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Contra o prato cheio da misoginia, performance Cardápio29 alimenta nossa resistência

No último dia 29 de maio, marcado como 29M, o Brasil e o mundo foram às ruas protestar por Vacina no Braço e Comida no Prato. Em Teresina, capital do Piauí, não foi diferente, os descontentes com o Governo Bolsonaro e com os atrasos na vacinação ocuparam as ruas. Na ocasião, houve uma performance de corpo nu intitulada Cardápio 29, simbolizando os corpos que são servidos no banquete de mortes causadas pela falta de organização do estado brasileiro em garantir medidas cabíveis de combate à covid19, que já beira as 500 mil mortes (até a data de hoje a marca é de 463 mil mortes). 

Chocando os sobreviventes do século 21, a performance provocou os moralistas, mas de outro lado gerou uma campanha em apoio à coragem da artista, que colocou seu corpo em favor da luta popular. Nesta segunda (31/05), nas redes sociais, artistas piauienses manifestam apoio à ARTivista, que vem sendo alvo de comentários machistas e misóginos nas redes sociais, após performance. Além de artistas, militantes engajados na luta política e pessoas anônimas estão se somando à hashtag #cardapio29merepresenta. 

A performance também vem a calhar no país que voltou a figurar no mapa da fome. Segundo pesquisa feita em dezembro de 2020 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), são mais de 116,8 milhões de pessoas que estão em situação de insegurança alimentar ou passando fome no Brasil. 

A Artevista, Luciana Leite (LuRebordosa) foi uma das mobilizadoras da campanha #Cardápio29merepresenta. Para ela “o ano é 2021, a gente está vivendo uma pandemia onde milhões de pessoas estão perdendo as vidas no mundo inteiro. São famílias destruídas que poderiam ser salvas uma vez que já temos vacinas, mas estamos desgovernados por esse genocida que é acompanhado por uma corja de gente hipócrita, mal caráter, conservadora. São essas pessoas que vem condenando nossos corpos e corpas e que usam o nome de um deus, inventado por eles, que é um deus muito cruel. É inadmissível que em um protesto por vacina um corpo incomode tanto”, argumenta. 

Diante de uma série de violências que a artista sofreu, Luciana avalia, “Essas pessoas tiram suas máscaras e demonstram que são realmente violentas e odiosas. Pessoas dizendo que jogariam água quente na moça da performance”. Ela afirma que não admite que mais uma vez um corpo de uma companheira seja crucificado e criminalizado “Apoiar a performance é dizer que nós nos sentimos agredidas e feridas quando vemos mais uma vez uma companheira sendo vítima de tanta violência. Querem matar nossos corpos, mas eles não passarão. Vale dizer que essa indignação é muito seletiva, uma vez que nas manifestações pro-bolsonaro também há corpos nus e ninguém se manifesta contra”, conclui. 

Em vídeo postado nas redes sociais, Coelin questiona: qual o lugar do nosso corpo?

“A todos que me  procuraram com preocupação, afeto e carinho. A  todos que morreram, estão morrendo e morrerão pelo descaso: nem bala, nem fome, nem vírus”, disse a artista. De voz trêmula e olhar firme, a ARTivista não escondeu o abalo emocional provocado pela repercussão da performance, mas também não recuou um milímetro naquilo que era seu objetivo maior: denunciar o governo genocida.  

Ela reforçou que a performance não é uma manifestação individual, mas coletiva. O corpo é o meio pelo qual a mensagem pode ser externada, gritada, agitada. O pronunciamento dela seguiu poético: “e,  aprendi que se depende sempre De tanta, muita, diferente gente; Toda pessoa sempre é as marcas; Das lições diárias de outras tantas pessoas; E é tão bonito quando a gente entende; Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá; É tão bonito quando a gente sente; Que nunca está sozinho por mais que pense estar; É tão bonito quando a gente pisa firme; Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos; É tão bonito quando a gente vai à vida; Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração”, recitou emocionada, mas fortalecida pela rede de acolhimento que surgiu ao seu entorno

Não tem B.O paras as mortes, não vai ter B.O para as corpas que se manifestam 

Segundo a página, o piauiense, um Boletim de Ocorrência (B.O) foi registrado contra a artista. O BO registrado acusa a artista de ato obsceno. De outro lado  é interpretado como uma tentativa de criminalizar expressões artísticas de cunho político.

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Segundo o advogado, pós-graduado e militante em Direitos Humanos, Álvaro Feitosa a acusação de ato obsceno não se sustenta. “Analisando a performance artística de forma técnica-jurídica, não há que se falar em conduta sujeita à criminalização, mas sim, manifestação do exercício da liberdade artística e de expressão. De fato, a situação deve ser analisada pelo seu contexto completo: ocorreu em uma manifestação pública contra a omissão do governo Bolsonaro em assegurar políticas públicas de proteção e cuidados para as mulheres”, afirma o advogado. 

Ainda segundo Álvaro “A liberdade de expressão, especialmente se tratando de arte engajada, não está a serviço dos brios dos cidadãos mais delicados, mas sim, em criar consciência pública em volta de uma causa, mesmo que isso cause incômodo ou desconforto em algumas pessoas.As divergências fazem parte do jogo democrático e não devem ser tratadas no âmbito da criminalização”. 

O advogado explica ainda que no direito brasileiro há precedente consolidado que afasta a punição criminal como atentatória ao pudor no caso de diretor de teatro que expôs as nádegas em público, pois levou-se em conta que a referida situação não visava saciar lascívia de quem quer que fosse, mas sim, chamar atenção da platéia através do ato insólito. Em resumo, não há qualquer crime ou contravenção penal cometida no protesto. 

Que crime comete um corpo nu? Um corpo nu não mata ninguém, já negar vacina e auxílio emergencial… Pensemos um pouco. 

A mídia se diz imparcial, mas age como carcereira das corpas Artivistas

Os meios de comunicação que se arrogam da imparcialidade, não tem medo de cair da alta pilastra que ela mesma construiu para si. Diante do ocorrido, não se fez de rogada e se juntou ao coro dos moralistas que se assustam mais com uma corpa que se manifesta do que com os corpos que se aglomeram nos cemitérios às custas de uma má política de gestão que ri do sofrimento do povo brasileiro. 

Manifestações artísticas que usam o corpo como ferramenta na luta contra as desigualdades sociais são comuns na história. Mas ainda é capaz de escandalizar a mídia piauiense. Jornalismo que se mantém neutro e imparcial diante de um governo que negou mais de 11 a compra da vacina que poderia salvar milhares de vidas! Mas não se envergonha de acender a fogueira para queimar uma performance que denunciou o descaso, a lentidão e a indiferença às milhares de mortes por Covid-19.

A mídia conhecida por lucrar com os corpos femininos, curiosamente se põe como baluarte da moralidade quando um corpo empoderado luta pela emancipação do povo que quer vacina e comida. 

O Brasil é conhecido como um dos países que mais consomem pornografia no mundo. Os corpos das mulheres são “consumidos” como produtos, pelas mesmas pessoas que defendem o moralismo. A nudez, quando não se enquadra no “padrão heteronormativo” é criminalizada. A sociedade machista segue buscando estabelecer onde, quando e como os corpos femininos podem se expressar. 

O moralismo que esconde racismo, transfobia e feminicídios 

Ayara Dias, é mulher trans e negra e militante do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negros e Negras – FONATRANS. Ela traz uma reflexão importante no que diz respeito ao uso da religiosidade cristã como uma muleta dos moralistas de plantão. 

Segundo ela, “

A igreja historicamente queimou mulheres em suas praças, a cruz da simbologia cristã teve muito sangue derramado em seus pés. Xica Manicongo primeira travesti negra documentada no Brasil, foi perseguida pela inquisição. Como disse Isolda Benício em post no Instagram: no país onde os índices de feminicidios e transfeminicidios são tão altos, onde a população negra e indígena é vítima de genocídio, o que revolta dita sociedade de bem é um ato onde uma mulher está nua. Há quem diga que este é um jeito burro de fazer militância, mas, não é possível avançar em nenhum sentido se não estivermos dispostos a vencer a misoginia”, afirma Ayra.

Em um contexto onde muitas pessoas continuam morrendo fome, de bala e de Covid, os discursos moralistas servem apenas a uma pseudo democracia, que nunca nos pertenceu. “Essas mesmas pessoas não se dão conta que sequer temos uma democracia, travestis estão sendo exiladas, impedidas de exercerem seus direitos políticos e o que revolta é um corpo nu? A seletividade da revolta também apresenta convivência. Agora temos uma mulher sendo assediada, criminalizada, com boletim de ocorrência pela performance em um ato. É essa mesma estrutura e discursos que fazem com que a Lins Robalo esteja sendo processada por racismo, sendo a única mulher preta na Câmara da cidade de São Borja no Rio Grande do Sul”, finaliza.

Bixanikas manifestam apoio em foto artística.

Foto de Kessy Freire

Reportagem coletiva e colaborativa: Sarah F. Santos, Luan Matheus, Ayra Dias, Ludmila Nascimento.

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