Sabe um lugar feito de cocá, cabaças, de verde e amarelo da espada de Iansã, pote de barro, dezenas de imagens e signos que que imediatamente te levam a um turbilhão de sensações boas e acolhedoras? Pois é assim o Museu da Resistência da Boa Esperança Memorial Casa Maria Sueli, que está em festa com a inauguração da Biblioteca Entre Rios, que aconteceu dia 12 de julho, em um momento que celebrou a cultura popular, claro.
Quem organiza as ações no museu/memorial é o Centro de Defesa Ferreira de Sousa, associação de moradores da comunidade Boa Esperança. A biblioteca Entre Rios está localizada na Rua Parambu, nº 4026, no bairro São Joaquim e está à disposição de toda comunidade teresinense. A proposta, segundo a coordenadora do museu, Maria Lúcia, é que a própria comunidade possa propor as atividades para o espaço, que deve servir de local de produção de conhecimento, encontro e fortalecimento de narrativas contracoloniais.
A cerimônia de inauguração iniciou com o descerramento da placa de certificação do “Pontos de Memória”, titulação concedida pelo Ibram a entidades e coletivos culturais oficializando o reconhecimento de que elas apoiam ou desenvolvem programas, projetos e ações de museologia social. O reconhecimento foi obtido pelo “Museu da Resistência da Boa Esperança, Memorial Casa Profa. Maria Sueli” neste ano de 2024 e permitiu o financiamento da reforma e estruturação da biblioteca.
Segundo o site do Instituto Brasileiro de Museus, o Programa Pontos de Memória foi criado em 2009, numa parceria entre os Programas Mais Cultura, do Ministério da Cultura e do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania – PRONASCI, do Ministério da Justiça, com o objetivo de identificar, apoiar e fortalecer iniciativas de memória e museologia social pautadas na gestão participativa e no vínculo com a comunidade e seu território.
O saber dos nossos ancestrais tem salvado nossas vidas
Participaram do momento lideranças comunitárias, moradores, apoiadores, professores e estudantes que colaboram com o museu. Maria Lúcia, liderança comunitária, propõe a construção coletiva, “Este é um projeto para Teresina, vamos pensar a partir dos nossos fazeres, dos nossos modos de vida”, afirma. Para ela, o lugar de onde partimos é tão importante quanto o conhecimento acadêmico, “A cultura é uma diversidade de fazer acadêmico, mas o saber do nosso povo tem salvado nossas vidas, os nossos saberes ancestrais”, defende.
“O processo foi de muito trabalho e trocas, tanto com relação à biblioteca quanto às diversas outras ideias e mobilizações”, conta a musicista Jazi Oliveira ajudou a plantar as sementes da biblioteca. “Tudo que nós colhemos futuramente é o que plantamos agora, então eu me preocupo mais em observar o que estamos fazendo e como isso impacta, seja positivo ou negativo, para que nós continuemos nos movimentando e buscando nos fortalecer e nos unir”, completa a artista.
As grandes protagonistas da noite foram as crianças da comunidade que além de receberem um novo espaço de estudo, apresentaram os resultados do seu empenho na música. Cerca de 11 crianças da comunidade fazem parte da Oficina de Musicalização ministrada pela Jazi Oliveira, onde aprendem a tocar instrumentos de percussão como bumbo, maracá, taró e chiadeira. As tradicionais toadas do bumba meu boi foram as músicas escolhidas para o repertório da inauguração da biblioteca Entre Rios.
A profissional de apoio de inclusão, Carolina Oliveira, moradora da comunidade, mãe da Kayra, disse que a pequena conheceu o projeto na praça em frente ao museu, e hoje toca chiadeira, “Ela nunca demonstrou interesse antes pela música, foi através desse projeto que ela começou”, ela está satisfeita com as atividades promovidas pelo Centro de Defesa. “Eu gosto do movimento da Casa Maria Sueli porque ajuda a tirar as crianças da rua e quando ajuda as crianças a gente se sente feliz”.
A juventude é fortemente presente na comunidade e também movimentou a programação da noite. Para continuar as celebrações, as meninas do coletivo The Faixas Rosa trouxeram uma amostra da “Batalha das Marias”, duelo de MC’s realizado uma vez por mês na praça em frente ao Memorial Casa Maria Sueli. As irmãs MC Camilly e MC Ludmilly da família Fúria, trocaram rimas inteligentes que esquentaram a roda. O poeta Badblack MC e a cantora Kassandra também apresentaram suas composições durante a programação.
Na sequência de apresentações, o Bumba Meu Boi “Mimo de Santa Cruz”, do Mestre Juninho, do bairro Redenção, zona sul da capital, encheu a praça de cores e alegria. O grupo tem mais de vinte anos de história e carrega o legado do Boi Imperador da Ilha, um dos mais tradicionais da cidade, onde o Mestre aprendeu a arte do bumba meu boi.
E o que tem no Museu/Memorial?
O Museu da Resistência da Boa Esperança surgiu em 2015 como uma tática de re-existência diante das tentativas de desterritorialização do Programa Lagoas do Norte, frente ao qual a comunidade reuniu todas as suas memórias e lembranças possíveis para questionar “Lagoas do Norte Pra Quem?”. A resposta a esta pergunta é tecida diariamente nos modos de vida, modos de fazer e ser da comunidade que, em suas insurgências, retrucam ao capital internacional e para a prefeitura local “Não existe Lagoas do Norte sem os moradores”.
Raimundo Silva, o novinho, é quem nos lembra deste momento “começamos, logo após a selagem das casas do Programa Lagoas do Norte em dezembro de 2014 e em 2015 começamos a fazer instalações do museu de forma itinerante levando nossas peças e falando da luta”. A selagem foi o momento em que a prefeitura, por meio de suas assistentes sociais, colaram selos nas casas, à revelia de seus donos, marcando que a moradia seria removida.
Com a modalidade itinerante, aos poucos a sede passou a funcionar em um quartinho na casa de uma das moradoras, a Dona Davina. Mas por volta de 2022, a comunidade reivindicou o espaço da antiga creche que estava abandonada e com a ancestralização da querida Maria Sueli Rodrigues, grande animadora da comunidade, sua energia germinou também para que, ao museu, se juntasse as suas memórias.
Assim, de memórias e lembranças que tinham em suas casas, a vizinhança começou a reunir sua grande história de valor e passaram a partilhar suas histórias de vida revelando a beleza de outra cidade, uma mais coletiva e diversa.
Para lembrar os trabalhos nas olarias, alguns moradores ofertaram telhas, aquelas mesmas que os moradores faziam tendo suas coxas como moldes; um outro vizinho levou o tijolo feito com o barro dali, assim como o antigo molde; tem também a bicicleta de outro vizinho; fotografias; cartazes dos momentos de luta. E uma centena de outros símbolos e signos que fazem um pote de barro logo na entrada da casa, por exemplo, ser um lugar familiar que remete a uma história coletiva da comunidade, sem esquecer cada história individual que enriquece o todo.
As pinturas nas paredes e os diversos quadros doados, inclusive um maravilhoso de uma lenda local chamada Num-se-pode, são um espetáculo sensorial à parte. São pinturas que lembram o sagrado e outros imaginários, alguns até mais futuristas, tudo em confluência com a diversidade, que você precisa se achegar para ver/sentir.
Ah sim, não podemos esquecer que em 2021 a comunidade lançou o site do Museu Virtual da Resistência da Boa Esperança e lá também tem tantas outras histórias de vida e artefatos comunitários que podem ser acessados.
E, agora, a Biblioteca Entre Rios vem a ser mais um instrumento de mobilização de afetos comunitários.
Manifesto da Biblioteca Entre Rios
“Somos uma nação indígena e negra. O sangue dos nossos ancestrais correm nas nossas veias, como as águas dos rios, que banham Teresina.” A nossa região é território ancestral de povos indígenas que aqui viveram há milhares de anos, deixando suas marcas nas pedras pintadas e nos sítios arqueológicos encontrados em todo Piauí.
Em Teresina temos informações históricas do povo indígena Poty a ocupar a região do Encontro dos Rios, porém, além dos indígenas esse território é também ancestral preto, em virtude dos povos africanos que foram trazidos para cá e assim esses povos são a raiz ancestral da região. Essa lógica ancestral só foi abalada pelo processo de colonização portuguesa, que chegaram na região no século XVII, com os bandeirantes que vão confrontar e promover grandes perseguições aos povos originários da região, para assegurar a posse da terra através inicialmente da criação de gado.
Nesse contexto, o núcleo populacional da vila do Poty é gestado. Essa povoação é composta pelos fazendeiros de gado, negros escravizados e indígenas tratados por “caboclos”. No processo de criação de Teresina, a população não grata da Vila do Poty é desconsiderada, sendo que os mais ricos são privilegiados pelo presidente Antônio Saraiva na construção de Teresina, na Chapada do Corisco. Dessa forma, Teresina nasce racista e ignorante das suas raízes.”
A Biblioteca Entre Rios é a concretização de um sonho que só está sendo possível graças a um projeto que aprovamos no ano de 2023 pelo Instituto Brasileiro de Museus, IBRAM. Esse projeto político comunitário tem como núcleo central o fortalecimento do pensamento do nosso povo indígena e negro da região de da Zona Norte e da Grande Teresina.
A pedagogia que utilizaremos na biblioteca é inspirada na pedagogia comunitária, estudo do pensamento dos nossos autores e autoras, Maria Sueli e Nêgo Bispo, a oralidade dos nossos mais velhos e mais velhas.
Praticando a oralidade em rodas de conversa, vamos estudar textos e promover debate com a comunidade e com todos e todas da cidade de Teresina.
Engana-se quem pensa que a nossa história é uma história encerrada ou que chegamos aqui de qualquer jeito. Sabemos quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Não existe teoria sem prática. Os nossos modos de viver, de fazer todos os nossos ofícios contradizem a história dos colonizadores, porque foram ofícios, e são ofícios, e continuarão sendo ofícios dos nossos antepassados: mexer com o barro, com a pesca, com a vazante.
A biblioteca Entre Rios surge justamente para que nós possamos fortalecer a nossa vida e a nossa cultura.”
Autoria de Maria Lúcia.
Tecido por Raimundo Silva, Joina, Wil, Sarah e Augusto.
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