Reportagem: Vitória Pilar | Edição: Luan Matheus Santana
Como o julgamento de uma estudante negra pode mudar a forma de tratar os feminicídios no Piauí
Em janeiro de 2025, completará dois anos que Maria do Socorro viu a filha Janaína Bezerra pela última vez. No dia 27 daquele mês, a estudante de jornalismo arrumava os cachos do cabelo, colocou argolas, um batom e se encheu de perfume. Passeava agitada entre os cômodos contando as coisas que faria na semana seguinte: havia comprado o notebook que, meses antes, não conseguiu adquirir por falta de crédito, para melhorar seus trabalhos acadêmicos; iria começar a vender bolos no pote na universidade e, em breve, conseguiria reformar o seu quarto na pequena casa da Santa Maria da Codipi, Zona Norte de Teresina.
Janaína se arrumava para ir à calourada organizada pelos estudantes da Universidade Federal do Piauí (UFPI), mas Socorro, preocupada com a filha mais velha, não queria que ela voltasse tarde. Ao ouvir os planos de Janaína, cedeu, confiando que voltaria logo para cumprir os seus planos dali em diante. “Era como se ela me garantisse que voltaria para realizar os sonhos que tinha”, lembra a mãe.
Nada aconteceu.
Naquela madrugada, Thiago Barbosa, um mestrando de Matemática, arrastou Janaína para uma sala que tinha acesso na pós-graduação onde estava matriculado. Ele estuprou e assassinou a jovem. No dia seguinte, seguranças da UFPI viram o rapaz carregando-a nos braços, já sem vida, pelo campus. Antes mesmo de receber a notícia, Socorro pressentiu que algo estava errado. Acordou com uma dor aguda no peito, enquanto o marido, Adão Bezerra, sentia fortes dores de cabeça.
“A única coisa que me restou foi a lembrança de que, um dia antes, ela estava feliz”, diz a mãe, com a voz embargada. “Eu só recebi minha filha de volta dentro de um caixão.”
Socorro esperou, a contragosto, por quase 20 horas o julgamento pela morte da filha mais velha na recepção do Fórum Criminal de Teresina. O julgamento havia sido feito a portas fechadas por um motivo: durante o julgamento seriam exibidos os vídeos feitos pelo acusado durante o crime, onde Janaína aparece com hematomas pelo corpo e rosto Nem mesmo a família pôde acompanhar e deixou todos indignados. Chegou pela manhã de sexta, e às 7h do dia seguinte veio o resultado: 18 anos e seis meses de prisão pelos crimes de homicídio qualificado (emprego de meio cruel), estupro, vilipêndio de cadáver e fraude processual.
O veredito foi entregue no dia 30 de agosto, mas antes disso, já havia sido remarcado duas vezes. O primeiro adiamento ocorreu devido a um erro de encaminhamento que, segundo a UFPI, foi motivado por uma falha de comunicação com servidores convocados para o Júri Popular, os quais não notificaram os integrantes do conselho de sentença. O segundo adiamento foi solicitado pela defesa do acusado, que havia sido recentemente substituído e alegou falta de tempo para analisar os detalhes do processo.
Apesar das duas remarcações, a sentença do caso Janaína ocorreu cinco vezes mais rápida do que a média de processos de violência doméstica e/ou feminicídio no Piauí e quatro vezes mais rápido que a média nacional. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o tempo médio é de 3 anos e 7 meses no Estado e de 2 anos e 11 meses no país.
É a celeridade no caso de Janaína que pode se tornar um precedente para os feminicídios no Piauí. Para Jéssica Lima, assistente de acusação e membro do Coletivo Advocacia Popular Piauiense (APP), a rapidez do Judiciário trouxe uma resposta eficaz à sociedade, demonstrando que esses crimes devem ser tratados com certa prioridade.“A tramitação de casos de feminicídio é, muitas vezes, morosa. E é a justiça desses casos que pode despertar o interesse dos familiares e transformar o luto em luta, que só pode ser plenamente vivida após uma condenação”, finaliza a advogada. Em outras palavras, quando a justiça aplica a lei, também traz conforto ao luto.
Um caso como o de Janaína, uma estudante negra e moradora da periferia de Teresina, é capaz de mudar a forma de olhar o feminicídio, a vista que provoca também a sociedade a pensar de forma diferente. “A imprensa também foi uma aliada, à medida que foi rápida em constatar massivamente que Janaína foi vítima de um crime de gênero, por ser mulher”, ressalta Jéssica. “É um caso que, sobretudo, é pedagógico para a sociedade – quando aprende o que são crimes de gênero –, para os movimentos sociais – que cobram medidas e respostas – e para o Judiciário – que aplica a justiça e retira o sentimento de impunidade”, diz.
Onde a rota acaba
A celeridade nos casos de feminicídio e violência doméstica é algo que tem sido incentivado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Meta 8 do Judiciário, uma diretriz do CNJ específica para esses casos. Diferente do que pensa a maior parte das pessoas, o endurecimento de leis, pouco resolve esse problema. Em outubro deste ano, por exemplo, a legislação ganhou um artigo específico no código penal e teve a pena de reclusão aumentada de 20 a 40 anos — antes, era de 12 a 30 anos de prisão.
Apesar de facilitar classificação do crime e de se permitir que o feminicídio tenha circunstâncias qualificadoras, resolver esse problema vai além. Segundo a juíza Keylla Ranyere Procópio, Coordenadora da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI), a redução dessas estatísticas está muito atrelada a formação dos profissionais que lidam com a violência de gênero até a ação final desses crimes – isto é, o feminicídio. Uma força tarefa que dialoga, assim como foi no caso da Janaína, de unir a sociedade, movimentos sociais, imprensa, e os Poderes do Judiciário, especialmente a celeridade do judiciário.
A compreensão do que caracteriza a violência de gênero, por outro lado, ainda está em construção. Isso faz com que esse processo seja lento, mas dentro dos tribunais, precisa caminhar com celeridade, explica Keyla. “Entender o esteriótipo de gênero na nossa sociedade é essencial para entender o que é uma violência contra as mulheres. Por isso, capacitar magistrados para atuarem nesses casos tem se tornado essencial para que se analise e dê respostas para sociedade da justiça nesses casos”, detalha a juíza. “E, principalmente, para que a vítima não seja revitimizada”, em outras palavras, que as vítimas não sejam expostas a situações traumáticas envolvendo o crime que sofreram.
Dados divulgados pelo TJ-PI revelaram que entre janeiro e agosto de 2024, um total de 4482 medidas protetivas já haviam sido concedidas no estado. Como solução para atender esses pedidos, que a cada ano cresce, o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (TJ-PI) concedeu as primeiras medidas protetivas de urgência solicitadas por meio do JuLIA – Sentinela, novo módulo da Inteligência Artificial do Poder Judiciário do Piauí, que permite às vítimas de violência doméstica e familiar a solicitação de medidas protetivas diretamente através do WhatsApp.
Para ter acesso à funcionalidade basta enviar uma mensagem ao número da JuLIA: (86) 98128-8015. “Se a vítima confirmar que sofre ou está na iminência de sofrer agressão, a JuLIA irá fornecer um passo a passo para o preenchimento do formulário de avaliação de risco”, destacou o desembargador José Wilson, supervisor do Laboratório de Inovação do TJPI (OpalaLab).
No entanto, conceder medidas protetivas é só um dos tipos de ação. Keyla volta a chamar atenção para a necessidade de políticas públicas e do envolvimento de todas as esferas de gestão para reduzir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Se o debate avançar para sociedade, a pressão por políticas públicas também aumenta. Um fato que pode ser crucial para tirar as mulheres da rota do feminicídio. “Essa questão de posicionar o homem e a mulher de forma igual em todos os ambientes — dentro da família, nas instituições, nas empresas e na política — é fundamental para combater a violência de gênero. Isso precisa ser trabalhado continuamente”.
Sem dia de festa
Janaína foi assassinada em um sábado. Para muitas mulheres, os fins de semana não são dias de festa, nem de missa, nem de churrasco, nem pizza, nem futebol. É dia de perigo e de morte, como revelaram os dados do último Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). No documento, revelou o domingo como o dia mais perigoso para mulheres: a cada cinco feminicídio, um ocorreu neste dia da semana. Na sequência, os sábados eram os mais perigosos para as mulheres: sábado (16,1% dos casos), seguido pela segunda-feira (15,3%). Nos outros dias da semana, a proporção variou pouco: 12,5% na sexta, 12% na quarta, 11,5% na terça e na quinta.
Essa análise permitiu evidenciar contornos dramáticos desse tipo de crime. A maior parte são cometidos por companheiros (53,6%) e ex-companheiros (19,4%). Os fins de semanas são quando os casais costumam ficar juntos, tentam se reconciliar, ou a entrada de álcool e drogas estimulam as tensões nos lares. Em contrapartida, delegacias especializadas estão fechadas, ruas esvaziadas e a polícia ocupada com outros crimes nas vias urbanas.
“Todos os assassinatos de mulheres cresceram, inclusive na contramão dos crimes contra a vida (que caíram). Há subnotificação, sim. Mas é possível dizer que morreram mais mulheres, seja lá qual tenha sido a tipificação”, explica Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O domingo após o assassinato de Janaína, 30 de janeiro, foi o mais violento contra mulheres em 2022. Neste dia, foram registrados onze feminicídios. Uma análise por horário permite dizer que metade dessas mortes aconteceram entre 8h às 23h59 (29,8%) e entre a meia-noite às 5h59 (21,1%).
O feminicídio é um crime que apresenta padrões muito parecidos. São essas análises, no entanto, que são capazes também de criar políticas de prevenção efetivas direcionando esforços para momentos e contextos de maior risco. Um exemplo seria priorizar denúncias de violência doméstica em dias e horários críticos, garantindo também que órgãos públicos permaneçam acessíveis nos fins de semana, mesmo em regime de rodízio.
Em cidades menores, com pouco ou nenhum acesso aos serviços especializados, o problema é ainda mais drástico: “Uma colega pesquisadora alertou sobre uma cidade onde o 190 não funciona nos fins de semana. Mas sabemos de soluções que as equipes de atendimento encontraram, como o caso de uma que manteve a vítima numa pousada, sob proteção, até que o serviço especializado abrisse na segunda-feira”, conta Samira.
A vida depois do feminicídio
Negras e jovens, como Janaína (22 anos), são as vítimas mais predominantes nos casos de feminicídio, ainda segundo o Observatório. Mulheres com idades entre 18 a 44 anos, sendo a maioria morta aos 24 anos, representam 70% dos casos. Negras são 61,1%. Por outro lado, assassinos desconhecidos da vítima, como era o caso de Thiago Barbosa, estudante de matemática, são só 8% dos casos.
Todos os dados pertencem ao Anuário da FBSP. A necessidade de acompanhar essa mancha de sangue contra as mulheres aquece todos os anos, tendo em vista que são crimes que crescem nas estatísticas. Em comparação ao ano de 2021, por exemplo, aumentaram 6%.
Um outro dado, no entanto, não é muito acompanhado no Brasil: dos órfãos do feminicídios – isto é, crianças e adolescentes que perderam a mãe por um crime de gênero. A última pesquisa, feita em 2022, revelou que existiam cerca de 2592 filhos que perderam a mãe por essa violência. É um cálculo feito considerando o tamanho médio das famílias brasileiras, a taxa de natalidade e a idade reprodutiva das mulheres. Um número que pode ser muito maior, se levar em conta os casos de feminicídio que não tem suas investigações concluídas.
Outro aspecto também não é levado em conta: muitas mulheres jovens são responsáveis pelo cuidado e manutenção financeira de seus lares, sendo a principal provedora de suas casas.Elas custeiam pais, mães, sobrinhos ou outros dependentes. Esse número de pessoas ficam fora da conta.
Hoje, no Brasil, não há nenhuma lei de assistência familiar para familiares de vítimas de feminicídios. No Acre, uma lei sancionada em 2022 prevê auxílio financeiro, psicossocial e psicoterapêutico para menores que perderam a mãe por feminicídio. Em São Paulo, o Auxílio Ampara oferece apoio financeiro até os 18 anos, ou até os 24 para jovens que estudam. Recentemente, o Distrito Federal enviou à Câmara um projeto de lei para assistência financeira temporária, com valores de até um salário mínimo por órfão, sujeito à disponibilidade orçamentária. Contudo, nenhum desses programas contempla casos como o da família de Janaína, cujos pais, e não filhos – suas irmãs –, ficaram desamparados.
Após o assassinato de Janaína, estudantes da UFPI realizaram manifestações e ocuparam a reitoria exigindo melhorias na segurança, iluminação e transporte no campus. Também pediram que a universidade indenizasse a família, já que o crime ocorreu dentro da instituição. Apesar disso, passados um ano e onze meses, a família não foi procurada pela direção, e o atendimento psicológico prometido nunca aconteceu. Professores e técnicos arrecadaram dinheiro para custear o enterro, enquanto o Centro Acadêmico de Comunicação Social mantém uma campanha para ajudar a família, que hoje sobrevive com a venda de pequenos alimentos e o Bolsa Família. A UFPI afirmou que psicólogos escolares visitaram a família, mas não podem realizar atendimentos clínicos, e que não há previsão legal ou orçamento para pagar indenizações.
Sensibilizado com a situação da família, um conhecido prometeu conseguir uma bolsa escolar para Vitória Bezerra, a filha mais nova, estudar em uma escola particular, mas isso nunca se concretizou. A filha do meio, Janiele Bezerra, concluiu o ensino médio no ano passado, mas não conseguiu ingressar na universidade. Agora, está desempregada em busca de oportunidades.
No muro marrom e branco da casa onde vive a família de Janaina, ainda está uma plaquinha improvisada que anuncia a venda de dindins, bombons e batata frita – é a principal fonte de renda da família. Adão realiza raros trabalhos como mecânico, mas desde a morte da filha, enfrenta muitos problemas de saúde. “Nossa saúde psicológica e física ficou muito abalada”, relatou Maria do Socorro ao OCorre Diário.
Quando Janaína estava viva, a família sobrevivia com os R$ 530 mensais de um auxílio destinado a estudantes em situação de vulnerabilidade. Foi também graças à universidade que ela conseguiu acesso à internet banda larga por meio de um edital para estudantes de baixa renda. “Janaina tinha uma vontade imensa de dar uma vida melhor para a gente”, conta a mãe, Maria do Socorro. “Queria reformar nossa casa, pintar as paredes e comprar móveis. Ela ia conseguir”. Quem chega na casa se depara com móveis improvisados, prateleiras repletas de caixas doces para vender e fotos de Janaina espalhadas por quase todos os cômodos. Na sala, ainda há cartazes de justiça pela morte da jovem.
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* Vitória Pilar é jornalista. Repórter com textos publicados na Revista Piauí, Revestrés, Uol e G1-Pi. Autora de “Prostituta é Comunidade: uma mulher que fez do sexo ganha-pão e luta (Ed. Arisca, 2023).
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