Ao adentrar a auditório Maria Salomé Cabral no Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal do Piauí, localizado em Teresina, a professora Letícia Carolina Nascimento esbanjava simpatia e uma feminilidade ou transfeminilidade* que escondia um pouco de nervosismo. A solenidade naquele dia 24 de fevereiro era um marco e a abertura de possibilidades. Professora Letícia tornaria-se em instantes a primeira travesti doutora da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Abraçou o uso político da palavra travesti, como um marcador necessário, para que naquele momento isso não passasse em branco.
“Meu doutorado não é para exaltar que eu seja a primeira é para questionar onde estão as outras professoras doutoras e mestras travesti?”, aponta Letícia. Na sua trajetória escolar até o doutoramento ela conta que viveu uma realidade cruel e que ainda é perpassada por inúmeras violências. . Ela encontrou na educação um dos caminhos em que as transformações sociais foram e continuarão sendo possíveis.
A professora Letícia Nascimento é natural de Parnaíba e também atua como professora efetiva da UFPI. Como docente da universidade e atuando na formação de professores/as, a oportunidade de estar dentro da escola pública tem possibilitado o debate sobre o acolhimento às diferenças que chegam até o chão da escola. “Não estamos tratando apenas das questões de gênero e sexualidade, mas também as diferenças na educação como a questão de raça, em que pensamos as negritudes e as populações indígenas e também as pessoas com deficiências. Assim como combater o bullying e a violência no ambiente escolar. Esses são os temas que trabalho nos momentos formativos dentro da escola em que professores e professoras sentem a necessidade de debater esses assuntos que estão presentes dentro da escola”, explica.
Na sua tese de doutorado, a professora busca, para além de falar sobre os jovens transvecisgeneri, abordar as perspectivas das possibilidades de existências dessas pessoas no ambiente acadêmico que mesmo sendo ainda um local excludente para pessoas que não estão na lógica binária (homem/mulher, masculino/feminino).
“Desistir é um verbo que não se conjuga na gramática travesti. Devemos agarrar as nossas oportunidades que são escassas, não podemos nos dar o luxo de desistir. Eu sempre entendia que modos eu posso me fortalecer e permanecer no ambiente acadêmico que ainda adoecedor e violento, mas também ao mesmo tempo é um local de possibilidade e alegrias. Busquei formas de me manter, como o próprio encontro com o feminismo negro, o feminismo decolonial e o contato de texto de outras pesssoas transvesisgenere”, relata.
Mas foi no encontro com outras pessoas trans no ambiente acadêmico que Letícia teve o movimento que classifica como “momento de transcentrar suas relações” numa forma de aquilombamento, formando assim, com outras pessoas travestis e trans, um ambiente acolhedor e que garantiu a sua permanência.
Através de sua pesquisa, a então doutoranda pode mapear como jovens transvesticisgenere criam modos de educar, de existir e resistir na universidade. Desafios que partem desde ter o nome social respeitado até o constrangimento de usar o banheiro da instituição que ainda segue uma norma binária, passando também pelo não reconhecimento das identidades destes estudantes que adentram as instituições de ensino superior. Diante desta situação essesjovens veem a necessidade de “transcentrar as relações”, que são possíveis através da criação de grupos em aplicativos de mensagens instantânea ou criando coletivos políticos. “As trocas entre pessoas trans numa perspectiva política de produção de conhecimento acabam possibilitando a existência e permanência dessas pessoas nesses espaços”, analisa.
Letícia ainda denuncia que as violências que as travestis estão imersas são tamanhas e que a capacidade de sonhar desse grupo são interrompidas. Dessa forma, ela assume sua trajetória e existência como um papel político. “Sempre pensei em ser grandiosa em ser referência por entender da importância da necessidade de colocar mais travestis e pessoas trans em local de destaque. Escrever um livro e ser convidada por Djamila Ribeiro foi um marco importante e pude alcançar uma plataforma de difusão de conhecimento que potencializou meu trabalho e também fazer mais pessoas conhecerem e terem contato com o transfeminismo”.
Ainda que dentro de um governo dito comprometido com as causas sociais, essa temática da transvestilidade ainda ocupa um lugar marginal, como explica. “Pelas questões que esse assunto levanta, o debate sobre gênero e sexualidade, é visto como impopular e perigoso. Precisamos romper com esse medo e temos que ter de fato pessoas trans ocupando lugares dentro das equipes. Ainda estamos ocupando lugares simbólicos em um determinado ministério, por que não ter uma travesti no Ministério da Educação? Isso é fundamental às travestis precisam ocupar diferentes pastas em diferentes ministérios temos uma vivência ampla e inúmeras demandas sociais e mesmo nos ouvindo a nossa participação ainda é pequena. Precisamos urgentemente ampliar essa inserção para pensar em políticas que garantam essa participação àquelas que virão e que elas tenham força e procurem abrigo na nossa irmandade travesti que é a cura, é a força”, explica.
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