu curso, que estava a discutir naquele momento a Democratização da Comunicação, o combate às Opressões e a qualidade da nossa formação. De cara, já estava dentro da Conferência Estadual de Comunicação (a única que tivemos na história do Brasil) como delegada, e todo esse contexto me fez entender desde cedo que não estava errada, a comunicação era verdadeiramente um dos campos onde nossas narrativas entravam em guerra no país.

Até aqui, mesmo discutindo opressões nesses ambientes, não era natural que esses debates viessem incidir mais fortemente sobre Raça. Foi só em 2012 que ficou impossível e inevitável. Nesse período, um divisor de águas aconteceu na minha vida enquanto estudante de Comunicação e futura jornalista. O portal colaborativo da Bahia, Correio Nagô, estava fazendo uma grande formação com lideranças e comunicadores do Nordeste. Durante um ano, essas pessoas teriam formações sobre Negritude e Sociedade, e os comunicadores seriam correspondentes de seus respectivos estados. Eu era a correspondente piauiense, e nosso papel era de divulgar todas as ações possíveis dos movimentos negros nos locais onde estávamos.

O que seria um problema de conteúdo escasso, na minha cabeça de jovem que acaba de se descobrir explicitamente negra, não o foi quando voltei para meu estado. Naquele momento, percebi que inúmeras eram as ações dos movimentos negros, porém, na grande mídia, nada disso era divulgado. Sem contar história, já estava conhecendo diversas Casas e pessoas que tocavam o hip hop, os grupos afro, capoeira, movimentos periféricos e culturas de rua. Uma imersão, que me transformou de vez em uma jornartista, como falam no Piauí. 

Divulgação ‘Sexta Nagô’. Ilustração: Valmir Macedo

A partir daí, outra reviravolta acontecia. Era preciso explanar nomes e fatos históricos que contassem a verdadeira história de povos negros no Brasil e em nossos locais. Dentro disso, em 2014, um grupo de coletivos afros que já vinha fazendo uma ocupação cultural no Memorial Zumbi dos Palmares, em Teresina (PI), decide fazer a Ocupação Cultural Sexta Nagô, protagonizada pelo Grupo Afro Cultural Afoxá. É válido dizer que o Memorial Zumbi dos Palmares era a antiga Unidade Escolar Domingos Jorge Velho. Carregando nome de bandeirante no nome, o movimento negro piauiense decide travar uma luta para que esta escola mude de nome e sirva à história negra de fato.

Foi neste Memorial, fazendo trabalho colaborativo com diversos outros grupos negros, que pude colocar em prática uma comunicação preta, com produção cultural, assessoria de imprensa e cineclubismo. Durante a Sexta Nagô, tínhamos exibição de cinema negro, com o cineclube Tela Preta, sempre seguido de debate; Sala de Exposições, lojinha afroempreendedora, biblioteca, culinária especializada e atividades culturais fechando a noite. Era uma verdadeira gira, onde o movimento negro de Teresina pode dizer que confluiu bastante nessa época.

Dentro desse contexto que conheci mais profundamente Esperança Garcia. Seu nome já era muito falado pelo movimento negro piauiense, principalmente pelas mulheres, e no Memorial pudemos celebrá-la e exaltá-la diversas vezes, em especial no dia 06 de setembro, comemorado no Piauí como o dia Estadual da Consciência Negra, por ser o dia que Esperança escreve sua tão comentada carta.

“Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q.

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

Dossiê Esperança Garcia. Foto: https://esperancagarcia.org/

Esperança Garcia foi uma mulher preta escravizada no interior do Piauí, que em 1770 escreveu uma carta endereçada ao governador da capitania do então São José do Piauí, denunciando os maus tratos que ela, sua família e sua comunidade sofriam. Em 2016, um grupo de advogadas e advogados, em sua maioria negros e negras, adentram a Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, da OAB Piauí, então presidida pela Professora e Advogada Maria Sueli Rodrigues de Sousa. A principal missão da comissão nessa época era o reconhecimento de Esperança Garcia como a primeira advogada do Brasil e sua carta como uma petição pública.

Para isso, a Comissão concentrou esforços, junto a historiadores, em produzir o Dossiê “Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na luta pelo Direito”, lançado em 2017. De acordo com o dossiê, “o pedido de reconhecimento simbólico de Esperança Garcia como advogada emergiu de duas dinâmicas sociais: os processos de problematização da verdade quanto ao passado de violência vivido no Brasil – de onde emergiu a discursividade sobre o direito de memória e de saber a verdade do que ocorreu no país como estratégia de fortalecimento do pertencimento à comunidade política da nação brasileira e de cidadania ativa, bem como da identificação da necessidade de enfrentar o silêncio quanto aos heróis e às heroínas negros e indígenas que atuaram na resistência contra a escravidão e colonização no território do atual Estado do Piauí”.

A pesquisa que resultou no dossiê estava interessada principalmente em saber qual era a natureza jurídica da Carta de Esperança Garcia, a partir de duas dimensões: o autorreconhecimento de Esperança como membra de sua comunidade política e a análise jurídica da carta como peticionamento de sujeito constitucional. Esperança Garcia estava amparada pelo Alvará Régio de 24 de julho de 1713, que ampliou o exercício da advocacia às pessoas idôneas, dando lugar a uma atuação frequente em busca de liberdade da condição de escravos pelos próprios escravos ou por defensores destes.

Ilustração: Valentina Fraiz

Conforme consta no Dossiê, a petição de Esperança Garcia não pede alforria, nem se aventura em algum pedido fora da legalidade dos costumes e das leis. Seu pedido é estritamente legal, estratégia de defesa nos conformes da atuação advocatícia; pois peticionar ao soberano era prerrogativa do súdito, num sistema jurídico que era vigente no Brasil Colônia, mas tinha origem no direito romano e estava em vigor também no sistema jurídico português. O peticionamento oriundo de pessoas escravizadas fazia parte da rotina administrativa da Colônia, principalmente no período pombalino.

À época da escrita do Dossiê, eu era estagiária na OAB, seccional Piauí, fazendo assessoria de comunicação, e acompanhei de perto muitos desses debates. Esperança Garcia virou então para mim a representação de uma mulher conhecedora de leis, que em 1770 já desenvolvia seu intelecto para sobreviver no contexto escravagista, e para isso se armava de estratégias negociadoras com seus opressores. Meu exemplo de mulher preta em 1770 é esse, e passei a questionar onde estavam as mulheres brancas nesse período, e qual características eu poderia atribuir a elas.

Imagem ‘Esperança 1770’. Foto: Milena Rocha

Em minha concepção, Esperança Garcia extrapolava o fazer advocatício, ela era a comunicadora popular de sua comunidade, que escrevia e falava por tal. Enquanto comunicadora, e desenvolvendo roteiros para o audiovisual em 2018, já morando no Rio de Janeiro para cursar Mestrado de Comunicação e Cultura na UFRJ, não me restava dúvidas de que era Esperança quem deveria ganhar vida em algum dos meus escritos.

Foi então que em 2019, a Casa das Pretas (RJ) lança um Laboratório de Roteiros para Mulheres Negras no Audiovisual, com o intuito de reverter aos poucos o que os números da ANCINE revelaram em 2016: nenhuma mulher negra havia dirigido ou roteirizado um filme no circuito comercial do audiovisual brasileiro naquele ano. Desse laboratório, surgiu o curta-metragem “Esperança 1770”, onde contrario as estatísticas e assino direção e roteiro.

Como uma boa maranhense, natural de Timon (MA), cidade que faz fronteira com a capital do Piauí, Teresina, aprendi no corre prático e com os ensinamentos do mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos, que a fronteira que me ligava ao Piauí era de contato e diálogo, nunca de separação. Dessa forma, fui gravar o curta na capital do Maranhão, São Luís, onde desenvolvo minha pesquisa sobre Diásporas, no contexto África-Maranhão. Para isso, contei com a produção do Labcine, selo de fomento a laboratórios e núcleos de produção audiovisual independente no Piauí e Maranhão, que vem mexendo na cena do cinema piauiense e maranhense, e ainda com o suporte da Plataforma O’Corre Diário, onde desenvolvemos a lógica de uma comunicação popular e colaborativa, junta aos movimentos sociais, lutando pelo direito à comunicação e os direitos humanos, com comunidades tradicionais e originárias, como a zona norte de Teresina, e a luta da comunidade da avenida Boa Esperança na luta por moradia e território.

Imagem ‘Esperança 1770’. Brena Maria interpreta Esperança Garcia.

Gravar uma Esperança Garcia em São Luís não foi por acaso. Há grandes indícios de que os antepassados da primeira advogada do Brasil, tenham chegado pelo Porto de São Luís do Maranhão, na época, século XVIII, um dos que mais recebiam pessoas escravizados da África, como o Rio de Janeiro e a Bahia.

No curta, que é uma ficção performática e poética, procuramos lembrar Esperança a partir de um outro território, dentro das nossas fronteiras inventadas, até sua chegada no interior do Piauí. No percurso, a Esperança vivida pelas atrizes Brena Maria e Joane Victória, interage com o Atlântico, a favela, as culturas do Meio Norte do Brasil, os centros históricos e se pergunta ‘Eu sou uma escrava?”. A Esperança de 1770 vive nos corpos de mulheres pretas até os dias de hoje, na busca incessante por liberdade, por isso, o intuito é reverenciar nossa Esperança Garcia do passado e rememorar as diversas Esperanças do presente, que atuam na política, no judiciário, no ativismo, no parlamento, nas artes ou na comunicação, pois sim, ESPERANÇA GARCIA VIVE!.

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