Resolveram cutucar uma das feridas abertas do Centro histórico de Teresina. O patrimônio em questão é um casarão da década de 1930, em estilo eclético, localizado na rua Félix Pacheco 1799, que tornou-se uma cicatriz do tempo e símbolo da luta pela preservação do patrimônio construído que ainda nos resta. Hoje a casa – que divide o terreno com árvores centenárias – passa por uma reforma, em um último golpe para tornar rentável o prédio histórico que resiste à especulação imobiliária e à falta de interesse do poder público em protegê-lo.
Aos olhos desatentos de quem passa pela rua, a casa é só mais um velho prédio, cujas ruínas se naturalizam na mórbida paisagem do Centro. No entanto, o imóvel também foi palco para uma revolução em prol da memória desta cidade, ou o que para muitos, à época, foi tida como barbárie – adjetivada por outros sinônimos como vandalismo, baderneira, molecagem.
É até mesmo estranho usar a expressão ‘à época’ para se referir a um fato que aconteceu a pouco tempo atrás, no entanto, na cidade sem memória, 4 anos talvez seja tempo suficiente para se esquecer.
O fato é que em 2015 vivíamos um sentimento de impotência com a derrubada em série de prédios históricos do Centro (nada muito diferente do sentimento de hoje). Vivía-se também no Brasil um momento de levante social pela posse do que é público e pelo nosso Direito à Cidade e à Memória. Foi esse levante que reivindicou o Cais Estelita em Recife, o Hotel Reis Magos em Natal, o Parque do Cocó em Fortaleza e o Parque Augusta em São Paulo. Todos signos da identidade local ameaçados pelos interesses privados de poucos.
Em Teresina, o movimento que tomou forma como Viva Madalena, ocupou por 13 dias a casa da Félix Pacheco 1799 (pertencente à Dona Madalena), e acendeu um debate que questionava o destino posto ao Centro histórico da cidade. O propósito era de evitar as causas do ‘alzheimer urbano’: o mal de não nos reconhecermos mais no espaço, de perdermos nossas referências e de nos tornarmos apáticos com o futuro.
Em resposta, o movimento resistiu às investidas daqueles que desejavam a casa abaixo em troca de 5 milhões – valor especulado para o terreno à época, sem casa e sem árvores, mas que hoje está a venda por 1.5 milhão; a sabotagem incluiu o corte da água e da energia, ameaças na madrugada, investida policial e o suborno de 10% do valor de venda do imóvel caso o movimento não atrapalhasse mais a negociada. Tudo isso patrocinado por empresários do pólo de saúde e agentes imobiliários, caçadores de herança e os militantes do ‘progresso a qualquer custo’.
Como dito no ‘Manifesto 1799’, publicado pelo movimento em 11 de julho de 2015, “Teresina que não passou por etapas de construção da identidade social, ignorando a importância da preservação do patrimônio histórico, cresce num ritmo acelerado, mesmo sem modernidade e inovação, negligenciando quase completamente a discussão sobre patrimônio ambiental e identidade histórico-cultural.”
Parece que o tratamento de choque surtiu algum efeito. A barbárie foi necessária para que a preservação fosse uma opção, embora o casarão estivesse entre os prédios protegidos por Lei municipal e pertencente ao Inventário teresinense do patrimônio construído.
A experiência do movimento que fez luz sobre a escandalosa máfia teresinense que transforma edifícios históricos em estacionamentos trouxe alguns aprendizados. A primeira é a de que preservação e interesse pelo patrimônio histórico é apenas um discurso bonito, encurralado pelo vício do poder municipal na tal ‘cidade futuro’, e que abandona à sorte do mercado imobiliário aquilo que mantém viva nossas memórias. A segunda, de que o patrimônio histórico teresinense vai muito além da casa da Dona Madalena e do que foi erguido no Centro da cidade, obrigando a refletir sobre as verdadeiras raízes da capital do Piauí. Por fim, a certeza de que, em Teresina, não existe outra maneira de garantir a preservação se não através da dita barbárie, fato que tem sido comprovado pela atual luta da zona norte para não serem apagados da história.
Como na profecia de Rosa Luxemburgo – “socialismo ou barbárie” – a luta pela preservação do patrimônio histórico é também um caminho pelo bem social. Como anunciado no último suspiro democrático de 2015, existe a urgência pela posse pública do patrimônio brasileiro, isso porque, somente assim, teremos provas (e memória) para cobrar pelo reconhecimento da nossa verdadeira história – a casa da Félix Pacheco é uma dessas provas, que narra um dia em que decidimos ter Direito à Memória.
Link do Manifesto 1799 completo: https://www.facebook.com/vivamadalenathe/posts/1612340615687289?__tn__=K-R )
Texto: Luan Rusvell
Foto da capa deste artigo: Emerson Mourão
“este artigo é dedicado às pessoas que fizeram o movimento Viva Madalena e à todas que seguem na luta pela preservação do patrimônio histórico de Teresina.”
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