Orgulhoso, o agricultor Francisco Washington Rodrigues exibe os alhos cultivados e colhidos em seu terreno. Na área que antes era improdutiva, seca e sem boas perspectivas de investimento, agora é possível encontrar plantações de hortaliças, milho, feijão e banana, além de uma pequena criação de gado. “Essas terras aqui antes não valiam nada, eram áreas com solo ruim, hoje em dia a gente aproveita muito as terras é uma área dentro da desertificação onde a gente produz tudo”, afirmou o agricultor.
Francisco Washington é morador de Gilbués, no Piauí, a 773 quilômetros da capital Teresina, no coração de uma das quatro regiões brasileiras consideradas oficialmente como núcleo de desertificação pelo Governo Federal. A região possui características naturais de clima, relevo e solo propícias à degradação, mas pesquisadores afirmam que a ação antrópica, sobretudo associadas ao desmatamento causado por latifundiários e também a extração desordenada de diamante no município, que acontece desde 1940, contribuíram para o agravamento acelerado da desertificação.
Com isso, Gilbués se configura como um grande deserto de terras vermelhas tomado por voçorocas de grande profundidade. Uma grande área com um solo com pouca ou nenhuma capacidade de se regenerar devido a escassez de vegetação capaz de protegê-lo, e que é suscetível a carregamentos de cascalho que acontecem nos períodos de chuvas intensas.
O resultado são 805 Km2 de terra em tom vermelho, em alguns pontos mais intenso como um carmim em outros mais alaranjado, com grandes depressões, verdadeiras crateras que formam uma paisagem singular, que os visitantes e matérias jornalísticas comparam a um pedaço do planeta Marte na Terra. Quem é de fora estranha, mas os quase 11 mil gilbueenses se encantam com suas terras vermelhas e já não associam o deserto à pobreza.
É nesse cenário em que Francisco Washington celebra suas improváveis colheitas.
Por décadas, parecia que voltar a viver de agricultura em Gilbués seria impossível, Isso mudou em 2006, quando um projeto do Governo Federal trouxe outra perspectiva para as famílias de agricultores.
Lançado pelo Ministério do Meio Ambiente com o objetivo de realizar medidas de combate à desertificação, o Núcleo de Pesquisa de Recuperação de Áreas Degradadas e Combate à Desertificação (Nuperade) aportou na cidade de Gilbués em 2006 e foi responsável por firmar parcerias entre agricultores, técnicos e pesquisadores.
O município nordestino foi o primeiro e único a receber o programa, que funcionou até 2016, com ações de estudos e testagens de tecnologias para o controle de degradação e recuperação das áreas degradadas. O Núcleo integrava as ações do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil). A sede do projeto em Gilbués custou R$ 100 mil para ser construída, mas agora está fechada. No lançamento, a ministra Marina Silva – em sua primeira passagem pelo Ministério do Meio Ambiente – afirmou que o projeto tinha como objetivo “curar a terra ferida”.
Um dos beneficiados pelo Nuperade, Francisco Washington relembra como eram as atividades do projeto: “Nós tivemos treinamentos, recebemos adubos pro solo, aprendemos a cuidar melhor da terra, e isso foi muito importante para todos os agricultores da região, mas infelizmente o projeto não continuou e fica difícil pra gente dar conta sozinho de recuperar as terras degradadas”.
ESPERANÇA INTERROMPIDA
Francisco é conhecido entre os colegas como um sujeito que não perde a esperança. Ele nunca deixou de acreditar que as terras de Gilbués podem voltar a produzir alimentos. Por isso que, quando os técnicos da secretaria estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, responsável pela execução do projeto, chegaram em Gilbués apresentando a ideia de mutirões para fazer o manejo adequado da terra, ele foi um dos primeiros a aceitar a oferta. E nunca faltou às atividades.
Inicialmente, o Nuperade se concentrava em viabilizar as lavouras de milho e feijão. Francisco não se contentou com apenas duas possibilidades e insistiu que seria possível apostar em outras culturas. A persistência foi recompensada:
“Aqui nós produzimos a hortaliça, a banana, o tomate, o milho, o feijão e também criamos um pouco de gado. O que plantar dá, até girassol eu já plantei aqui. As únicas coisas que plantei e não vingaram foram o pé de caju e a mangueira. Mas olha a beleza desses alfaces, desses alhos, tudo colhido aqui no deserto”, orgulha-se Francisco Washington.
Por causa da grande quantidade de voçorocas, conhecidas pelos agricultores da região como grotas, uma das estratégias propostas pelos pesquisadores do projeto Nuperade foi ensinar as famílias agricultoras a fazer curvas de nível nas terras a fim conter o aumento da erosão. Uma técnica curiosa foi aproveitar a profundidade das grotas para a piscicultura. A ideia de criar peixes, bem recebida no início, acabou não dando muito certo, pois as chuvas intensas provocavam enxurradas que acabavam destruindo os tanques.
“A gente saía queimando as terras para dar espaço pro gado, mas a gente não sabia que isso só piorava a situação”.
A falta de conhecimento sobre o manejo adequado das terras em Gilbués foi um fator importante para agravar o processo de degradação do solo e piorar a desertificação no território, como aponta o agricultor José Rodrigues Santos: “antigamente a gente não sabia como plantar aqui, então aproveitava para criar gado, e para isso saía queimando as terras para dar espaço pro gado, mas a gente não sabia que isso só piorava a situação”.
Conhecido como Zé Capemba, o agricultor vive em uma propriedade rural extensa, com plantações de milho e hortaliças e criação de gado, junto com sua esposa Zilmar Barbosa. Ambos reconhecem os benefícios trazidos pelo Nuperade e lamentam o fim das ações do projeto. “Antes aqui era muito mais deserto, porque a gente tinha que fazer tudo na força bruta, não tinha máquina, não tinha os adubos certos para a terra, era tudo na base da enxada. O projeto foi uma benção para nós”, declarou o agricultor.
“Eu mobilizei os outros agricultores daqui, os vizinhos e fomos atrás dos recursos para essa área, então quando o projeto chegou muita gente se beneficiou, mas depois que ele parou também muita gente desistiu e foi embora”, recorda Zé Capemba. Ele conta que a população da região já viu as autoridades anunciarem vários projetos que sequer saíram do papel. “Já teve até um projeto para criar um sistema de irrigação, mas nunca vai para frente, parece falta de vontade”, reclamou.
As atividades do Nuperade foram interrompidas em 2016, logo depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff e a ascensão ao poder do seu vice, Michel Temer. Agora, a sede localizada em Gilbués está fechada, sem funcionamento e com a estrutura desgastada.
De acordo com Aline Araújo, auditora fiscal ambiental da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí, no momento, a região de Gilbués não possui nenhuma atividade de mitigação e prevenção para as áreas degradadas e desertificadas: “Infelizmente não conseguimos manter o projeto por muito tempo. Atualmente todas as atividades de combate à desertificação do Nuperade estão paralisadas, mas nós estamos em um esforço para conseguir fazer uma parceria com as instituições de ensino do estado do Piauí para que elas possam desenvolver pesquisas no local”.
A auditora acrescenta que as autoridades estaduais iniciaram diálogo com a diretoria de Combate à Desertificação do Ministério do Meio Ambiente para conseguir recursos para a região de Gilbués. “Temos boas expectativas porque o ministério se mostra aberto ao diálogo e neste ano nós trabalhamos para levantar os dados que precisamos para colocar em prática ações efetivas”, disse a auditora.
DESERTO COM CHUVAS
Para o meteorologista e coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélite da Universidade Federal de Alagoas (Lapis/UFAL), Humberto Barbosa, a formação do chamado deserto de Gilbués resulta de uma situação “ímpar”, associação de diversos fatores.
“Se a gente pega o Brasil como uma região, como um território, a desertificação não é um processo natural. A nossa origem era uma cobertura vegetal vasta, não tinha deserto. O que é deserto? Quando você tem regiões com chuva de menos de 250 milímetros por ano, é uma condição geomorfológica. Gilbués se difere de todas as outras, porque em Gilbués chove e algumas chuvas acontecem acima da média, só que ela está inserida no semiárido e ela tem uma componente crítico de chuvas danificando o solo associada às questões econômicas da região que provocaram a desertificação. O excesso de chuva, e o impacto da energia dessa chuva faz com que ela escorra no solo arrastando os nutrientes provocando assim a perda da qualidade do solo e agravando as erosões, com isso, Gilbués é uma soma de grandes voçorocas”, explicou Barbosa.
O Piauí conta com um extenso território semiárido suscetível à desertificação, abrangendo 185 dos 224 municípios do estado.
De acordo com os estudos do pesquisador da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e mestre em Agronomia, Fabrício Brito Silva, o Núcleo de Desertificação de Gilbués inclui os territórios de 15 municípios: Gilbués, Barreira do Piauí, Corrente, São Gonçalo do Gurguéia, Riacho Frio, Monte Alegre do Piauí, Bom Jesus, Redenção do Gurguéia, Curimatá, Cristalândia, Parnaguá, Júlio Borges, Avelino Lopes, Morro Cabeça no Tempo e Sebastião Barros.
Ainda de acordo com Brito Silva, os fatores que contribuem para que o estado nordestino seja suscetível à degradação ambiental são os baixos índices de pluviometria, com chuvas concentradas em períodos curtos de tempo e estiagem prolongada, uso inadequado dos recursos naturais, atividade agropecuária desordenada e desmatamento indiscriminado.
O monitoramento do semiárido realizado pelo laboratório coordenado por Humberto Barbosa identifica que a região está em transformação por causa do fenômeno global das mudanças climáticas, com áreas áridas em, pelo menos, quatro estados brasileiros, incluindo Gilbués. O meteorologista explica que essas áreas áridas influenciam na redução das nuvens de chuva na região. Segundo o especialista, “a degradação severa das terras integra um processo que retroalimenta uma tendência de aumento da aridez atmosférica e influencia na expansão das áreas áridas e semiáridas”.
Com isso, o estudo reconfigurou o mapa da desertificação e incluiu a categorização das áreas “áridas”, que são identificadas a partir da análise da aridez atmosférica, da condição da cobertura vegetal e dos solos severamente degradados. A pesquisa foi desenvolvida usando dados de satélites que identificaram um aumento da radiação de onda longa e redução de nuvens em áreas áridas com degradação severa, o que demonstra uma ausência de chuvas vinculada ao aumento das temperaturas, tornando a região central do semiárido mais suscetíveis ao processo de desertificação.
Com isso, asregiões onde chove menos de 800mm/ano, consideradas áridas, aumentaram sua área territorial de 569,4 mil Km2 para os atuais 796 mil Km2. Já o crescimento do território susceptível à desertificação foi de 710 mil Km2 para mais de 1,08 milhão de Km2.
“Eu acho que nessa componente da desertificação tem uma questão muito específica de como os municípios no Brasil, nos últimos anos, saíram dessa transição do que era uma região que não era terra seca, não era semiárida e passou a ser. Mesmo não conhecendo os termos técnicos, a população tem o conhecimento empírico sobre a desertificação, no interior do Nordeste as pessoas estão adaptadas a conviver com as áreas degradadas. Na prática, a população está convivendo com uma escassez de água, com a escassez de alimentos e tentando se adaptar a esse novo ambiente que está em transformação”, afirma Humberto Barbosa.
Zilmar Barbosa, companheira de Zé Capemba e também agricultora, relembra como são os períodos de seca na região, confirmando o que diz o meteorologista da UFAL: “agora as coisas melhoraram porque temos um poço, mas em período de seca é muito difícil. Os animais morrem, as árvores secam, nós não tínhamos água em casa, então eu tinha que ir até o riacho para pegar água, ia carregando as garrafas de água em cima do jumento e às vezes carregava na cabeça mesmo. Nos últimos quatro anos está ficando mais seco de novo, se não fosse esse poço eu não sei o que seria da gente, mas eu tenho fé que vai chover e vai melhorar”.
A agricultora, que mora na área rural de Gilbués há 39 anos, criou seus dez filhos na região desertificada, mas nenhum deles ficou na região para dar continuidade às atividades agrícolas e pecuárias. Agora, ela e Zé Capemba permanecem no local e seguem produzindo alimentos para subsistência graças às técnicas que aprenderam com o Nuperade. “Eu não gosto muito da cidade não, eu gosto é de ficar aqui mesmo”, disse Zilmar.
REPORTAGEM DE INÁCIO FRANÇA E GIOVANNA CARNEIRO / PUBLICADO ORIGINALMENTE EM MARCO ZERO CONTEÚDO
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