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Na Serra Vermelha, o Cerrado e a Caatinga se encontram

A biodiversidade é a maior riqueza do Brasil. Somos um país “gigante pela própria natureza”, com uma extensão territorial que ocupa quase metade da América do Sul, e abrigamos uma abundante variedade de vida que representa mais de 20% do total de espécies no mundo. Além dos seis biomas terrestres (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal) e dos ecossistemas marinhos, há outro tipo de composição natural onde brilha o nosso tesouro: os ecótonos.

São os locais onde dois ou mais desses biomas se encontram, conformando zonas de transição entre ecossistemas em que a biodiversidade é ainda maior, com espécies provenientes de cada bioma ou endêmicas, isto é, surgidas nos próprios ecótonos. Em 2003, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) realizou um estudo que determinou os três principais ecótonos no Brasil: Cerrado-Amazônia, Caatinga-Amazônia e Cerrado-Caatinga. Uma coincidência une essas regiões: grande parte delas está sobreposta ou nas proximidades do Matopiba.

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – , o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado (66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

No sul do Piauí, no ecótono Cerrado-Caatinga, existe uma dessas zonas de transição – ou, como se diz na Biologia, de “tensão ecológica” – ainda pouco conhecida. É a Serra Vermelha, que faz parte da mesma formação natural onde estão os Parques Nacionais da Serra das Confusões e da Serra da Capivara e abriga ainda espécies da Mata Atlântica. A região foi indicada entre as 900 áreas prioritárias para a Conservação da Biodiversidade Brasileira, conforme Relatório Nacional para a Conservação sobre Diversidade Biológica, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Contudo, a tensão por lá vai além da ecológica, porque a Serra em si não é protegida e, há 17 anos, uma mobilização de ambientalistas pede a criação de um parque nacional nesta área. Segundo dados do Ibama, o ecótono Cerrado-Caatinga ocupa 1,3% do território brasileiro e tem 3,3% de suas áreas protegidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc).

A Campanha “Ajude a Salvar a Serra Vermelha” surgiu quando denunciaram a atuação da empresa carioca JB Carbon, que estava queimando a floresta para produzir carvão. “A Serra Vermelha estava virgem, intacta até 2007, porque o Piauí era mesmo meio esquecido. Desde a época da transformação da Terra, em que o mar emergiu e surgiram aquelas formações rochosas lindas, de uma beleza cênica de tirar o fôlego. Ali já foi o fundo do mar e quando ficou assim, intacto, aquelas árvores de 70, 50 metros de altura são da Mata Atlântica por isso, porque um dia ali já foi mar. Foi decretada a existência de Mata Atlântica pelo próprio Ministério do Meio Ambiente em 2005, considerada área prioritária para conservação dos biomas no Nordeste, não só para o Piauí. O local reúne paisagens exuberantes e uma beleza cênica incomum”. Assim nos descreve Tânia Martins, coordenadora geral da Rede Ambiental do Piauí (Reapi) e jornalista do Ocorre Diário.

Imagem aérea colorida de fileira de fornos de carvão de barro avermelhado cercados de lenha tendo de ambos os lagos vegetação verde densa e arbórea e também mata já derrubada
Desmatamento e fornos de produção de carvão na Serra Vermelha | Foto: André Pessoa

O embate se arrasta até hoje, entre a possibilidade de criar uma unidade de conservação na Serra ou de anexá-la ao Parque Nacional da Serra das Confusões. Já houve uma determinação da Justiça Federal para a segunda opção, que não foi cumprida. Em 2023, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, quase concretizou a assinatura de um decreto que anexaria 90 mil hectares da Serra Vermelha à área protegida da Serra das Confusões, mas os ambientalistas afirmam que o governo estadual se opôs à decisão. “Estão destruindo um ecótono importantíssimo para o Nordeste. Aquela área, juntando ao Parque Nacional da Serra das Confusões, é que garante a produção de água, porque em cima dessa Serra Vermelha há o encontro da bacia hidrográfica do Rio Parnaíba com o Rio São Francisco”, alerta Tânia.

Segundo a jornalista, em 2008 a pauta alcançou projeção nacional ao aparecer no Globo Repórter e chamou a atenção de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), que fizeram uma expedição para lá. “Eles catalogaram muitos bichos e descobriram uma espécie diferente, que tem mais de um metro de comprimento, com uma cauda semelhante à daqueles lagartos enormes. Eles o chamaram de um animal “relictual” e disseram que deve existir uma infinidade de animais que ainda não foram catalogados, porque era inóspito mesmo, pesquisadores não iam lá, não tinha estrada, era difícil de chegar”.

A questão segue em discussão na justiça com uma Ação Civil Pública movida pelo procurador da República Tranvanvan Feitosa e deve ser realizada uma audiência de conciliação no próximo dia 18 de junho. Segundo o procurador, foi solicitada a participação da União Federal, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Governo do Estado do Piauí.

“O Ministério Público Federal é a favor da criação do Parque Nacional da Serra Vermelha, mas a proposta apresentada pelo ICMBio é ter pelo menos a proteção da área com a sua inclusão no Parque Nacional da Serra das Confusões. É a área mais singular em biodiversidade daquela região e precisa ser protegida urgentemente, porque senão vai acabar sendo alcançada pela monocultura de soja ou qualquer outro tipo de destruição, com danos e riscos graves e irreversíveis do ponto de vista ambiental. A dificuldade até agora foi atender o interesse de todas as partes interessadas, que no Estado do Piauí inclui o próprio poder público estadual, é preciso que ele se convença disso. Entendemos que esse consenso dificilmente vai ser obtido, mas isso não impede a criação da Unidade de Conservação porque somente à União Federal e ao ICMBio cabe decidir”, explica Feitosa.

Foto colorida de palmeiras em meio à vegetação arbustiva
Buritizais em áreas de brejo no encontro do Cerrado com a Caatinga | Foto: Thiago Batista/UnB

Procurado pela Eco Nordeste, o titular da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) do Piauí, Daniel Oliveira, não respondeu se o órgão vai participar da audiência e qual a posição do Estado sobre a proteção da área. Disse apenas que o governo do Estado não foi notificado sobre a audiência. O representante alega que compete somente à Procuradoria falar sobre o assunto, já que tramita na Justiça.

Segundo dados do Ibama, o ecótono Cerrado-Caatinga ocupa 1,3% do território brasileiro e tem apenas 3,3% de suas áreas protegidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc). Um estudo elaborado pelo ICMBio, em maio de 2022, reconheceu que esta área de paisagens deslumbrantes e grande beleza cênica teria uma vocação natural para o ecoturismo, que inclusive já é feito na vizinhança, no Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato.

Comunidades rodeadas pela soja

Foto colorida de cinco pequenos frutos amarelos em forma de pião só que alongados dispostos no chão em meio à folhagemCroatá é um fruto comestível da Caatinga, podendo ser consumido cru ou cozido | Foto: Thiago Batista / UFRN

Foto colorida de vários coquinhos avermelhados em meio a cipós verdes e cipós secosCoquinho da piaçava, um dos frutos encontrados na transição do Cerrado para a Caatinga | Foto: Thiago Batista / UFRN

Foto colorida de mão aberta com um punhado de frutos vermelhos de casca grossa e enrugadaBuriti é um fruto do Cerrado usado para extrair óleo de uso medicinal para consumo in natura | Foto: Thiago Batista / UFRN

Esse reduto de biodiversidade é vizinho de um dos principais municípios do Matopiba, Bom Jesus (PI), que é conhecido regionalmente como “a capital do agronegócio”. Segundo as projeções do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), a produção de soja no município deve aumentar em quase 40% nos próximos dez anos, acompanhada pela ampliação da área plantada de 83 mil para 117 mil hectares.

Sob a pressão do avanço da fronteira agrícola e o desmatamento, zonas de transição como esta tornam-se mais vulneráveis às mudanças climáticas, com impactos sobretudo nas espécies endêmicas e raras, que podem desaparecer com o desmatamento e a destruição de seus habitats. Estima-se que nessa porção mais ao sul do ecótono Cerrado-Caatinga existam cerca de 280 espécies de plantas e 79 espécies de animais, segundo levantamento de pesquisadores da Universidade Estadual do Piauí (Uespi) e da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Foto colorida de plantação seca de milho ao pé de uma serra coberta de vegetação sob o céu azul
Cultivos consorciados na comunidade Mocambo, próximo da Serra Vermelha | Foto: Thiago Batista / UnB

Em contraponto a essas ameaças, vivem nesse ecótono ao sul do Estado comunidades rurais que mantêm modos de vida e práticas produtivas mais sustentáveis. “Essas comunidades fazem um uso do ecossistema que não está restrito à área em que elas plantam roça. Elas têm a área produtiva, os quintais, mas têm também uma relação com o Cerrado de extrativismo, pesca, criação de animais soltos e de uso de territórios comuns, com uma gestão coletiva das áreas”, explica Andréa Leme, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). No ano passado, ela orientou uma pesquisa de mestrado sobre essa região do Piauí, pela Universidade de Brasília (UnB).

O autor do estudo, Thiago Batista, é um jovem da comunidade rural de Feirinha, no município de Redenção do Gurguéia (PI), afetado pelo crescimento do agronegócio e por seus empreendimentos associados, como as Barragens de Veredas e Algodões. Seu trabalho sistematizou o papel do modo de vida camponês na salvaguarda da agrobiodiversidade nessa parte do ecótono Cerrado-Caatinga. As famílias agricultoras vivem da natureza, estabelecendo uma via de mão dupla na relação com esse tesouro. A conservação da biodiversidade é importante para o seu sustento e, ao mesmo tempo, o manejo que fazem das plantas e dos animais contribui para proteger as espécies.

Foto colorida de canoas de madeira em meio à área alagada com capim e espelho d'água
Canoas feitas de tamboril ou de jatobá, espécies da Caatinga, são utilizadas pelos camponeses | Foto: Thiago Batista/UnB

Em Feirinha, por exemplo, enquanto a monocultura de soja domina nas grandes fazendas da região, são 79 espécies de plantas cultivadas, preservadas e utilizadas pelos agricultores, entre 26 espécies frutíferas, 19 de legumes e verduras, 18 de uso medicinal, seis ornamentais, três forrageiras, três para uso em artesanatos, duas inseticidas e duas para uso com fins espirituais.

“A soja já está no Piauí há algum tempo, desde a década de 1980, mas vemos uma explosão com o Matopiba, desde 2015. A pesquisa teve o objetivo de mostrar que a região da Serra Vermelha merece atenção porque está sendo ameaçada pelo agronegócio e que existem alternativas para esse modelo de agricultura, que são locais, já existem mas precisam ser visibilizadas e apoiadas”, conta Thiago.

Projeto Ma.to.pi.ba.

Este conteúdo faz parte do Projeto Ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Agência Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.  

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e  Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts, e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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