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Na força da bala, no colo da justiça: grilagem, milícia e violações de direitos no litoral do Piauí

“Só queremos viver em paz”. Essa frase, dita por um morador nativo da praia de Macapá, litoral do Piauí, ainda ecoa em nossos ouvidos, como um grito de socorro.

O litoral do estado do Piauí é o menor do Brasil. São apenas 66 km de extensão, em uma faixa costeira que compreende quatro municípios: Parnaíba, Ilha Grande, Cajueiro da Praia e Luís Correia. Vivem por lá mais de 200 mil piauienses, fora as centenas de milhares de turistas que circulam pelas suas belas praias, rios e pelo único delta das américas. É nesse pequeno pedaço de chão, que virou referência internacional para a prática de esportes aquáticos, que emerge um cenário de violações de direitos às comunidades tradicionais/pesqueiras, conflitos e impunidade.

Os conflitos iniciaram há pouco mais de 20 anos, porém, foi nos últimos cinco anos que eles se intensificaram e trouxeram à tona um cenário de violência, ameaças e agressões às comunidades tradicionais que ali vivem e trabalham. A Plataforma Ocorre Diário acompanha esse caso há quase 4 anos, desde 2021, quando mais de 20 pesqueiras foram colocadas abaixo por tratores escoltados pela Polícia Militar, em Cajueiro da Praia, afetando mais de 3 mil famílias que vivem da pesca e há mais de três décadas tiram sua renda e seu alimento do mar.

Esta grande reportagem reúne uma série de investigações iniciadas no ano de 2021 em diversas comunidades no litoral piauiense, mais especificamente nos municípios de Cajueiro da Praia e Luís Correia. Acompanhamos as denúncias, investigações e violações de direitos nas comunidades de Macapá e praia do Arrombado (em Luís Correia), e nas comunidades de Barra Grande e Praia da Lama (Cajueiro da Praia). Aqui, trazemos uma cronologia desses conflitos, as comunidades atingidas, seus múltiplos atores envolvidos e os fios de uma trama que ligam todos os fatos à um objetivo só: de expulsar as comunidades tradicionais dos seus territórios e explorar a região em nome da especulação imobiliário e do turismo predatório. 

Das pesqueiras no chão ao levante popular 

Fotos: reprodução / movimentos de pescadores

Em fevereiro de 2021, pescadores e pescadoras artesanais de Cajueiro da Praia, litoral do Piauí, acordaram em meio a um tormento, um cenário de destruição e desespero. Mais de 20 pesqueiras, utilizadas com apoio essencial ao trabalho dos pescadores, foram colocadas abaixo por tratores escoltados pela Polícia Militar. Máquinas pesadas a todo vapor, destruíram os seus espaços de trabalho e abrigo. 

O Conselho Pastoral dos Pescadores estima que pelo menos 3 mil pessoas vivem da pesca na cidade. Uma relação que vai muito além da geração de renda, mas que está entranhada na pele e no sangue dos povos originários daquela região. A relação com o território, com a água e com a terra é parte de quem eles são. Na época, a pergunta que ecoou aos ouvidos de todos era: quem mandou derrubar as pesqueiras? Porque a Polícia Militar estava fazendo a escolta no momento da derrubada? 

Até hoje, pouco se sabe sobre o episódio. Apesar disso, a resistência comunitária e articulação junto aos movimentos sociais foram fundamentais para fortalecer os pescadores e pescadoras da região. Associações, organizações e populares que organizam pescadores e pescadoras na região emitiram uma nota pública conjunta denunciando o caso, que também foi levado ao Ministério Público Federal e demais órgãos de fiscalização e controle. 

Nove meses após a destruição das pesqueiras, a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União publicou a Portaria nº 12.425, que estabeleceu o Termo de Autorização de Uso Sustentável Coletiva (TAUS), com a finalidade específica de instalação de equipamentos de apoio à atividade de pesca artesanal da comunidade tradicional representada pela organização não governamental “Ilha Ativa”. 

A Portaria foi uma conquista dos movimentos sociais e populares que travaram uma árdua batalha contra o poder econômico e especulação imobiliária na região. Com a emissão do TAUS, uma área de 23.735m2 adquiriu um caráter de interesse  público, “na medida em que será destinada à implantação de abrigo-pesqueiro para reparo de canoas, construção de apetrechos de pesca, que beneficiará aproximadamente 34 (trinta) famílias de pescadores artesanais”, afirma o documento.

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Antes das pesqueiras, o mangue

Fotos: Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP)

Também em 2021, uma grande área de mangue preservada, cumprindo seu papel no ecossistema da região de Cajueiro da Praia, foi abaixo em nome do “desenvolvimento”. Pescadores e movimentos sociais da região denunciam o avanço do desmatamento na cidade de Cajueiro, que é parte da Grande Área de Proteção Ambiental (APA) do Delta do Parnaíba. 

Um local que é berçário do peixe boi, morada de cavalos marinhos e reduto de aves migratórias, parece estar em constante ameaça por conta da especulação imobiliária. A denúncia é que empresários da região estariam alegando a propriedade da terra. No final de 2020 começaram a cercar grandes lotes de terreno na região e desmatar uma área nas proximidades da Praia da Lama, mesmo local onde as mais de 20 pesqueiras foram destruídas. 

O caso chegou ao conhecimento da Prefeitura da Cidade, Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMAM), Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público Estadual (MP-PI), Superintenbdência do Patrimônio da União (SPU) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que nada fizeram na época. 

Para quem mora na região e tira seu sustento da pesca, o avanço das cercas traz também muito medo e incertezas sobre o futuro. A cidade de Cajueiro da Praia há muito tempo chama a atenção de empresários e investidores imobiliários, pela sua beleza natural e atrativos turísticos. Barra Grande, vilarejo do município, foi o primeiro alvo da especulação imobiliária da região. Complexos turísticos, hotéis de luxo e restaurantes aos poucos foram sendo construídos no local, que hoje é vendida como a “Nova Jericoacara”.

“O que vemos é um cenário de impunidade e conflito”, afirma Luciano Galeno, representante da Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP). Sobre os envolvidos, ele complementa, “é uma empresa de bastante força econômica e política. E isso já tem gerado conflito grande com áreas de pesqueira. Essa região é a de maior concentração de peixe boi do nordeste. E se esse cercamento se agravar, vai afetar a pesca. Em Cajueiro da Praia há em torno de 5 mil pessoas que vivem da pesca. São pescadores, marisqueiras da região. Essa relação é histórica”, afirma.

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Criminalização dos que lutam por direitos 

Assista ao vídeo de um dos pescadores locais e entenda as denúncias que as comunidades tem feito.

No final do ano de 2023, um pescador idoso, que mora em Barra Grande desde seus antepassados, foi preso. Bernardo Oliveira, ou seu Jandaia como é conhecido, é um dos mais velhos da comunidade. Respeitado e querido por todos, é pai de sete filhos, pescador artesanal e catador de caranguejo. Ele também trabalha de roça e com pequenos serviços em toda região. 

Ele foi alvo de uma ação contra grilagem de terras na zona rural de Cajueiro da Praia. Várias entidades que acompanham as tentativas de expulsar as famílias tradicionais da região, estão revoltadas com a injustiça contra as comunidades enquanto os grileiros não foram incomodados. 

A prisão aconteceu no dia 13 de novembro de 2023, quando a Polícia Federal realizou uma operação na região de Barra Grande. Ele ficou tão abalado depois de ficar preso cinco dias que não conseguia sair nem até a calçada de casa, contou a esposa, Dona Rita Oliveira.  “O pior mesmo foi ser acusado daquilo que você não fez”, completa seu Jandaia.

Foto divulgação PF

Na mesma operação, a casa de Márcia Marques, 23 anos, mãe de duas crianças pequenas, teve a porta arrombada e apontaram uma arma para sua cabeça. Ela explica que ficaram das 5h da manhã às 16h da tarde trancados em casa, pois ninguém era permitido entrar ou sair da área até que a operação acabasse. “Quando eles chegaram ficamos assustados. Pedimos misericórdia porque não tínhamos para onde ir”, contou.

Hoje, as investigações das Polícia Federal seguem em curso. De acordo com o Delegado Eduardo Monteiro, a perspectiva é que em agosto se tenha uma conclusão. A comunidade, porém, teme por represálias aos familiares e outras pessoas que lutam por seu direito a permanecer no território de origem e contra os empresários.

A violência  como motor de traumas psicológicos

Comissão Ilha Ativa, Liliana Souza / Acervo Pessoal

Apesar do referencial cultural que carregam como grupos organizados socialmente, com traços culturais tradicionais ancestrais, estão cada vez mais desacreditados na justiça social, embora permaneçam resistindo aos tratores da elite protegida pelo Estado. De acordo com a vice-presidenta da Comissão Ilha Ativa, Liliana Souza, são centenas de famílias que estão correndo riscos de vida, graças a ações violentas praticadas por homens que estão a serviço do mercado imobiliário, do agronegócio e de ricos empresários.

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Segundo a ambientalista, as pressões para que abandonem suas áreas está traumatizando centenas de famílias que se sentem fragilizadas pelo descaso e o abandono das instituições públicas que têm a responsabilidade de protegê-los. A falta do Zoneamento Costeiro e da Regularização Fundiária das áreas da União, onde essas famílias vivem há séculos, deixa essas populações vulneráveis, embora que em 1985 tenham conquistado a posse das terras oficialmente. Instrumento esse que foi cassado pela Justiça para seguir com o projeto de expropriação das comunidades.

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De acordo com Liliana, “a partir do momento que perderam a posse da terra, começaram as ações perversas praticadas por pessoas contratadas para incendiar casas, queimar canoas, roças, cercas, casas de farinha, pesqueiras e até aterramento de poços cacimbões, para deixá-los sem água doce”, afirma, dando exemplo do que aconteceu na localidade Nova Barra Grande, onde uma área comum da comunidade foi grilada por um grupo de empresários agraciados com uma sentença judicial.

Comunitários mostram em vídeos suspeitas de atos destrutivos contra suas pesqueiras
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Defensoria Pública da União denuncia a atuação de milícias no litoral 

Foto: Sarah F. Santos

Em abril deste ano, a Defensoria Pública da União (DPU), por meio do defensor Rômulo Plácido, encaminhou à Secretaria de Segurança Pública do Piauí (SSP) denúncia coletiva de fatos criminosos cometidos por parte de agentes da Polícia Militar e Civil, que estão afetando a segurança das comunidades tradicionais e pescadores no litoral do Piauí. A denúncia é de  formação de milícias para dar suporte à grilagem de terras no litoral piauiense. Desde 2021 as comunidades tradicionais do município de Cajueiro da Praia vem denunciando ameaças que vêm sofrendo de pessoas armadas, inclusive de policiais, para que saíssem das terras que são suas e onde suas famílias vivem há gerações.

Em janeiro, o Defensor Rômulo Plácido chegou a realizar uma reunião após solicitação das comunidades, onde foi possível elaborar um documento coletivo com denúncias, dentre elas, crimes ambientais, ameaças a pescadores/as e derrubadas das roças que vem deixando a população em insegurança alimentar. Segundo Liliana Sousa, presidenta da ONG Comissão Ilha Ativa,  as denúncias contidas no documento foram enviadas para o defensor Rômulo Plácido com o intuito de serem encaminhadas para o Ministério Público Federal e Secretaria de Segurança Pública. 

“Isso tudo para que sejam identificadas as pessoas responsáveis, porque o que vimos foi a comunidade sendo acusada de grilagem de terra, onde as pessoas prejudicadas é que foram presas. Essas violações de direitos já vinham acontecendo”, aponta, acrescentando que esta ação da DPU vem dando um novo olhar para a situação, “é como se ligasse um alerta que já deveria estar ligado há muito tempo”, explica.

Prefeitos, secretários e funcionários de cartórios estariam envolvidos no esquema

Faixada no Cartório da Cidade de Luis Correia / Foto: B. Silva

A investigação movida pela Polícia Federal aponta que  todos os integrantes do que chama de “organização criminosa para favorecer grileiros”, serão indiciados a partir de agosto. Os nomes mais conhecidos envolvidos no crime são o do Prefeito de Cajueiro da Praia, Felipe de Carvalho, seu irmão e Procurador do município, Thiago de Carvalho, Mauri Antônio Ferreira, proprietário da empresa Renove Propriedades e Gestão Urbana, contratada pela Prefeitura sem licitação, para executar o Programa Minha Casa Legal, além de funcionários da Prefeitura e outros parentes do prefeito. O esquema envolvia altas somas em dinheiro, a exemplo de um terreno comprado por R$ 18 mil reais, meses depois foi vendido por R$ 1,5 milhões. Todos os personagens envolvidos ganharam propina com a grilagem.

E junho deste ano, o cartório de Luís Correia foi fechado pelo Tribunal de Justiça após a família que o controlava ser apontada pela Polícia Federal por participar de um esquema de fraude que favorece a grilagem de terras da União no município de Cajueiro da Praia, onde o cartório também atuava. De acordo com a denúncia, o tabelião do cartório, afastado por 90 dias, atuava para supervalorização das terras, de até 15000%.

Apesar disso, ameaças de despejos permanecem e com anuência da justiça

Maria da Paz, moradora nativa de Macapá, denuncia os despejos

Quando elas não chegam por meio da força e violência, chegam por meio de quem deveria proteger essas famílias. Em maio deste, uma audiência de conciliação foi realizada em Luís Correia para analisar um outro caso, o do terreno onde vive a família da dona Maria da Paz. São 5 casas, onde moram irmãos, sobrinhos, filhos e o pai dela, de quase 70 anos. Todos nascidos e criados  em Macapá.

O Juíz, Willmann Izaac Ramos, determinou a expulsão das famílias, atendendo a uma ação movida por Cícero Pereira dos Santos que, mesmo sem apresentar provas que já detinha a posse da área antes das famílias de pescadores, obteve o direito de ocupá-la. De acordo com os moradores da região, Cícero se apresenta como vendedor, mas na verdade, é conhecido por ser “laranja” para intermediar os especuladores imobiliários, que estão de olho no turismo predatório em curso na região. 

Nossa reportagem tentou contato com Cícero Pereira, mas não obtivemos sucesso. A ação, cujo processo pode ser consultado pelo nº 0000545-37.2008.8.18.0059, foi aberta em 2008, mas teve um desfecho apenas em 2018, quando o juiz Willmann Izaac publicou uma sentença em favor do vendedor. A prova que consta nos autos do processo e que deu a posse da terra para o vendedor Cícero são fotos de uma cerca que ele fez em 1997 na área. Ele informou ainda que registrou o imóvel em 2007, sendo que uma das últimas famílias está ali desde 2003.

BAIXE AQUI, NA ÍNTEGRA, DECISÃO SOBRE REINTEGRAÇÃO DE POSSE

Na imagem famílias nativas da praia do Macapá que sofrem ameaça de remoção / Foto reprodução

Na audiência, o juiz propôs que as famílias comprassem a terra de Cícero em um valor de 800 mil reais, chegando a baixar para 600 mil. A Defensoria Pública local afirma que nada mais pode fazer perante o processo, pois o trâmite já tem 4 anos. Ainda assim, ao fim da audiência a Defensora Ellen Brandão pediu a suspensão do cumprimento da sentença de reintegração de posse até que fosse pensado um programa de habitação ou indenização para as famílias.

O mesmo Juiz que autorizou expulsão de pescadores do Macapá-PI já foi investigado por beneficiar grileiros

Nossa reportagem fez uma investigação minuciosa sobre o caso, com suporte de advogados populares do Coletivo Antônia Flor, que analisaram o processo. Para eles, mesmo que se tenha apresentado alguma comprovação, os atos de “cercar uma área” e a “vigilância constante”, não configuram o exercício do direito de posse, isso na verdade, pode demonstrar o contrário: que  Cícero utilizava esta área para especulação imobiliária em terras que sabidamente são de propriedade da União. “Aparentemente, essa prática ilegal tem sido protegida pelo poder judiciário diante desta decisão”, comentaram os advogados populares. 

Mas, afinal, quem é o juiz Willmann Izaac Ramos Santos? O magistrado que autorizou a reintegração de posse à Cícero e, por consequência, a expulsão das famílias da Praia de Macapá de suas terras, não é qualquer juiz. Muitas decisões polêmicas, atitudes e condutas controversas chamam atenção para seu desempenho na função. 

Fórum de Luís Correia – Imagem Google Maps

Willmann Izaac Ramos Santos ficou mais conhecido no ano de 2020, quando foi afastado das suas funções pelo Pleno do Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI). A  justificativa foi que o Juiz infringiu leis e o código de ética da magistratura, atuando de modo parcial em denúncia envolvendo autoridades e empresários por suposta prática de grilagem de terras no litoral. 

Na época, ainda em 2022, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou o retorno imediato do juiz às suas funções, alegando demora na tramitação do Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD), que foi aberto para analisar a conduta do magistrado internamente. O juiz Willmann alegou, na época, que a instalação no PAD havia sido ilegal, uma vez que o Tribunal de Justiça não atingiu o quórum mínimo legal de 11 votos. 

Em agosto de 2022, o Pleno do Tribunal de Justiça do Piauí retomou a análise sobre a conduta do juiz e acatou as denúncias do PAD, deliberando pela aposentadoria compulsória do magistrado, que é quando um juiz é afastado definitivamente de suas funções (uma espécie demissão por justa causa, mas onde os magistrados continuam recebendo seus salários). O caso investigado é o mesmo que levou o juiz a ser afastado em 2022. A alegação é de que o juiz teria utilizado do seu cargo público para benefício próprio e como “moeda de troca”, uma vez que o próprio filho estava entre os investigados em denúncias de grilagem de terras no litoral, sob o comando do promotor de Justiça Galeno Aristóteles Coelho. 

O caso teve, recentemente, uma nova reviravolta. Em novembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ anulou a aposentadoria compulsória e autorizou o retorno do juiz ao trabalho, que aconteceu em dezembro do ano passado. O conhecido corporativismo impregnado no judiciário impede que se saiba detalhes sobre a conduta do magistrado, entretanto, na decisão do CNJ fica evidente que o mérito da denúncia não chegou a ser analisado, uma vez que a anulação se deu em razão de erro processual do Tribunal de Justiça do Piauí. O TJ-PI ainda pode retomar a investigação, mas deve abrir um novo Procedimento Administrativo Disciplinar e refazer a mesma investigação e análise que levou o juiz a ser afastado em 2020 e aposentado compulsoriamente em 2022.

Meses após sentença controversa, juiz é transferido: de acordo com o Tribunal de Justiça, o juiz Willmann Izaac Ramos Santos foi transferido, uma espécie de promoção, para Comarca de Parnaíba, maior cidade do litoral piauiense. De acordo a assessoria do tribunal, uma vaga foi aberta no município, um edital foi lançado e o pleno do TJ decidiu, com base critérios de enquadramento com a vaga, a transferência. Em seu lugar, assumiu o Juiz Antônio Fábio Fonseca. 

Enquanto a justiça tapa os olhos, as empresas seguem valendo mais que as pessoas 

Fazenda de Camarão, em Porto da Areia- Macapá / Foto Comissão Ilha Ativa

“Tudo o que a gente queria era viver em paz. Ter sossego na nossa vida, mas aqui no Macapá a gente não tem. Tinha mais gente aqui, não tem mais porque foram expulsos. Eu  conheço mais 6 famílias que foram expulsas. Começaram com promessas, depois passaram uma estrada por cima do nosso caminho, já botaram um portão e agora proibiram a gente de caminhar pela terra”, relata Domingos Coutinho, que é pescador e morador nativo da comunidade Porto da Areia, na região da praia de Macapá, litoral do Piauí.

É às margens do Rio Camurupim e adentrando o mar, pescando ou catando caranguejo, que as famílias forjaram seus modos de vida, o que vem sendo brutalmente ameaçado pelo turismo predatório e suas construções. Na comunidade Porto da Areia, onde moram atualmente cerca de 7 famílias, a construção de uma fazenda de camarão modificou completamente seus modos de vida, destruiu os mangues vermelhos e expulsou caranguejos e mariscos. 

“Com a fazenda de camarão muita coisa foi afetada, por conta dos manguezais que eles cortaram e queimaram. Eu sou catador e entendo tudo de caranguejo. Cortaram o mangue vermelho todinho, esse mangue é que dá alimento pro caranguejo, e o mangue não tem mais. Os produtos que eles colocam na água, atingem o rio. A gente tá vivendo de forma precária”, diz o pescador artesanal Domingos Coutinho. 

Comunidade resiste, apesar das inúmeras violações de direitos. Na foto, Domingos e sua companheira. Arquivo pessoal

Domingos tem razão em afirmar sua ciência sobre a importância do manguezal, pois são responsáveis por 95% do alimento que pescadores retiram do mar. O mangue é berçário. É lá que peixes, moluscos e crustáceos encontram condições para se reproduzirem. De valor ecológico imensurável, é abrigo da fauna e flora, tanto aquática quanto  terrestre. Domingos é corpo-território do Macapá, por ali sua família criou raízes e se ramificou. Ele conta que tem irmãos que nasceram lá e vivem na comunidade Porto da Areia, à beira do rio, junto a outras 7 famílias, onde se acostumou a uma vida sossegada, que há 20 anos foi perturbada pela ganância de grileiros.

Muitos moradores locais já desistiram e fugiram por medo de perder suas vidas, mas, Domingos, esperançoso por dias melhores, promete: “quando a gente conquistar nosso direito, todas as famílias que foram embora vão poder ter um cantinho aqui de novo na comunidade”. 

Vivendo com um alvo na testa

Agressão sofrida pelo senhor Rogério Aguiar / Arquivo pessoal

Quem não desistiu foi o Senhor Rogério Aguiar, 55 anos, que mesmo agredido com pancadas na cabeça, permanece no local. A agressão se deu porque fez uma porteira para proteger suas plantações de animais. Ao realizar o Boletim de Ocorrência, a polícia achou por bem considerar Rogério culpado. 

O senhor conta, como um cotidiano perturbador, a ação dos capangas “Vira e mexe eles estão aqui. Quando aparecem para destruir ou tocar fogo eu só me tranco dentro de casa”. Seu Rogério lembra:  “Sou morador do Macapá há quase 5 anos. Já fiz minha casinha. Depois que tô aqui apareceu um pessoal botando toco na frente da minha casa, querendo me vender a terra. Dizendo que se eu quisesse morar aqui tinha que comprar o pedaço da rua”.

Secretaria de Segurança cria grupo de trabalho para combater a grilagem e aciona o Tribunal de Justiça

Secretário de Segurança / Foto: SSP

Após denúncia da Defensoria Pública da União (DPU), de que havia, no litoral do Piauí, a ação de uma milícia para atuar em casos de grilagem de terras, o Secretário de Segurança do Piauí, Chico Lucas, se comprometeu em forçar um Grupo de Trabalho para investigar o caso. O grupo foi formado e teve sua primeira reunião na semana passada. 

Em maio, o secretário se reuniu com os juízes auxiliares do Tribunal de Justiça, Dr. Leonardo Brasileiro e Luis Moura, na sede do Tribunal de Justiça. Na pauta da conversa, estava o Grupo de Trabalho, criado pela Secretaria de Segurança, para combater a grilagem de terras. 

“Tivemos uma reunião com várias instituições: SPU, AGU, Polícia Federal, Abin, Defensoria Pública do Estado e ficou encaminhado que iríamos solicitar ao TJ uma audiência. Estamos vindo aqui pedir que TJ encabeça essa iniciativa, já que tem essa legitimidade pra gente discutir a ações judiciais e criminais no âmbito desse grupo interinstitucional”, afirmou o secretário.

Sopros de esperanças: Lei de proteção à comunidades pesqueiras do PI é sancionada

Foi na tentativa de criar um instrumento legal capaz de proteger essas famílias, que o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e Associação Nacional das Pescadoras (ANP) articularam, junto à Assembleia Legislativa do Piauí, um projeto de lei de proteção às comunidades pesqueiras.

“Os movimentos de pescadores começaram a articular, direto com o Karnak, com o governador, para que ele enviasse o projeto. Mas não deu certo. Depois fizemos um movimento de articular com deputados e o deputado Rubens Vieira (PT) recebeu o projeto, fez adequações que achou necessário e apresentou o PL, que foi aprovado e agora sancionado”, afirma Luciano Galeno, da CPP. 

O projeto prever, dentre outras coisas, “promover a proteção do direito ao território de comunidades tradicionais pesqueiras e o procedimento para a sua identificação, objetivando garantir a essas comunidades e seus membros a concretização e efetivação de seus direitos individuais, coletivos e difusos de natureza econômica, social, cultural e ambiental, compreendendo a salvaguarda, proteção e promoção de seus modos de criar, fazer e viver”, diz o texto, em seu artigo 1º.

Para a comunidade, que resiste no local, é inegociável a sua saída. 

“Aqui era um terreno baldio, como antes não tinha grilagem de terra nós fizemos nossas casas de taipa, depois, de acordo com as condições, foi feito de alvenaria. De 2007 pra cá que a gente corre esse risco de perder nossas moradias. Querem que a gente vá pra cidade que a gente nem conhece, se é aqui é nosso lugar”, afirma Matheus Messias, pescador de 47 anos de idade. Quem faz coro com Messias é Domingos “Nascemos aqui e daqui tiramos o peixe, o marisco, a sobrevivência. Aqui é nosso lugar”, afirma Domingos Alves, pescador nativo.  

As pessoas que, segundo a comunidade, afirmam ter o Registro Imobiliário Patrimonial -RIP- da área são dois empresários, Luís Neto e Francisco da Mata. Luis Neto tem um largo histórico de passagem pela polícia, inclusive ele também é dono de uma fazenda de camarão no local. As famílias contam que quando ele iniciou seu projeto de fazenda, passou por cargos públicos como Secretário de Estado, vice-prefeito e Secretário de Turismo. Em 2020 ele foi acusado de grilagem na região do Porto da Areia, Macapá, e foi alvo de operações da envolvendo o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO)

Domingos, corpo-território do Macapá / Arquivo Pessoal
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