“Hemopi desperdiça milhões em litros de sangue por puro preconceito”, diz fotógrafo impedido de doar por ser gay
O fotógrafo Jonathan Dourado publicou um desabafo nas redes sociais, onde relata que, pela primeira vez, foi proibido de doar sangue por ser “um homem que transa com homens“. A justificativa foi da médica que o atendeu e consta na resolução 153/2004 da Anvisa.
O caso aconteceu nesta quinta-feira, 02 de abril, no Hemopi – Centro de Hematologia e Hemoterapia do Piauí, em meio a uma pandemia gravíssima, onde milhares de vidas dependem de atitudes solidárias como a que Jonathan tentou ter, mas foi impedido.
O fotógrafo de 26 anos ia doar sangue pela terceira vez. Acordou cedo e foi de bike até o hemocentro, onde já havia agendado a doação. Antes de chegar à sala de coleta, Jonathan foi barrado na triagem, a qualidade do seu sangue foi questionada por uma portaria que exigia que ele, enquanto homossexual, tivesse há pelo menos 12 meses sem ter praticado sexo.
Para doar, Jonathan teria que abdicar de sua sexualidade por um ano.
“Das outras duas vezes, isso não foi perguntado. Perguntaram se eu havia usado camisinha. Eu já sou doador, me previno, faço sexo saudável”, lembrou.
Barrado sem nenhuma análise clínica, apenas pelo preconceito institucional, Jonathan relembra que ficou em estado de choque.
“Eu fiquei assustado dessa vez isso acontecer. Eu me senti muito discriminado no momento que aconteceu. Mas no instante que aconteceu eu só fiquei em choque. Eu não consegui falar, questionar, fazer barraco. Isso é devastador. Existe uma campanha para as pessoas virem doar sangue. Não tem sangue, as bolsas de sangue estão baixas, as pessoas estão precisando para fazer cirurgias”, lembra.
A necessidade de doações pelos bancos de sangue chegou a ser confirmada semana passada pelo diretor do Hospital Getúlio Vargas (HGV) e pelo próprio diretor do Hemopi, que gravaram vídeos pedindo a colaboração da população para doação em meio a pandemia. Apenas no HGV, mais de 10 pessoas aguardam reforço no estoque de sangue para serem submetidas a cirurgias urgentes, por fraturas e por complicações no sistema nervoso.
O conceito se grupo de risco deveria acabar
As normas em saúde insistem em considerar homossexuais como grupo de risco. As regras são reflexos históricos do preconceito institucionalizado contra gays, bissexuais e transexuais que, mesmo com a luta histórica para se reafirmarem enquanto cidadãos com direitos civis, ainda são considerados “sangue ruim” em um momento de solidariedade e são impedidos, por lei, de fazerem doações.
O intem B.5.2.7.2 da resolução, trata sobre Situações de Risco Acrescido e torna inabilitado de doar sangue, entre outras casos, “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e ou as parceiras sexuais destes“. De fundo, o que motiva essa decisão é a falsa idéia de que LGBTs se enquadram em grupos de riscos para disseminação de ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), como HIV/AIDS.
Tão velho quanto a compreensão dessa resolução é a ideia de grupos de riscos e de que HIV/AIDS é uma doença de LGBTs. A própria Secretária de Estado da Saúde do Piauí – SESAPI divulgou no final do ano passado, dados sobre pessoas que convivem com HIV/AIDS no estado. O número de 2019 é o maior dos últimos 10 anos. O perfil são jovens, entre 15 e 34 anos (69%) e HETEROSSEXUAIS (66%). O percentual de homossexuais que contraíram HIV/AIDS não representa sequer UM QUARTO do total.
“Quando o preconceito é institucional ele está no papel que você é diferente, isso fere muito mais do que se fosse qualquer pessoa na rua. Por já ser tão calejado de sofrer e preconceito por outros olhares, a gente vai criando uma casca e não se afeta como se se afetaria há 8 anos atrás , se a gente sofresse esse tipo de absurdo”, revela Jonathan, ainda muito abalado com o preconceito institucional.
Conversamos com ativistas que atuam na causa para compreender melhor as distorções que envolvem esse debate. Raimundo Poty, da Rede de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS no Piauí, é soropositivo há 26 anos. Para ele esse conceito de risco de pessoas LGBTs deveria acabar.
“Tem muitos heteros que são HIV positivo. Enquanto eles se preocupam com a sexualidade, se a pessoa é LGBT e que pra uma pessoa LGBT doar sangue tem que ficar 12 meses sem fazer sexo, tem muita gente precisando de sangue. Por isso eu acredito que a pessoa LGBT pode sim doar sangue sem precisar fazer a abstinência de sexo por 12 meses“, afirma.
O risco é o preconceito e o estigma
Vitor Kozlowski, ativista LGBT e membro da ARTGAY (Articulação Brasileira de Gays), é da mesma opinião. Para ele o termo “Grupo de Risco” é, inclusive, discriminatório. Ele defende que é preciso pensar em populações chaves e comportamentos de risco.
“O que aumenta o risco não é a orientação sexual ou a identidade de gênero da pessoa, mas o preconceito e estigma direcionado a elas“, afirma.
Para Victor, isso deve ser entendido como uma discriminação negativa oficializada pelo Estado, que reforça um estigma específico.
“Não há como dizer que isso não é transfobia e homofobia. É sim! Todo sangue que é doado, independente de quem seja, passar por testes. Se não me engano, desde 1993 não há transmissão de HIV e outras ISTs através de doações de sangue“, diz.
Mesmo indignado com discriminação legalizada que sofreu no Hemopi, Jonathan acredita que esse preconceito pode ser vencido.
“A comunidade LGBTQIA+ e várias outras letras, a gente precisa lutar para isso acabar. A gente não está nos anos 80. A gente já tem uma tecnologia e conhecimento para dizer que isso não existe, que isso não pode mais estar escrito na lei, não pode ser institucional, é muito indignante”, contou.
Decisões contestam resolução e alegam inconstitucionalidade
No ano de 2018, o Pleno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, ao julgar uma ação de um gay que foi impedido de fazer a doação, decidiu pela inconstitucionalidade da norma da Anvisa que proíbe homens homossxuais de doar sangue se tiverem tido relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses.
De acordo com o desembargador Cornélio Alves, a resolução da Anvisa fere os princípios da dignidade da pessoa humana e o dever de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, além de afrontar aos direitos fundamentais à igualdade e à saúde.
Na ação, o autor afirma que era doador desde 2007. Porém, em 2010, ao tentar doar sangue, foi impedido por ter afirmado que transou com outro homem. O impedimento no centro de coleta foi feito com base na Resolução 153/2004 da Anvisa.
Alegando que a norma é discriminatória e inconstitucional, o homem entrou com ação pedindo que o estado do Rio Grande do Norte fosse obrigado a fazer a coleta do sangue, sem observar a regra da Anvisa. Após ser julgada improcedente em primeira instância, o autor apelou ao Tribunal de Justiça pedindo a reforma da sentença e que fosse reconhecida de forma incidental a inconstitucionalidade da norma.
A 1ª Câmara Cível do TJ-RN acatou o pedido de inconstitucionalidade da norma e, seguindo o artigo 97 da Constituição, encaminhou o caso para o Pleno do TJ-RN, que confirmou a decisão declarando inconstitucional o item B. 5.2.7.2, Letra “D”, do Anexo I, da Resolução 153/2004 da Anvisa.
Fonte: www.conjur.com
Comments (1)
Guilherme Galdinosays:
25 de novembro de 2023 at 11:08 PMMeu mestrado é nesse tema, ajudem a gente nessa pesquisa: https://jornal.usp.br/campus-ribeirao-preto/usp-busca-homens-que-se-relacionam-com-homens-para-estudo-sobre-doacao-de-sangue/