Não são raras as denúncias de fraudes envolvendo estudantes brancos aprovados pelo sistema de cotas raciais nas universidades brasileiras. Aqui no Piauí, a mais recente surgiu em junho deste ano, quando um perfil do Twitter (que já foi deletado) passou a divulgar uma lista com vários estudantes brancos que, supostamente, estariam burlando o sistema de cotas para ter acesso ao ensino superior. Na época, a Universidade Federal do Piauí (UFPI) chegou a divulgar uma nota, informando que não compactuamos com quaisquer ações fraudulentas que maculem o direito à educação pública, gratuita e de qualidade, definido pela ação afirmativa de cotas raciais.
Agora, uma nova página, dessa vez na rede social Instagram, foi criada com objetivos semelhantes. Conversamos com a estudante Fernanda*, que é cotista e uma das integrantes do grupo que está articulando essa página, para entender melhor o movimento que, além do perfil piauiense, também vem sendo criado em outros estados.
“A meta é receber denúncias de fraude nas cotas raciais tanto nas Universidades Públicas e pelo ProUni. Nós não expomos as fotos dos fraudadores, nós apenas queremos de alguma forma facilitar as denúncias. Assim a gente espera ajuda da própria comunidade, dos cotistas que devem conhecer sua turma e sabem quem são os possíveis fraudadores”, afirma Fernanda.
Ela explicou ainda que a denúncia consiste no envio de fotos do possível fraudador (da infância, em grupo, etc), com fotos em página de escolas ou cursinho particular caso tenha passado e ainda informações sobre qual tipo de cota passou. “O objetivo é encaminhar para órgão competente, como a própria universidade, de forma presencial ou online, pelo Fala.br, Ministério Público do Piauí. Com isso queremos a verdade, mas sem ofender. Não compactuamos com linchamentos virtuais, que no fundo não leva a nada. Queremos justiça e reparação”, afirma Fernanda.
A campanha surgiu durante a semana do #exposedfraudesnascotas, uma hashtag que ganhou força no Twitter nos meses de junho e julho deste ano. A Folha de São Paulo fez um levantamento que identificou denúncias em 26 universidades brasileiras. Ao todo foram 1188 denúncias, 729 processos administrativos e 193 expulsões.
Nesse período, muitas contas foram derrubadas pela exposição. Agora, de acordo com Fernanda, a expectativa dessa nova página é criar uma maior conscientização sobre as ações afirmativas, sua importância em contexto de Brasil e a escravidão que ainda exclui negros, indígenas e pobres das universidade. “As pessoas podem dar ideias de assuntos para tratar na página, a página foi criada para os próprios alunos, na perspectiva de eles mesmos se tornem mais críticos ao observar que compõem as cadeiras das cotas na universidade, em todos os cursos”, afirma.
Grupo de professores da UESPI pede ampliação de vagas para cotas raciais
O Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro (NEPA) e Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação e Ciências Sociais (NUPECSO), após conduzirem os debates com a comunidade universitária da Universidade Estadual do Piauí (através de reuniões virtuais com coordenadores de curso, centros acadêmicos, Diretório Central de Estudantes – Teresina e outros grupos de pesquisa), lançaram nesta semana uma campanha que visa sensibilizar a atual gestão da UESPI e Governo do Estado para ampliar do percentual de cotas nas instituição.
Os grupos entendem da necessidade de ampliação das reservas de 30% para 50%, bem como a consolidação de políticas de permanência dos estudantes cotistas na Universidade Estadual do Piauí-UESPI e tomam como base a Lei federal nº 12.711/2012, que institui 50% das vagas nos institutos e nas universidades federais para Estudantes de Escola Pública, Negros, Indígenas e Pessoas com Deficiência.
Conversamos com o Professor Antônio Bispo, um dos organizadores da Campanha que pede mais cotas raciais para a UESPI. Ao invés de reproduzir uma fala deles nesta reportagem, optamos por compartilhar, na íntegra, um texto escrito por ele, com uma reflexão sobre a o tema a necessidade de ampliação das vagas:
GOVERNO DO PIAUÍ E UESPI: A QUESTÃO DAS COTAS PARA NEGROS E NEGRAS NO ENSINO SUPERIOR – José da Cruz Bispo de Miranda Professor da UESPI
As demandas sociais da comunidade negra internacional têm tido grande repercussão no mundo, contudo, no Brasil, o seu resultado foi a publicação da Portaria do Ministério da Educação (MEC) nº 45/2020, revogando a de nº 13/2020 que permitia a reserva de vagas para negros e negras na pós-graduação, a reafirmação de que em 2022 a Lei nº 12.711/2012 (a Lei de cotas para negros e negras no ensino superior será avaliada) e a continuidade de assassinatos de jovens negros por parte da polícia.
No Piauí, as manifestações antirracistas não são suficientes para lembrar que a Lei Estadual nº 5.791/2008 (Lei de reserva de cotas sociais para o ensino superior público no Estado do Piauí) não inclui cotas para negros e negras, apenas a Resolução do Conselho Universitário da Universidade Estadual do Piauí(UESPI) nº 08/2008 é que amplia a interpretação e cria as condições de implantar as reservas de cotas raciais, que teve início em 10%(5% para cota escola pública e 5% para cota para negros e negras oriundos de escola pública), chegando a 30% (15% para escola pública e 15% para negros e negras).
O que existe no cenário social, cultural e político piauiense que não permite o avanço de conquistas da comunidade negras na legislação estadual que resulte, no mínimo, na equivalência da Lei Estadual nº 5.971/2008 à Lei 12.711/2012, que institui 50% de reserva de vagas para cotas no ensino público federal, sendo 25% para escola pública e 25% para negros e negras? Nós temos uma Universidade Pública Estadual com pensamento mais conservador que todas as outras brasileiras? E nós professores negros e negras da UESPI negamos a debater o assunto porque imaginamos que a Administração Superior não é simpática à equivalência de nossa Resolução à lei federal? Nossos/as legisladores/as acreditam que defender cotas para negros e negras na Assembleia Legislativa Estadual os condenará a perda de votos? Ou não têm a convicção que essa seja a melhor política para diminuir a desigualdade racial no país?
Inicialmente contatar que a existência da Lei Estadual nº 5.791/2008 (que ignora as cotas para negros e negras) e da Resolução da UESPI, única Instituição de Ensino Superior Pública do Estado, que não permite o aumento para 50% de reserva de vagas para cotas escola pública e raciais (equivalência à Lei Federal nº 12.711/2012) nos leva ao semelhante posicionamento conservador do ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, em não favorecer políticas inclusivas da comunidade negra no ensino superior.
Provavelmente nossos representantes estão a crer nos dados que apontam que os negros e as negras são maioria no ensino superior. Após a execução da Lei de cotas no ensino superior por 6 anos sem a comissão de heteroidentificação no Sistema de Seleção Unificado (SISU), sem a qual aceitava-se apenas a autodeclaração e, por isso resultou num alto índice de fraude, ou seja, pessoas brancas beneficiadas com uma política que não era para elas e, num cenário, em que a autodeclaração não segue regras, apenas a vontade de auto atribuir uma identidade que gere direitos e facilidades.
Ainda, em 2018, o Sistema de Indicadores Sociais, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) afirmava que apenas 25,2% dos jovens brasileiros, entre 18 a 24 anos, estavam no ensino superior, destes 36,1% eram brancos e 18,3% eram negros e negras. Se considerarmos que o número de vagas no ensino superior no Piauí é um dos menores do país e, que a população negra piauiense é de 70,7% (IBGE, 2018) é de se constatar que a não equivalência das leis estaduais sobre cotas à Lei Federal nº 12.711/2012 está condenando no Estado do Piauí, em menor grau em outros estados, possivelmente, negros e negras à exclusão ao ensino superior público. Por que isso? Aparentemente não vejo explicações.
Estamos no quarto mandato de um governo do Partido dos Trabalhadores, sendo governador indígena nos quatro mandatos (O Piauí tem índio sim), a Assembleia legislativa, atualmente tem 9 deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Comunista do Brasil (PC do B), além disso, a coalizão do governo é majoritária.
Vale destacar o argumento de que nem sempre ser do PT ou PC do B significa comprometido com setores marginalizados, neste caso, os negros e negras, muitos desses representantes têm a convicção de que o preconceito e discriminação contra negros e negras é social, ou seja, ocorrem por sermos pobres, não por nossa condição de ser negro ou negra. Provavelmente esse mesmo pensamento seja hegemônico na UESPI, que durante 12 anos se acomoda alocar 70% das vagas para concorrência ampla, beneficiando os alunos e alunas oriundos/as das escolas particulares e dos cursinhos preparatórios. Há algo estranho no Piauí.
O Partido dos Trabalhadores tem alguns nós, no âmbito nacional, não favoreceu à reestruturação das polícias brasileiras, tornando-as mais repressoras e violentas, no âmbito estadual, destaco, a omissão na questão das cotas para negros e negras no ensino superior público.
** Fernanda é um nome fictício utilizado nesta matéria com finalidade de preservar a identidade da estudantes entrevistada.
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Essa é uma produção coletiva e colaborativa da equipe do Ocorre Diário, que caminhou lado a lado com as ideias/sugestões do Professor Bispo e de Fernanda (nome fictício dado à estudantes entrevistada nesta reportagem).
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