Marco Aurélio de Morais Siqueira é locutor concursado da FM Cultura de Teresina há 23 anos. Apresenta o programa Usina do Som, que vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 17h às 18h. Há cerca de um mês, de forma impositiva, ele foi removido do seu local de trabalho para a Secretaria de Finanças do município. Segundo ele, a remoção se deu em razão de alguns comentários feitos durante os programas, em especial, com relação às críticas ao Governo Federal e à privatização da Petrobras e Eletrobras. Procuramos a Secretaria Municipal de Comunicação que, em nota, afirmou que a “Prefeitura de Teresina não vai se manifestar sobre o assunto”.
Em entrevista ao Ocorre Diário, Marco explicou como tudo aconteceu. Segundo ele, em fevereiro deste ano houve uma orientação da direção da emissora para não fazer comentários políticos durante seu programa. Uma orientação que, para o locutor, fere direitos importantes como a liberdade de expressão, o interesse público no exercício profissional e o direito à informação da população. “Acredito que as informações que passei no ar sobre as privatizações da Petrobras e Eletrobras devem ser, de fato, o motivo da minha absurda e autoritária remoção”, explicou.
“Dentro da FM Cultura impera hoje uma linha editorial em que não se pode falar nada que contrarie os interesses da agenda bolsonarista. Outros colegas e o próprio jornalismo da rádio já sofreram interferências para que não se fale nada sobre qualquer assunto que desagrade os simpatizantes do bolsonarismo”, complementa o radialista. O programa apresentado por Marco Aurélio, Usina do Som, mistura música, poesia e pitadas de informação de interesse social. “Sou vítima de uma perseguição política e minha remoção para outra secretaria contraria meus direitos como servidor público, porque fui concursado para ser locutor da rádio e qualquer outro cargo, se configura desvio de função”, diz.
.
Marco ressalta ainda que até o momento não recebeu nenhum documento dando ciência da sua remoção, com uma justificativa da sua retirada dos quadros de locutores da FM Cultura. O locutor está sendo acompanhado pelos advogados do Sindserm e aguarda resposta da Secom (Secretaria Municipal de Comunicação) para informar qual a decisão que será tomada por eles.
Em setembro de 2021, a FM Cultura de Teresina passou por uma modernização, recebendo uma nova sede. A obra contou com um investimento de R$ 179.521,74 com recursos próprios do município e levou para a nova sede, estúdios com proteção acústica, sistema de som e câmeras.
À época, o prefeito de Teresina, Dr. Pessoa, afirmou que “a rádio Cultura FM, deve dar voz aos teresinenses, sendo uma rádio pública, terá uma equipe capacitada, composta por jornalista e técnicos competentes para ouvir as demandas da população e oferecer uma programação diferenciada”.
Emissoras públicas devem atender ao interesse público e não a interesses políticos
O jornalista e mestre em comunicação Roberto Araújo desenvolveu recentemente uma pesquisa sobre Radiodifusão pública no Brasil, onde se aprofundou na compreensão da legislação desses veículos. Segundo ele, não temos uma legislação clara sobre a radiodifusão pública no território nacional. Ele explica que a Constituição Federal estabelece uma divisão do sistema de radiodifusão em público, estatal e privado, onde o público deve ter um financiamento público, mas o conteúdo e a organização da emissora estaria subordinada a um conselho com participação de diferentes segmentos da sociedade civil, de modo a impedir que interesses do governo e interferir na qualidade e no conteúdo. Por outro lado, uma emissora estatal teria esse cunho de comunicação institucional do governo.
.
“No entanto, alguns autores sugerem que, por serem ambas vinculadas ao setor público, devem ter um conteúdo de interesse público, que atenda às populações menos favorecidas da sociedade e que leve em conta a necessidade de conteúdos educativos e culturais em suas programações”, afirma Roberto.
No caso da FM Cultura de Teresina, Roberto explica que se trata de uma emissora vinculada à Prefeitura de Teresina, no entanto, na lei de fundação, existe a previsão de um conselho de programação que deveria ter como característica avaliar o interesse público do conteúdo nessa programação.
“Dessa forma, nós podemos dizer que sim, a FM Cultura é uma rádio pública, mas é preciso que se faça essa ressalva, por não haver uma legislação clara sobre o tema, poderíamos dizer que faltam elementos que garantem a isenção e distanciamento que a emissora deveria ter do chefe do Palácio da Cidade, que é o que defendemos para as emissoras públicas”, afirma.
Interferências Políticas desconfiguram o caráter público das emissoras
“Sem dúvidas é um tipo de censura”, diz Roberto a cerca das interferências praticadas na Rádio FM Cultura. O pesquisador explica que, em um plano ideal, não deveria haver interferência nenhuma de governos em emissoras públicas. “O interesse e o objetivo das emissoras públicas é atender às questões da sociedade, que devem estar presentes por meio de mecanismos de participação. Quando não há participação por meio de um conselho de representantes da sociedade, quando o conteúdo sofre o crivo de pessoas ligadas diretamente ao prefeito, ou governador, ou presidente, há uma desconfiguração do caráter público dessas emissoras, que deixam de atender às premissas do interesse público, para ficar apenas uma camuflagem para os interesses dos governantes da hora”, afirma Roberto Araújo.
Para o pesquisador, uma TV e uma rádio pública partem de um pressuposto de que há uma liberdade de pensamentos, pluralidade de ideias, e ali também é espaço para que se questione, se indague o poder municipal, o poder ao qual aquela rádio está vinculada.
“A rádio não é do prefeito, ela é do povo de Teresina, e nesse caso, a prefeitura apenas mantém estruturalmente que a rádio exista, mas não é para atender aos interesses do prefeito, é para atender aos interesses da sociedade, e por vezes pode ter algum conflito, então é possível que um jornalista pode fazer um comentário crítico, as pessoas que possam fazer parte daquela rádio, que é uma rádio delas, então é uma ação de censura ao cercear o comentário, a liberdade de pensamento de um profissional que está ali para prestar o seu serviço enquanto servidor público, cidadão, e que, enquanto jornalista, coloca pontos críticos à gestão municipal”, finaliza.
É preciso participação da sociedade civil nas tomadas decisões para garantia da pluralidade e liberdades
Roberto Araújo sugere como exemplo positivo a ideia que houve no surgimento da Empresa Brasil de Comunicação – EBC, de implantação de um conselho curador, responsável por determinar as diretrizes, a organização e a programação da emissora. “Um conselho composto por membros que representam diversos segmentos da sociedade civil, que deveria ter esse papel de frear uma ordem, alguma deliberação do poder executivo ou outro que seja, de eventual censura ou direcionamento que seja distinto da avaliação”, complementa.
No entanto, segundo Roberto, é importante frisar que a história da radiodifusão pública no Brasil é recente e ainda incipiente. Ele explica que houve uma ruptura com o início do governo Temer com a extinção do conselho curador da EBC, e desde então, existe uma interferência deliberada do governo federal na empresa, o que se aprofundou com o governo Bolsonaro.
“Mas infelizmente, esse não é um fenômeno isolado, podendo ser visto em emissoras vinculadas aos governos estaduais e municipais. No Piauí, por exemplo, a Rádio e TV Antares não conseguiram implementar os mecanismos de participação da sociedade civil aos moldes da EBC. E agora, vemos esse caso na FM Cultura, que é um exemplo de cerceamento”, afirma.
Interferências e censura em veículos de ‘comunicação pública’ se aprofundam durante Governo Bolsonaro
Em 2020, funcionários da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) elaboram dossiê em parceria com sindicatos e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), com denúncias de “censura ou governismo” em pautas e matérias da EBC, realizadas de janeiro de 2019 a julho de 2020. O dossiê mostrou que, nesse período, o governo de Jair Bolsonaro interferiu 138 vezes no trabalho da empresa.
Em fevereiro de 2021, funcionários da EBC lançaram uma carta aberta em rpúdio ao governo Bolsonaro (PL), denúnciado prática de censura e interferências políticas nas redações da empresa. Entre os pontos citados na carta, os funcionários denunciaram a falta de acompanhamento em relação à evolução da pandemia de covid-19, no Brasil, por exemplo.
“A TV Brasil ignorou a falta de oxigênio em Manaus e as Redes Sociais não puderam noticiar a primeira pessoa vacinada contra a covid”, afirmam no documento, que questiona o uso abusivo e reiterado dos veículos públicos para promoção pessoal do presidente da república, seus ministros e de seu projeto político.
Temas como desmatamento da Amazônia e o negacionismo científico sobre a pandemia também podiam ser pautados pelos jornalistas. “O jornalismo é o alvo central de decisões autoritárias e colegas têm sofrido perseguição até com mudança compulsória de setor. Repórteres recebem pautas vexatórias ou absurdas, com destaques, enfoques e temas favoráveis ao governo ou que apenas promovem a imagem do presidente e de ministros de Estado”, afirmam no documento.
A Rádio FM Cultura de Teresina
A rádio foi fundada em 30 de dezembro de 1996, e teve seu projeto idealizado e iniciado na gestão do ex-prefeito Wall Ferraz. Inicialmente, a emissora começou como um órgão subordinado à Fundação Cultural Monsenhor Chaves; atualmente, a rádio é um veículo de comunicação vinculado à Secretaria Municipal de Comunicação, conforme consta na Lei 2.546 de 30 de junho de 1997.
Em seu artigo 1º, parágrafo único, a lei estabelece que a “Rádio FM Cultura de Teresina não tem fins lucrativos nem finalidade comercial, seus fins são exclusivamente educativos, culturais e de prestação de informação e serviços da comunidade”.
Comments (1)
Glóri Sandessays:
13 de abril de 2022 at 9:01 PMFoi , sobretudo, desvio de função!