Era fim de tarde, o sol já se escondia entre as árvores quando chegamos à casa da filha mais nova da Dona Maria das Dores da Silva Machado, ou apenas Dona Dôra, como é conhecida. Rodeada pelos netos, cachorros e sentada em cadeira de fibra, trançada por ela mesma, Dona Dôra nos recebeu com um olhar abatido e as mãos trêmulas, sinais de dias difíceis, de muito sofrimento. O choro foi contido várias vezes durante nossa conversa, que durou mais de uma hora, por ela e por nós.
A história que contaremos a seguir é a prova que essa sociedade regida pelo dinheiro e pelo poder não deu certo. Marcada pelo egoísmo, racismo, desumanidade e completa ausência de empatia, a cada dia ela condena vidas negras, pobres e periféricas à morte lenta, pela completa ausência de direitos.
“Eu me senti um lixo. Fui expulsa da minha casa como uma cachorra. Mas eu não sou cachorra, eu sou gente, uma batalhadora. Eu estava no meu serviço. Pra sobreviver eu trabalho nas casas dos outros, pra ganhar o meu. Eles falaram que se eu não saísse eu seria presa. Eu não mereço isso”, desabafa Dona Dôra ao recordar a forma como foi retirada de sua casa, no dia 09 de julho, após emissão de um mandado de reintegração de posse, emitido pelo Juiz Jorge da Costa Veloso, do juizado especial cível – Zona Sudeste Anexo CEUT, em favor de Gerson Gomes Pereira.
Mas essa história começa bem antes de 9 de julho de 2021. Dona Maria comprou a casa, localizada na Quadra 55 do Bairro Dirceu, em meados da década de 1990. “Quando nos mudamos pra lá só tinha um quarto, uma sala e um banheiro. Eu tinha cinco filhos, dormia um por cima do outro, dormia até em cima da minha cama”, relembra Dona Maria.
Lá ela fincou raízes, laços comunitários, criou seus filhos e toda a história da sua vida. No início dos anos 2000 a EMGERPI – Empresa de Gestão de Recursos do Piauí procurou Dona Dôra para a regularização do ímóvel. Fizeram um acordo, onde Dona Maria deveria pagar R$ 2 mil. Na época, o salário mínimo era de R$ 200, e conseguir levar dez salários mínimos de uma vez não era uma realidade possível para uma família pobre, da periferia de Teresina.
“Eu não tinha dinheiro pra pagar o acordo, mas mesmo assim, demos um jeito e conseguimos pagar, com atraso, mas conseguimos. Eles aceitaram meu dinheiro e agora estão dizendo que eu não cumpri o acordo. Os comprovantes estão aqui”, afirma Dona Dôra, segurando os dois comprovantes de pagamento que asseguram seu direito sob a casa.
Em nota, a Emgerpi, afirma que Dona Dôra não era mutuária cadastrada no órgão e que em 2008 foi tentando uma negociação. Diante disso, a EMGERPI procedeu com o leilão do imóvel, em 2009, que foi arrematado pelo Sr. Gerson Gomes Pereira. “Cumpre destacar que o referido arremate foi validado por sentença judicial em 2013, reconhecendo-o como legítimo proprietário. Desde a validação desse leilão a EMGERPI não tem nenhuma responsabilidade sobre o destino do imóvel”, afirma a nota.
Assim, a EMGERPI se esquiva da responsabilidade, mesmo Dona Maria comprovando uma negociação anterior a 2008. Além disso, Dona Dôra conta que foi avisada que sua casa iria para leilão em 2009, por conta de parcelas da casa que estavam em atraso. Um dos filhos da Dona Maria foi a Emgerpi e solicitou a retirada da casa do leilão e um novo prazo para pagar o débito. O pedido foi negado e, mesmo tentando negociar, a casa foi posta para leilão. Dona Dôra ingressou com uma ação de nulidade de leilão, mas a decisão judicial não foi favorável a ela.
Em 2013, após realização do leilão, o ganhador entrou com uma ação de reintegração de posse e a dona das dores foi citada para se defender. A Defensoria Pública se habilitou e, posteriormente uma advogada particular, entretanto, no dia da Audiência de Instrução, nem a defensoria e nem a advogada compareceram ou fizeram a defesa da Dona Dôra. Resultado disso é que ela compareceu sozinha e o processo foi julgado à revelia.
Sem saber como proceder e com medo de perder tudo o que construiu até aqui, familiares e amigos da Dona Dôra se juntaram para contratar um advogado particular. O Dr. Albelar Prado entrou no caso no dia 07 de Julho. “No mesmo dia noite eu protocolei uma petição solicitando a suspensão da reintegração, justificando que não era competência do juizado, em decorrência do valor do imóvel ser superior ao teto do juizado e em virtude de ter que chamar ao polo passivo, a Emgerpi e, além disso, de ter um processo de usucapião tramitando. No dia 08 de julho fui ao juizado conversar com o assessor do juiz, mas não apreciaram meu pedido e cumpriram o mandado de reintegração de posse no dia 09/07”, afirma o advogado.
Reintegração de Posse é emitida, mesmo com processo de usucapião em tramitação
De acordo com Defensoria Pública do Piauí, dona Maria das Dores Machado Silva figura como parte requerente, assistida pela Defensoria, acompanhada pelo Defensor Público Gerimar de Brito Vieira, titular da 1ª Defensoria Pública Cível, em Ação de Usucapião que tramita regularmente na 7ª Vara Cível da cidade de Teresina.
Esse processo ainda segue em tramitação, aguardando agora manifestação das partes citadas. O processo corre dentro do prazo correto. De acordo com o advogado da família, Dr. Albelar Prado, a existência desse processo deveria inviabilizar outras decisões. “Pela legislação teria que ter suspendido a reintegração pela questão de ter outro processo. Ela entrou com uma ação de usucapião em 2019 e vem tramitando de lá para cá”, afirma.
Em menos de uma semana, casa da Dona Maria é completamente demolida
Se a luta pela regularização da casa da Dona Maria tem se arrastado por anos, a força arbitrária que a tirou de casa levou menos de 24 horas para iniciar a demolição de seu lar. Na quinta feira, dia 15, estivemos na casa e o cenário é de completa destruição. Na rua, as vizinhas lamentam a partida de dona Dôra, reconhecida como companheira e batalhadora.
Um armário velho e uma cartela vazia de ovos em meio as paredes destruídas davam pistas que naquele lugar foi abaixo mais do que tijolos, mas também sonhos e memórias de uma vida simples e tranquila que por muitos anos foi vivida ali. Pequenos pedaços memórias, que não podem ser reconstruídos, mas também não podem ser esquecidos.
Comunidade se mobiliza em defesa de Dona Maria #DevolvamaCasadaDonaMaria
Nas redes sociais e na comunidade, o sentimento é de revolta e indignação. Vizinhos de Dona Maria se mobilizaram em seu favor. Dona Emília é uma das vizinhas, ela mora ao lado da casa de Dona Dôra e já perdeu as contas de quantos anos elas se conhecem.
“Ahh, vai pra mais de 30 anos que ela tá aqui do meu lado. É uma vizinha muito boa, uma mulher trabalhadora. Agora tava morando sozinha, porque tava viúva. Aqui tá todo mundo consternado com o que aconteceu com ela. É uma injustiça”, conta Dona Emília.
O Portal de Comunicação Comunitária Fala Dirceu também se mobilizou e articulou uma ampla campanha nas redes sociais. A Hashtag #Devolvamacasadadonamaria ganhou muitos adeptos, com uma enxurrada de solidariedade e apoio a Dona Dôra.
STF proíbe reintegração de posse durante a pandemia
O caso da dona Maria é um retrato da vulnerabilidade de outras famílias no Brasil que têm sido despejadas em plena pandemia, deixando milhares de pessoas ainda mais expostas aos riscos de contaminação. Hoje dona Maria se soma às quase 10.000 famílias que foram despejadas durante a pandemia no Brasil, de acordo com denúncias da Campanha Despejo Zero. Em junho, fazendo valer o art. 6º da Constituição Federal, que garante a moradia como direito social básico, o STF determinou a suspensão de despejos forçados pelos próximos 6 meses devido ao estado de calamidade pública pelo qual passamos.
A decisão impossibilita “medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis”; também estão suspensos despejos de locatários de imóveis residenciais em condição de vulnerabilidade.
Embora a decisão do STF vise a proteção de famílias que vivem em ocupações coletivas irregulares e locatários de imóveis, ela tem força contra qualquer ação que viola o direito à moradia, à vida e à saúde das populações mais vulneráveis, principalmente diante do atual risco iminente de uma terceira onda de contaminação pela COVID-19.
Sem outra opção, dona Maria foi amparada pelas filhas e hoje divide a mesma casa com mais 4 pessoas. “todo mundo quer tá no seu lugar, eu por mim tava lá na minha casa”. Com essa frase curta, contida pela emoção, dona Maria dá sua sentença amparada pelo desejo de continuar vivendo sua vida no lar que ergueu e constitui sua família, que hoje já são 5 filhos, 7 netos e 1 bisneto.
O caso de Dona Dôra reflete o racismo estrutural
Na manhã de hoje, dia 18, a família, junto com a vizinhança e ativistas, realizaram um ato pedindo que devolvam a casa de dona Maria. “500 anos de diáspora africana onde os nossos foram espalhados, escravizados nesse mundo. um homem de toga, operador da lei, invadiu a casa de uma mulher negra com toda a conivência dos aparatos do estado, tomou com seu braço armado a casa de uma mulher negra que trabalhou a vida inteira e tomou seu único bem. 500 anos de derramamento de sangue”, dizia a Manifestante Lúcia Oliveira enquanto manifestava.
Artistas, militantes, moradores do bairro e de toda a cidade prestaram solidariedade à Dona Maria com a #hastag “Devolva a casa de Dona Dona Maria”. Todo o clamor popular não foi suficiente para impedir a derrubada da casa, mas a luta continua para que Dona Dôra tenha seu teto.
*** Procuramos o Tribunal de Justiça e Gerson Gomes Pereira (parte citada no processo), mas ainda não tivemos retorno.
Reportagem coletiva: Luan Rusvel, Luan Matheus Santana e Maria Lúcia Oliveira
Edição: Sarah F. Santos
Fotos Ocorre Diário: Luan Matheus Santana
Comments (1)
A peregrinação de Dona Maria em busca de justiça: TJ pede celeridade ao casosays:
6 de agosto de 2021 at 11:01 AM[…] Contamos toda a história de Dona Maria aqui no Ocorre Diário, que você pode relembrar na matéria: “Me senti um lixo”, diz Dona Maria ao ser expulsa da casa onde morava há 30 anos […]