
Reportagem: Luan Matheus Santana e Tânia Martins | Edição: Luan Matheus Santana
A primeira Audiência Pública para instalação do projeto SOLATIO H2V PIAUÍ, realizada na última quinta-feira (23) e voltada para a produção de Hidrogênio Verde e Amônia na Zona de Processamento de Exportação (ZPE) de Parnaíba, foi alvo de duras críticas por parte de representantes dos movimentos socioambientais, pesquisadores e outros segmentos da sociedade civil organizada que estiveram na Audiência. Sem nenhuma fala favorável ao empreendimento (à exceção das exposições da empresa, do governo e dos consultorias ambientais), o que ecoou dentro do auditório da Associação Comercial de Parnaíba foi indignação, revolta e inúmeras denúncias de irregularidades no processo.
Foram muitos os questionamentos e quase nenhuma resposta satisfatória por parte da Solátio ou da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos – SEMARH/PI. A começar sobre o fatiamento do licenciamento do empreendimento em diversas etapas, sendo o primeiro (objeto de discussão da audiência pública) apenas a planta do parque industrial. Os demais equipamentos, como captação de água do Rio Parnaíba, despejo de rejeitos e efluentes no rio, Estação de Tratamento de Efluentes (ETE), linhas e transmissão de energia (500 KV, de 20 km), entre outros, serão licenciada separadamente, como se não pertencesse ao conjunto global do empreendimento.

Trocando por miúdos, em caso de aprovação do Licenciamento Ambiental, a Solátio assumiria o risco de investir bilhões de reais na construção de um Parque Industrial, sem a certeza de que os demais equipamentos seriam licenciados, incluindo, o principal deles que é a captação de água do Rio Parnaíba, cujo outorga de uso é concedida pela Agência Nacional de Águas (ANA).
Adalberto Pereira, representante do Grupo de Trabalho sobre os Impactos das Energias Renováveis, alertou para os riscos do fatiamento do licenciamento. “A responsabilidade é muito grande, inclusive, de atropelar um processo em curso que é antecipar um licenciamento para que a empresa faça os investimentos dessas instalações, quando na verdade, o estratégico, e o que nos preocupa, é justamente a questão hídrica. Estamos em um estado que, apesar de se propagar que tem água em abundância, ainda tem muita gente passando sede, dependente de água da chuva nas cisternas para beber”, afirmou.
O ambientalista ainda chamou atenção ainda para responsabilidade dos gestores públicos, dos consultores ambientais e da própria empresa. “Esse é um processo que vocês podem ser responsabilizados judicialmente. É sério. Quando a gente diz que é fatiamento, é porque está comprovado, inclusive, vocês todos aqui confessaram, tá gravado, que estão começando a licenciar o empreendimento por essa planta, que é um estudo muito resumido”, finalizou.

De acordo com a engenheira sanitarista e ambiental, Carolina Penteado, que também é presidente da Associação Piauiense de Engenharia Ambiental e Sanitária, embora esse seja um empreendimento que envolve diversas atividades econômicas (captação de água, geração de afluentes com estação de tratamento, construção de linhas de transmissão de energia, etc.), a avaliação de impacto ambiental precisa ser feita de forma global. “Como preconizam as nossas referências técnicas, o estudo precisa ser global. Dentro desse Estudo de Impacto Ambiental, eu não vi nenhum tipo de análise detalhada do ciclo hidrológico e dos impactos que vão estar associados a ele. Também não vi nada que trouxesse atualização do ponto de vazão para ponto de captação, com modelagem hidrológica avançada para simular o comportamento do rio com o empreendimento funcionando. Temos tecnologia para realizar esses estudos, mas eles não estão no EIA/RIMA”, afirmou.
Segundo os representantes da Solátio, esses estudos serão realizados em momento posterior, com todos os detalhamentos necessários e estudos mais complexos. Sobre isso, o secretário de Meio Ambiente, Feliphe Araújo, reforçou o argumento da empresa, afirmando que o debate atual trata exclusivamente da licença de implantação da planta industrial. “É importante destacar que essa primeira audiência pública é para tratar da licença de implantação da planta industrial, então não é ainda o processo operacional em si. Nós temos destacado para a população que, por exemplo, a extração de água do rio é uma atribuição da ANA, que será feita em um momento posterior. A empresa está fazendo uma das etapas que ela precisa para operacionalizar o projeto, e tratamos nesta audiência da licença para a implantação, que compete à Secretaria de Meio Ambiente do Piauí”, explicou o gestor.

Para os representantes da sociedade civil presentes, o fracionamento do licenciamento viola os princípios da precaução e da prevenção ambiental, uma vez que não apontam os impactos socioambientais decorrentes dos demais equipamentos. “Não é possível aferir, de forma tecnicamente segura, os impactos ambientais e, por conseguinte, a real viabilidade do empreendimento sem estudos seguros”, argumenta Adalberto Pereira, representante do GT, se referindo, por exemplo, a estudos que analisem riscos acumulados como a possível instalação de várias plantas de hidrogênio verde na mesma região, vazamentos, incêndios e explosões que, embora subestimados, são riscos reais e inaceitáveis, sobretudo em zonas próximas a residências.
Flexibilização da legislação ambiental no Piauí viabilizou emissão de Licença Prévia sem estudo de impacto ambiental
Por trás da fachada de inovação sustentável, oculta-se uma série de riscos ambientais e sociais que ameaçam ecossistemas inteiros e comunidades tradicionais. Embora o empreendimento já tenha obtido Licença Prévia (PI-LP.05695-1/2023), o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) só foram publicizados no dia 18 de março deste ano e debatidos apenas na última quinta-feira, durante a Audiência Pública. Especialistas e representantes da sociedade civil questionam a legalidade do processo, que teria ignorado normas federais que exigem, para atividades com significativo potencial de degradação ambiental, a realização e apresentação prévia de estudos de impacto ambiental (EIA) e audiências públicas abertas e informadas.
De acordo com o auditor fiscal da SEMARH-PI, Felipe Gomes, com a normativa o Piauí tornou-se mais atrativo para receber investimentos de hidrogênio verde, na medida em que possibilita aos empreendimentos condições mais seguras. “Primeiro se tem essa licença prévia provisória. Quando o empreendedor tem certeza da viabilidade do projeto, ele retorna, para a ratificação da licença prévia. A Resolução 52 trouxe isso para produção de Hidrogênio Verde. É necessário primeiro verificar se há pelo menos o indício de uma viabilidade financeira, para depois investir em estudos ambientais, que sabemos que não são baratos, são complexos e demorados, para que depois a gente possa ratificar. Esse processo aqui (Audiência Pública) é a confirmação da licença prévia”, explicou.
A Resolução estadual CONSEMA nº 52/2023 recebeu muitas críticas do movimento socioambiental, que afirma que ela é uma forma de flexibilizar as exigências no Piaui e que está em flagrante conflito com a legislação nacional, incluindo a Resolução CONAMA nº 09/1987. “Licença Prévia para esses empreendimentos dependem de um prévio Estudo de Impacto Ambiental, que é o EIA/RIMA. Como se deu esse processo da emissão da Licença Prévio, que foi feita através de Estudo Ambiental Preliminar, com um escopo resumido para avaliar impactos ambientais?”, questionou a Engenheira Sanitarista Carolina Penteado. Para a engenheira, trata-se de um atalho burocrático que ameaça direitos constitucionais básicos, como a participação pública na defesa do meio ambiente.

Promessas vagas, investimentos incertos
No discurso oficial, o projeto promete geração de empregos e desenvolvimento econômico. Na prática, o Programa de Capacitação Técnica se mostra superficial e sem metas claras. Não há cronogramas definidos nem parcerias estabelecidas com instituições de ensino técnico, como o SENAI, mesmo com as obras prestes a começar.
No pico de contratações, há a previsão de 2300 vagas, sendo 200 pessoas para o escritório e 2.100 de mão de obra direta. “Quando do pico da obra, que ocorrerá entre os meses 20 e 21, estima-se que haverá 2.300 colaboradores envolvidos com a construção do projeto”, afirma o estudo. Após a fase de implementação, a oferta de emprego reduzirá para 300 funcionários.
Rhavena Madeira, advogada e diretora executiva da ONG Filha do Sol, questionou o legado social que a empresa pretende deixar no Piauí. “Quais investimentos sociais serão feitos? Que compromissos formais de responsabilidade social serão firmados com a cidade de Parnaíba e com o Estado do Piaui? “Eu moro em Barra Grande, eu vivo essa terra. Essa Unidade de Conservação Federal existe para proteger o maior Delta das Américas. Mas o que realmente está sendo feito para mitigar os impactos nele?, afirmou.
Por ora, as respostas são vagas ou inexistentes, sem qualquer detalhadamente de metas.
Licença social: um direito da sociedade
A chamada “licença social para operar” não se conquista com discursos, mas com práticas transparentes e compromissos firmes. A forma apressada e irregular como o empreendimento avança lança dúvidas profundas sobre a sustentabilidade real do projeto e sobre quem pagará o preço do “desenvolvimento verde” no Piauí.
Num momento em que o mundo exige transições energéticas justas e inclusivas, o modelo implantado em Parnaíba parece repetir velhas práticas: maximizar lucros para poucos, socializar riscos e danos para muitos. O hidrogênio pode até ser verde. Mas os impactos, ao que tudo indica, serão de um cinza profundo — e com consequências duradouras para ecossistemas e comunidades que já vivem à margem das grandes decisões.
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