Press ESC to close

“Mulheres Negras na Biblioteca” para ver o que nunca foi invisível

Realizadoras contam suas experiências com a criação do Coletivo e como a literatura guiou os seus passos

Este conteúdo faz parte da série de reportagens sobre Direitos Humanos realizada pelos estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) matriculados na disciplina Direitos Humanos, Comunicação e Políticas Públicas, unidade ministrada pelo professor Dr. Antonino Condoreli. As reportagens têm como objetivo refletir as questões de direitos humanos criando ambiente crítico no âmbito da mídia, além de contribuir para a disseminação dos conteúdos acadêmicos na sociedade.

Por Laura Santos 

Quantas autoras negras você já leu? Essa é a provocação que inicia todos os encontros que o Coletivo Mulheres Negras na Biblioteca (MNB) promove, em São Paulo (SP). Com o intuito de mostrar que existe muito mundo para além do olhar eurocêntrico, Carine Souza e Juliane Sousa, idealizadora e colaboradora do projeto, ambas produtoras culturais, levantam a voz para que obras acostumadas ao esquecimento possam ter vez.

Nascido em 2016, o MNB é fruto de um processo de inquietação de suas criadoras. Carine, estudante de letras e técnica em biblioteconomia, percebeu que em sua formação não havia tido contato com nenhuma autora negra. Questionou esta realidade em sua primeira graduação e, ainda mais, em seu segundo curso. Para o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na ETEC-Parque da Juventude (SP), realizou, em conjunto com mais duas colegas, a pesquisa “A importância da inclusão de obras de autoras negras nas bibliotecas públicas municipais de São Paulo”.

Ao investigar o porquê da ausência de livros de mulheres negras nas bibliotecas municipais, a resposta recorrente era “não temos por falta de demanda”. Foi assim que Carine percebeu a necessidade de levar as pessoas a procurarem essas obras e sinalizarem a vontade de ter acesso a elas. 

Inicialmente, na biblioteca do Centro Paula Souza, Parque da Juventude (SP), organizou ao lado de Iara Moraes, Laís Souza e Andreza Rocha, suas colegas de turma, uma ação com atividades culturais diversas: leituras de contos, sarau, todas com o intuito de incentivar a proximidade com autoras negras. “Não é só pôr na estante”, explica Carine, “é fazer com que as pessoas leiam”. Uma amostra do que o Coletivo viria a se tornar e de sua proposta mais firme: o Clube de Leitura.

Somente em 2018, Juliane se juntou ao projeto. Formada em letras-espanhol, viveu um percurso parecido com o de sua amiga. Depois de uma palestra sobre a legislação brasileira e a inclusão da cultura negra, houve o gatilho que impulsionou sua atenção para tais questões. Com a vontade de se aprofundar mais no tema, passou a frequentar outros espaços de discussão, onde conheceu Carine. Atualmente as duas encaram, lado a lado, os desafios e barreiras de espalhar uma literatura que existe e precisa ser conhecida.

Ao contar sobre o caminho trilhado, Juliane associa ao próprio entendimento de sua identidade enquanto mulher negra, “um processo de dor”. Uma dor que precisa dar lugar ao novo e que deseja que outras garotas encontrem abrigo. Fala sobre a sua sobrinha de 5 anos, que tão pequena, já se entende enquanto pessoa negra. Sobre poder crescer em um ambiente familiar que a conscientiza de quem ela é e que a ensina que não há problema nenhum em ser quem se é. 

“A população negra do mundo todo está reivindicando a sua humanidade. Queremos formar o imaginário do país com afeto, empatia e respeito”, completa Juliane ao dizer que muito mais do que ler um livro, devolver a humanidade que foi tirada dos povos negros é reconhecer a sua potência no processo de formação cognitiva da sociedade. Saber que quanto mais diversa a experiência de mundo é, maiores possibilidades de diminuição das desigualdades. 

“A gente não teve acesso a essa literatura. Outras pessoas agora podem ter. Não é que a gente vai estar protegido, mas ajuda a passar de uma maneira menos auto-violenta. Essa literatura vai nos fortalecer”, acrescenta Carine. Para quem os livros são também uma ferramenta de transformação social.

Ingressar em um curso superior, foi este o tempo que levou para que as duas pudessem entender a força política que habita em seus corpos. Cada vez que alguém desmerece o papel do Coletivo, elas têm reafirmado o porquê de seus trabalhos ainda serem essenciais. Para elas não é confortável saber que em um mundo como o nosso, ainda é preciso explicar o óbvio, ainda é preciso mostrar as estatísticas. “O projeto existe, porque o problema existe, a gente não queria que precisasse existir”, complementa Juliane.

Quando possível, levam também as autoras para dentro das bibliotecas, onde realizam os debates. Buscam dividir com o público nomes menos conhecidos. Juliane diz ainda que “levar essas mulheres é uma forma de protesto, porque se os livros delas não estão lá, elas estão”, suas presenças são também a revelação de que a demanda existe e que as pessoas irão atrás de seus títulos.

Foro: Laura Santos

Durante a pandemia, causada pelo coronavírus, os encontros presenciais do Clube precisaram ser suspensos. O que parecia ser um empecilho, se mostrou como possibilidade de alcance de mais pessoas. Através da internet, o número de participantes aumentou.  Em uma sala com mais de 200 olhares, contam sobre a multiplicidade de gente partilhando o momento.

Carine e Juliane enfatizam que o grupo não se trata de limitar o tipo de literatura consumida pelo público, como muitos incomodados com o movimento tendem a querer levar as pessoas a pensar. Pelo contrário, é acrescentar, é fazer todos entenderem que nomes estão sendo apagados. “O país nega a nossa existência, é uma questão política”, lembra Juliane. E é através dos que se sentem desconfortáveis, dos que não têm interesse em autorresponsabilidade, que elas entendem que precisam continuar. 

O mais próximo que podemos chegar de compreender uma dor, é nos aproximando de quem a sente para ouvi-la. Mulheres Negras na Biblioteca faz parte do processo de cura, é o que os ouvidos precisam alcançar para distribuir pelo resto do corpo. A consciência de que apenas coletivamente é possível se refazer. Por todas as mulheres negras arrancadas da história, Carine e Juliane respiram.  

****

Além das trocas no Clube de Leitura, é possível também ter acesso ao conteúdo produzido para as páginas do Instagram e Facebook do Mulheres Negras na Biblioteca. Recentemente lançaram, em parceria com o Sesc – Ipiranga (SP), a websérie “Quantas autoras negras você já leu?”, disponível no Youtube.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Pular para o conteúdo