Se tornar mulher ainda é um processo em construção na luta por espaços e por direitos, no entanto ser mulher negra no Brasil é uma luta ainda mais árdua por identidade, por direitos, pelo lugar de fala, por sobrevivência. Ser mulher negra e lésbica/sapatão é estar na contramão de uma sociedade pautada por branquitude, masculinidade e heterossexualidade, todas compulsórias. O que significa que os diversos desafios são incomparáveis e retroalimentam uma realidade que não desapareceu, mas esconde e fortalece as estruturas de opressão e de violência a que as mulheres negras e lésbicas/sapatonas encontram-se submetidas na contemporaneidade. Desta forma, descrever e dar visibilidade as lésbicas/sapatonas negras é dar um escopo interseccional a essas identidades que são essencialmente múltiplas.
Jamais serão somente mulheres ou somente negras ou apenas lésbicas/sapatonas, pois nessa ação de composição coletiva de identidades os entraves para manter as mulheres em determinadas circunstâncias políticas, econômicas e culturais refletem com mais intensidade nelas.
Identidades lésbicas negras e interseccionalidade
As identidades como desenvolvimento social possuem interpretações e provocam sentidos, ou seja, são construções históricas. Essas construções favorecem a continuação de privilégios e da ordem social hegemônica que estimulam uma misoginia e repulsa as corpas das saptonas, as suas sexualidades. Assim, tornam as identidades lésbicas negras vítimas de discriminações cumulativas, que geram, como principal consequência, a invisibilidade e o extermínio de suas vidas, o chamado lesbocídio, uma forma peculiar de feminicídio das mulheres lésbicas/sapatonas. Prática que tem sido apoiada pelo Estado necropolítico e amplamente tolerada pela sociedade brasileira racisheteropatriarcal lesbofóbica.
O texto busca uma reflexão que parte de um lugar pessoal que é político e ético, é o único lugar que vale a pena falar, se estender e se indispor, e que é necessário, que me toca e me põe em movimento. Como uma negra mulher que se percebe lésbica e se constrói sapatão e passa a enxergar o mundo a partir dessa lente interseccional vai viver a vida sem fazer essa pergunta: ONDE VOCÊ ESTÁ QUE NÃO ME VÊ?
Esse exercício é construído em oposição a um processo histórico de apagamentos, silenciamentos, invisibilidades e extermínios da vida de mulheres lésbicas/sapatonas negras no Brasil. No campo do marco conceitual ou referencial teórico a discussão perpassa pela intersecccionalidade, eixo teórico-metodológico e analítico abrasileirado, tendo como autora principal de diálogo a baiana Carla Akotirene (2019), que tem sido profundamente elogiada por sua crítica cirúrgica e ao mesmo apontada como uma das grandes referências intelectuais contemporâneas dos nossos tempos, ainda que a branquitude acadêmica questione/desdenhe, o que faz com que ela se torne ainda mais preciosa.
O racismo determina a posição das lésbicas negras
A opressão, portanto, posta pelo racismo determina a marginalização social de mulheres negras no geral, e em particular, para as mulheres lésbicas negras/sapatonas em que estereótipos racistas e lesbofóbicos como, por exemplo, o da negra raivosa, responsável por provocar a violência para seus próprios corpos e corpas, trazem maiores consequências, sendo uma justificativa para o assassinato/feminicídio/lesbocídio negro destas mulheres, ao contrário das mulheres brancas, tidas como frágeis e dignas de proteção social, estas ideias construídas é o que divergem na atenção e no olhar, tanto da sociedade, quanto do Estado para as diferentes categorias de mulheres.
Assim, as alarmantes estatísticas (subnotificadas) de lesbocídio entre mulheres negras apontam que quando raça encontra gênero e sexualidade, tornam-se evidentes os contrastes sociais que segregam o ideal de universalidade feminina colocada pelo feminismo branco eurocêntrico, que por sua vez negligencia a centralidade da raça nas questões de gênero/performance, sexualidade e orientação sexual, sendo unicamente legitimados os valores de uma cultura ocidental, em que são negadas a ancestralidade histórica e a conjuntura de vida da mulher negra (CARNEIRO, 2011; CERQUEIRA et al, 2020; GONZALEZ, 2020; LORDE, 2020).
Nesse sentido, Fátima Lima (2018) problematiza que, raça é atravessada por questões de gênero e sexualidades, tornando visível e dizível a produção e atuação dos modos de vida lésbicos na fratura da colonialidade (KILOMBA, 2013), elaborando processos de (re)existências na construção e disputa de agendas feministas em um contexto marcado por processos diaspóricos.
Texto: Elaine Nascimento, Assistente Social. Dra em Ciências
Pesquisadora em saúde pública e coordenadora adjunta da Fiocruz Piauí.
Docente permanente do Programa de Políticas Públicas da UFPI
Líder do Diretório de Pesquisa Saúde, Interseccionalidade e Direitos Humanos.
Coordenadora do grupo de estudos Afro Ibero Latino Americano de Feminicídio-AILAF
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA. (Org.). Racismos contemporâneos, Rio de Janeiro: Takano Editora, 2011. p. 49-58.
GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro Latino Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
KILOMBA, Grada. Plantation Memories – episodies of everyday racism. Budapeste: Interpress, 2013.
LIMA, Fátima. Raça, Interseccionalidade e Violência: corpos e processos de subjetivação em mulheres negras e lésbicas. Cadernos de Gênero e Diversidade, v. 4, n. 2, p. 66-82, 2018.
LIMA, Andreia da Silva. Observatório LGBT–direito à cidade e a diversidade no plano de desenvolvimento urbano e integrado da região metropolitana do Rio de Janeiro. 2019
LORDE, Audre. Sister outsider: Essays and speeches. Penguin Classics, 2020
PERES, Milena Cristina Carneiro; SOARES, Suane Felippe; DIAS, Maria Clara Marques. Lesbocídio: o estudo dos crimes de ódio contra lésbicas no Brasil. Revista Periódicus, v. 1, n. 10, p. 40-50, 2018.
SILVA, Joseane Barbosa Freire da et al. Evolução histórica das políticas públicas para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no estado da Paraíba. Rev. enferm. UFPE on line, v. 11, n. supl. 2, p. 1096-1102, 2017.
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