O 7 de Setembro entra para a história como a data ‘oficial’ do grito de Independência do Brasil à Portugal.No imáginário coletivo, nos livros de história, filmes e novelas, a cena de Dom Pedro I com uma espada levantada nas margens do Riacho Ipiranga tem se mantido por 200 anos como protagonista desse processo. Nas contradições de um tempo imperial, o Brasil estaria se tornando ‘independente’ de Portugal, pelas mãos de um português. Mudou-se a coroa, manteve-se os tronos.
Há mais de um século, motivado por interesses militares, no dia 7 de Setembro jovens estudantes são obrigados a saírem às ruas, fardados, marchando como soldados em guerra. Tanques enferrujados deixam os quartéis para uma demonstração de força e militares de toda ordem exibem suas armas em praças públicas. Do alto dos palanques, gestores públicos observam os desfiles. De cima, sempre de cima! Em 2022, mergulhado em discurso autodeclarado ‘nacionalista’, o Governo Federal trouxe da Europa o coração do colonizador, para ‘celebrar’ a independência do Brasil. Um culto ao passado colonial, que reflete o futuro que eles querem para o país.
Dos filmes e livros de história, aos desfiles cívicos; dos tanques de guerra nas ruas ao coração do colonizador. A construção de uma narrativa colonial em nosso país vem sendo erguida há muito tempo, ensinando a nossas crianças apenas uma parte da história real, negligenciando a memória e participação do povo nos processos de luta, para assim fundar no Brasil uma falsa ideia sobre a sua independência.
O historiador e mestre em ciências políticas, Luis Carlos Albano, nos apresenta uma nova face dessa história dita ‘oficial’. Com focos nos processos de independência no Piauí, ele catalogou 1680 documentos oficiais disponíveis no Arquivo Público do Estado do Piauí, no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Digital da Torre do Tombo, entre os anos de 1820 e 1840.
“Eu começo pesquisando a história de Leonardo Castello-Branco (um dos líderes insurgentes da Vila de Parnaíba). Aprofundar o sujeito Leonardo me levou a muitas outras coisas, inclusive a esse itinerário da independência. A consequência de estudar uma trajetória é chegar a outros sujeitos, que possibilitaram ele fazer o que ele fez. Naturalmente esse outros sujeitos vão surgindo”, afirma.
Os sujeitos identificados por Luis Carlos são comerciantes e políticos da época, mas também homens e mulheres escravizadas/os, indígenas e negros/as recén libertos. No seu trabalho de pesquisa, o historiador consegue identificar nos documentos uma participação ativa escravizados e indígenas, cumprindo diversas funções, sendo a comunicação entre as províncias a principal delas.
“Isso não era uma participação passiva no processo. Muitos desses sujeitos, inclusive, se utilizaram dessa condição para negociar benefícios para seus povos. Eles poderiam não entregar as comunicações, mas entenderam que a independência também era necessária para melhorar suas condições de vida”, afirma.
O batalhão dos henriques: escravizados em luta pela independência em Valença do Piauí
Em um dos mais de 1600 documentos analisados por Luis Carlos albano, um chamou atenção: um oficio de julho de 1823 dava conta da criação de um Batalhão formado por escravizados negros, recém libertos. O Batalhão dos Henriques, como foi denominado, atuou onde hoje estão instalados os municípios de Valença do Piauí e Jerumenha.
Para o historiador, isso evidencia um processo de participação ativa dos povos escravizados, não apenas atuando na comunicação entre as províncias, mas também no fronte de batalha pela independência. Os documentos que tratavam da participação de escravizados e indígenas eram raros, todavia sua existência já demonstra um certo acobertamento dessa parte da história.,
“Com certeza essa participação foi muito mais ativa do que podemos comprovar pelos documentos. Seja pela ausência, seja pela forma como foram narradas. É provável que tenha acontecido em Valença algo próximo de Campo Maior, onde os anseios populares foram registrados oficialmente como atos contrários à ordem”, afirma.
As mulheres de Oeiras: a participação feminina nos processos de independências
Luis Carlos ressalta que, até então, a historiografia praticamente não tratava sobre a participação das mulheres nesses processos e, quando falavam, ressaltam apenas a ‘coragem’ das mulheres ao deixarem seus maridos saírem de casa para as batalhas.
Entretanto, o pesquisador acredita que elas tiveram uma participação bem mais direta do que se imagina, uma vez que muitas delas acabaram assumindo o controle das fazendas. Em um documento de janeiro de 1823, ele conseguiu identificar pelo menos três mulheres que atuavam no fornecimento de farinha para as trocas que estavam em batalha.
“A princípio, isso não parece ser tão relevante, mas aí entra o trabalho do historiador de identificar o contexto. Naquele momento, a farinha era uma das principais fontes de alimentação e estava em falta. Foram mulheres que administravam suas fazendas, e que possivelmente tinham trânsito comercial, que fizeram essas doações para alimentar as tropas, ou seja, elas ajudaram a manter essas tropas”, afirma.
Povos indígenas: independência e revide a séculos de perseguição e extermínio
Em 1800, a história de massacre e expulsão aos povos originários já era antiga, datada desde a chegada dos portugueses em 1500. Diversas tribos indígenas, que já sofriam com séculos de extermínio ou haviam sido expulsos de seus territórios, também se uniram na Guerra da Independência do Brasil. É o que conta a Batalha do Jenipapo, ocorrida em 23 de março de 1823 e que juntou o povo Tabajara nas trincheiras da guerra contra os portugueses.
Invisibilizado pela história única, que traz o mês de setembro como o marco da independência brasileira às margens do Riacho Ipiranga, em São Paulo, o dia 13 de março relembra a história de uma outra luta às margens do Rio Jenipapo. Ocorrida em 1823 na Vila de Campo Maior, hoje município de Campo Maior (PI), a Batalha foi um dos confrontos mais sangrentos da Guerra da Independência do Brasil e reforça que a luta contra o colonizador não acabou em 1822 com o grito de Dom Pedro I.
O que a história da batalha também registra é o papel fundamental da união dos brasileiros piauienses, cearenses e maranhenses contra as tropas do major português João José da Cunha Fidié, encarregado de manter o controle de Portugal no Norte do Brasil. De igual importância estão os povos originários, que já viviam no território quando este ainda nem se chamava Brasil e já resistiam a séculos de perseguição e extermínio no povoamento das vilas piauienses criadas pelos bandeirantes vindos de São Paulo e da Bahia.
No conflito ocorrido no Piauí pela independência de territórios do Norte do Brasil, o povo Tabajara se juntou aos colonos piauienses da capitania recém-criada. Estudos como o do professor historiador, Johny Santana de Araújo, da Universidade Federal do Piauí, comprovam essa participação na luta pela independência e as poucas conquistas dadas aos indígenas após esse processo.
A participação de povos indígenas na Guerra da Independência do Brasil também foi registrada em outras regiões, a exemplo da Bahia. Mesmo se juntando aos colonos brasileiros, sendo linha de frente e derramando seu sangue, pouco lhes foi dado de créditos e de direitos. A luta pelo direito à terra roubada continua sendo negada e ameaçada a esses povos originários no assim chamado Brasil independente, proclamado por Dom Pedro I, filho do rei de Portugal.
A prova maior é que os povos indígenas sequer são citados na nova constituição proclamada por Dom Pedro I após a independência.
O Pós-independência e a manutenção das relações de poder
Durante os processos de independência, Luiz Carlos explica que parte dos povos indígenas e escravizados se envolveu politicamente, inclusive, apresentando propostas para a pós-independência. Propostas essas que não foram consideradas e que, segundo foi possível identificar nos documentos oficiais, manteve as mesmas relações hierarquizações sociais existentes antes da independência.
“Na prática, para os povos escravizados e indígenas [a independência] não mudou nada. Se mudou foi pra pior. Inclusive os povos indígenas são provas disso, porque eles apresentaram várias reivindicações que não foram atendidas”, afirma o historiador.
O pesquisador identificou três grandes preocupações nos processos de independências no Piauí: a primeira era comercial, no sentido de manter as relações econômicas; a segunda era uma preocupação política, no sentido de garantir aos brasileiros nativos cargos de poder; e a terceira, esta defendida por Leonardo Castelo-Branco, era revolucionária, no sentido de promover uma mudança estrutural na sociedade.
“Mas essa última não aconteceu como se previa de não houve mudanças concretas. No pós independência as pessoas negras e indígenas não foram inseridas. Os negros continuavam em uma condição hierarquizada da sociedade, o indigena tambem. Essa é uma questão que perdura ainda durante todo o século XIX”, diz.
As heranças das independências no Piauí
Esse processo manteve no poder aqueles que já ocupavam, de certa forma, um grau de poder na sociedade. Sem mudanças estruturais, a racialização permaneceu como elemento de opressão e divisão dos povos. Negros/as pemaneciam como escravizados, assim como indíegenas permaneciam em condições de subalternização e escravização.
A herança social histórica que esse processo deixa é a perpetuação até hoje de um sistema de segregação operado a partir da cor da pele. O racismo estrutural é resultado desse processo histórico que inicia com a colonização e escravização dos povos africanos e vai, ao longo da história, atravessando diversos contextos sem uma mudança estrutural concreta.
Por outro lado, Luis Carlos apresenta uma outra herança, que é a noção de participação política e mobilização. “Você percebe que o povo vai continuar participando de outros movimentos, como foi a Confederação do Equador e diversas outras. Até 1840 é uma tensão só. As crises vão continuar por muito tempo e a população percebeu que era capaz de lutar por participação política ativa”, explica.
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