“Então nós viemos pra cá e já estamos com quase 8 anos tentando um pedaço de terra pra trabalhar – não estamos aqui pra tomar terra de ninguém, estamos pra nos arranjar no direito que nós temos. Então, como chegamos nesse ponto aqui pra acampar: aqui que é dos companheiros do Vale da Esperança , chegamos aqui e não era dividido. Com uns três anos dividimos, e as pessoas que estavam aqui há muito tempo, ficou com esse pedaço de chão”, Dona Terezinha de Jesus Silva Castro, residente do Acampamento Terra Nossa.
Dona Terezinha de Jesus é uma das quase 60 famílias que estão acampadas há quase uma década nas beiradas do Rodoanel em Teresina. A terra, onde as famílias já plantam e fizeram benfeitorias como a implantação de um poço, é o sonho de ver realizado o direito de viver, existir e trabalhar. Lá, onde a história das mulheres empobrecidas se repetem, é composto por uma maioria de mulheres e idosas, cujas as marcas do tempo se apresentam em muitas doenças, que se quer são acolhidas com a assistência social do Estado.
Em plena na pandemia, onde as famílias vivem o terror de tentar se proteger da morte iminente na espreita do coronavírus, as famílias depararam-se queimadas de suas casas, que misteriosamente ninguém sabe explicar, mas que levou muitas pessoas a saírem da terra. “Eu moro nesse barraquim aqui de favor porque o meu barraco tocaram fogo. A gente tava pro Incra e quando eu cheguei tinham queimado. E eu não tenho dinheiro pra fazer outro, porque qualquer barraquim desse aqui pra fazer, pra quem não sabe fazer, é uns 600 a 700 reais. Aí eu não tenho”, conta Dona Margarida Lemos.
Depois que tiveram suas casas queimadas e juntamente com as pressões da pretensa proprietária da terra, muitas pessoas foram embora da terra, e como já dissemos, deixaram para trás uma maioria de mulheres idosas que não desistiram do sonho de ter sua terra.
Para Dona Margarida ter a terra é um valor ancestral e inegociável, pois é parte de quem ela é “Eu tenho 13 netos e cinco filhas. E toda vida trabalhei na roça. Nasci e me criei. Meu pais, meus irmãos e também”, conta. Ela acrescenta “Eu queria um cantinho, um pedacinho de terra pra gente plantar. pra gente colher alguma coisa pra gente, porque a gente é pobre e precisa trabalhar”.
As famílias ao chegarem na terra consideraram que o local pertencia a União, com o tempo houve a reivindicação de uma proprietária, cuja o espaço seria denominado como Fazenda Santa Isabel. “A propriedade dizem que era da União. Muita gente sem ter terra pra trabalhar, sabendo que a terra era da União, entraram nela. As pessoas sem terra foram distribuídas em muitos assentamentos”, explica Dona Terezinha, que explica que hoje mora em um destes assentamentos com sua mãe, Vale da Esperança, mas ela quer mesmo é ter seu próprio pedaço de terra.
A terra: entre sua função social e a propriedade privada
Deste modo, as famílias têm ido a tentativas constantes junto ao INCRA ( Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e Interpi (Instituto de Terras do Piauí). Nossa equipe procurou o Incra, que por sua vez afirma que as famílias não assentadas do órgão. Segundo o instituto, as famílias do Acampamento Terra Nossa estão em uma área limite entre o Assentamento Vale da Esperança (assentamento do INCRA) e a propriedade privada.
Segundo o Gabinete da Superintendência Regional do Incra no Piauí, houve um acordo entre Interpi e o proprietário da fazenda para que as famílias do acampamento Terra Nossa passem a morar numa parte cedida da área particular. O Interpi é o órgão encarregado pela elaboração do documento e o Incra entrou apenas como testemunha.
Já segundo o Interpi, a resposta que nos conferida foi “Estamos tentando resolver um local para elas ficarem, mas eles estavam ocupando terreno da União. O estado está auxiliando-as”, no entanto o órgão da união deveria ser o INCRA, que por sua vez afirmou sobre a necessidade do Interpi intervir. E de um lado e outro, as famílias vão lutando para ter a garantia de dar valor social a uma terra que não produz.
A prática dos poderes públicos constituídos, em desmembrar as lutas, e por vezes, individualizar os processos, deixando famílias de fora do reassentamento, é mais uma função estratégica do direito para despolitizar os conflitos, reduzindo-os à esfera dos conflitos pessoais.
Com a individualização dos conflitos sociais pela lei e pela ficção jurídica, que provoca indefinições sobre de quem é a responsabilidade pelo reassentamento das famílias, as pessoas que antes lutavam juntas pela posse coletiva de uma vasta porção de terra, acabam por se contaminar pelo vírus individualista, que enfraquece a luta coletiva e a conquista do direito à moradia plena e com dignidade. Neste terreno ganha a burocracia e perde a luta coletiva por direitos sociais fundamentais.
O povo quer terra e também dignidade
A dignidade da pessoa humana sugere a garantia de condições mínimas para uma vida saudável e, para que isso ocorra, um padrão mínimo de sobrevivência deve contemplar um atendimento básico e eficiente de saúde, o acesso à uma alimentação básica e vestimentas, à educação e garantia de uma moradia.
Nossa equipe procurou a Sasc (Secretaria da Assistência Social e Cidadania), que por sua vez respondeu que a questão primeira é a terra. “A primeira questão é fundiária, pois é a raiz do problema. É à partir daí, acionam ou não a assistência social, pois existem as razões legais que precisam ser avaliadas, e geralmente tais situações acabam tendo muitos desdobramentos”, responde a Sasc. Enquanto o jogo de pingue pongue acontece as famílias amargam com fome, sede e doenças.
É importante destacar que apesar do ideal ser a realização de todos esses direitos, de forma concomitante, a garantia ou não de um deles, não impede necessariamente a garantia do outro. Acontece, que respostas como as trazidas pela SASC, refletem bem que a qualificação do ser humano para esse estado de privacidade e, da propriedade, como o elemento que nos constitui e nos desiguala entre si, é mesmo de um ninguém, de um não ser, de um nada.
Diante disso é necessário pensar que essas famílias não se circunscrevem apenas a uma moradia, e se não a tem – condição mínima de existir, pois todo ser ocupa um lugar – está visível que grandes mudanças se impõem, pois a dimensão da dignidade humana não se contém, apenas, no “viver-existir”, sem o atendimento dos direitos sociais mínimos.
Enquanto isso “Aqui a gente passa fome, a gente passa sede, a gente é picado por escorpião”, lembra Dona Margarida. E acrescenta “A irmãzinha desse barraquim, que mora sozinha com sua irmã, está doente e foi pro Dirceu”.
“Não temos morada certa, não tem terra pra trabalhar”
Terezinha explica a situação das muitas famílias que estão ali, muitas delas expulsas para a beira do BR. Para Terezinha, não ter uma morada certa faz com que os moradores tenham um movimento de idas e vindas entre a terra reivindicada e outros arranjos de moradias, muitas vezes com parentes como é o seu caso. “Então nós, como não temos morada certa, não tem terra pra trabalhar – que nosso destino é trabalhar pra arranjar o pão de cada dia pra comer e levar pra mesa de quem não tem, não é?”, afirma.
Para Dona Margarida o caminho é o mesmo, não há paragem certa para quem lutar por um pedaço de chão. Dona Margarida conta que sua vida é dividida entre ir para casa da sua filha do Dirceu e voltar pra o seu “barraquim”. “Quando eu vou pro Dirceu, porque eu trabalho também, quando minha filha vai trabalhar eu fico com meus netinhos, por isso eu não fico aqui todo dia. Ela mora de aluguel e eu tenho que ajudar também a pagar o aluguel porque a gente é pobre. Essa é a razão pra eu não morar aqui definitivo. Mas quase todo dia eu to aqui e toda reunião que tem eu participo”, conta Dona Margarida sobre sua saga diária.
As pressões por parte da proprietária é constante, mas as acampadas insistem que os órgãos públicos devem resolver o conflito, pois até então a terra não cumpria a sua função social, pois nenhuma produção e nem moradia existia ali. Outra questão que as acampadas citam é uma lista onde há nomes que podem ou não ser beneficiadas com a terra. Dona Terezinha, inclusive, teme não poder entrar nesta lista pelo arranjo temporário de moradia que tem com sua mãe no assentamento vizinho.
A situação se complicou depois que a estrado do Rodoanel chegou, pois dividiu as terras, onde alguns moradores já tinham roça. Depois que as pressões para sair da terra se intensificaram algumas famílias tiveram que refazer suas casas mais próximo da BR, onde é, segundo moradores, muito perigoso. Segundo, Teresinha, há um acordo apresentado pelo Interpi, mas ainda não houve resolutividade.
A esperança, afinal, é de que essas instituições que têm como função cuidar, proteger e garantir os direitos dessas pessoas, possam abandonar seus principais vícios, seja o de corte absoluto entre norma e realidade, seja o da indiferença ou perplexidade diante de problemas sociais gravíssimos.
Enfim, que os profissionais e governantes troquem o habitual “lavo minhas mãos” do fazer burocrático, contente com interpretar por interpretar (“A primeira questão é fundiária, pois é a raiz do problema”; “mas eles estavam ocupando terreno da União”, “Segundo o instituto, as famílias do Acampamento Terra Nossa estão em uma área limite entre o Assentamento Vale da Esperança (assentamento do INCRA) e a propriedade privada”), por um compromisso com o interpretar para transformar.
Reportagem Coletiva: Germano Portela; Sarah F. Santos; Milena Rocha; Isabella Petry, Marcelo Filho, Vicente de Paula (Conexão OcorreDiário e Coletivo Labcine)
Fotos: Milena Rocha e Germano Portela
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