Direitos humanos de mulheres são desrespeitados quando elas permanecem isoladas com seus agressores
Este conteúdo faz parte da série de reportagens sobre Direitos Humanos realizada pelos estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) matriculados na disciplina Direitos Humanos, Comunicação e Políticas Públicas, unidade ministrada pelo professor Dr. Antonino Condoreli. As reportagens têm como objetivo refletir as questões de direitos humanos criando ambiente crítico no âmbito da mídia, além de contribuir para a disseminação dos conteúdos acadêmicos na sociedade.
Por Anna Vale, Douglas Lucena e Germano Freitas
Em decorrência da maior crise sanitária do século XXI, nações inteiras adotaram o distanciamento social como uma das ações mais práticas e eficazes para evitar a propagação do novo coronavírus. Como efeito colateral, famílias inteiras passaram a ficar mais tempo juntas, confinadas dentro de casa. O que para alguns pode parecer uma realidade simples, para outras se torna um pesadelo na vida real quando o maior tempo passado com familiares agressivos tende a significar a continuação de um longo ciclo de violência.
Apenas nos meses de março e abril, com a adoção da quarentena no território brasileiro, os números do feminicídio dispararam cerca de 22% em 12 estados, quando comparados ao mesmo período de 2019. Os dados são do relatório “Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19” do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), produzido a pedido do Banco Mundial.
Uma percepção ainda pior é o indício de que a subnotificação pode ter aumentado: só no estado de São Paulo, os chamados à Polícia Militar neste mês de março aumentaram em 44,9% em relação ao ano anterior. Estando mais próximas de seus agressores e com menos oportunidades, fica mais difícil para as vítimas pedirem ajuda.
A alta dos números vem no mesmo ano que a Lei do Feminicídio, que tipifica o crime no Brasil, completa cinco anos. Proclamada em 2015, a lei transformou assassinatos de mulheres envolvendo violência doméstica e questões de gênero em crimes hediondos, com penas de até 30 anos de reclusão.
Tal fenômeno não passou despercebido pelo poder legislativo. Até o início de julho deste ano, a Câmara dos Deputados havia recebido 12 projetos de lei sobre violência contra a mulher na pandemia. Entre eles, o PL 1291/2020 veio a se tornar a Lei nº 14.022 de 07/07/2020, que “dispõe sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública” referente à Covid-19.
Além disso, o PL 1.444/2020 passou na Câmara dos Deputados, com relatoria de Natália Bonavides e aguarda data para apreciação no Senado. O projeto altera a Lei 13.979/2020, que define regras para o enfrentamento da Covid-19, visando criar medidas de proteção à mulher em situação de violência durante a pandemia, estabelecendo o afastamento do lar, prazos para medidas protetivas, visitas periódicas da polícia, atendimento domiciliar e auxílio emergencial às vítimas.
Para a jornalista Sara Stopazzolli, autora do ebook “Elas em Legítima Defesa – Elas Sobreviveram Para Contar”, tal crime ainda não diminuiu por uma questão cultural, pois mesmo com a sua punição e nomeação, os homens continuam vendo mulheres como suas propriedades.
“Essa nossa cultura punitivista não vai mudar a realidade – podemos punir um agressor aqui, outro ali, mas o que vai de fato mudar a situação é a educação,” explica. “É preciso de informação sobre o que é um relacionamento abusivo, o que é o ciclo da violência, para evitar que o homem se comporte dessa maneira e que a mulher entre em uma situação que possa chegar a esse ponto [de precisar usar da legítima defesa]”.
A importância da conceitualização e tipificação
A criação de uma cultura de educação e informação ao redor das vítimas muitas vezes têm início na própria legislação. A Lei Maria da Penha, conhecida hoje como o principal mecanismo brasileiro de proteção e prevenção à violência doméstica, familiar e de gênero, é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três mais avançadas do mundo. Apesar disso, ela não foi sancionada até 2006, após uma longa jornada que levou o caso da homônima Maria da Penha à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos e condenou o Brasil por sua ineficiência e negligência em coibir a prática da violência doméstica contra a mulher e omissão em proteger suas vítimas.
O principal motivo por trás das dificuldades de condenar o marido de Maria da Penha se deu pela falta de um mecanismo adequado de enquadramento do crime por décadas sofrido por ela. Hoje, a violência doméstica e familiar contra a mulher é configurada pela Lei Maria da Penha como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, quer aconteça em casa, no âmbito familiar ou em um relacionamento.
Além de se tratar de uma via jurídica para definir o crime e garantir a punição dos agressores, ela também promove uma rede integrada de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher. É dever do governo criar políticas públicas de prevenção, assistência e proteção às vítimas, o que resultou, ao longo do tempo, na criação e ampliação, por exemplo, das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, Casas-abrigo, Centros de Referência da Mulher e instituição das medidas protetivas de urgência.
Tais medidas resguardam o agravamento da violência, que pode chegar ao homicídio. Conforme tipificado na lei mencionada anteriormente, o “feminicídio” é um termo usado para caracterizar o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Ao longo do tempo, principalmente na América Latina, essa nomenclatura tem sido amplamente utilizada com fins políticos por movimentos feministas, com o intuito de denunciar a violência contra o gênero e a impunidade dos agressores.
Reflexos do Brasil para o mundo
É essencial lembrar que, como signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), o Brasil tem a obrigação de promover e garanti-los a todos os seus cidadãos, independente de políticas de governo, conforme previsto na Constituição Federal de 1988.
Crimes de gênero, como violência doméstica e feminicídio, constituem ofensa contra a dignidade humana, manifestando a desigualdade entre o homem e a mulher no que diz respeito ao tratamento e proteção pela lei. Além disso, ferem os direitos fundamentais à vida e à segurança ao permitir que a pessoa do gênero feminino seja submetida a tal tratamento degradante. Ratificada em solo brasileiro, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994, é a primeira de sua classe a criminalizar tais formas de violência, garantindo, inclusive, os direitos daquelas que se encontram em situação de risco por fatores externos.
Com o objetivo de assegurar o direito fundamental, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, também conhecida por Convenção da Mulher – responsável por instituir a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, que define padrões internacionais para mitigar a discriminação contra as mulheres e assegurar a igualdade apontada tanto na Carta das Nações Unidas quanto na própria DUDH.
Apesar dos avanços no cenário nacional, como as já citadas medidas durante a pandemia, a representação brasileira no exterior não só deixa a desejar, como caminha no sentido contrário aos de outros países latino-americanos, como México e Peru, que tipificam o crime de feminicídio em diversas definições e com isso vão, aos poucos, fechando o cerco ao redor dos agressores.
ONU
Um exemplo pode ser observado ainda no início deste mês de outubro, quando o país deixou de apoiar uma resolução que seria votada na ONU, tratando justamente sobre a proteção de mulheres e meninas em áreas de conflito ou crise humanitária. A justificativa do governo brasileiro foi de que tal proposta desequilibraria a relação entre países ao colocar obrigações para quem recebe imigrantes.
A ausência de apoio ao texto se soma a uma série de posturas polêmicas do Itamaraty que, ao longo dos últimos meses, tem vetado qualquer tentativa de textos oficiais citarem referências à saúde reprodutiva ou sexual, evitando abrir brechas para uma suposta legalização do aborto. Ainda, a gestão atual tem adotado uma postura de barrar termos como “igualdade de gênero” nos projetos, além de hesitar em dar seu apoio em debates sobre questões de gênero.
Torna-se claro que o caminho seguido pelo país reflete o pensamento limitado acerca de temáticas humanitárias. Em meio ao cenário de crise, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pouco tem feito para fazer jus aos seus deveres primordiais ao não priorizar a questão do feminicídio durante a pandemia. A atenção prestada por membros do Poder Legislativo serve apenas como paliativo, que não deixa de ser bem-vinda, mas o Brasil tem um longo caminho para promover a segurança de suas cidadãs – tal indiferença do Executivo dá abertura para a normalização de problemáticas que ferem os direitos humanos.
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