O olhar firme denúncia uma mulher que já viveu e vivenciou muitas dificuldades na vida, mas também é sintoma de quem decidiu não baixar a cabeça e se levantar contra as injustiças. Vera Lúcia Salgado, mulher sertaneja e sindicalista, nascida no sertão de Sergipe, é hoje a única candidata negra à presidência da república no Brasil, disputando pelo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Em 2018, compôs com Hertz, rapper e ativista do movimento negro do Maranhão, a primeira chapa 100% negra à concorrer ao executivo nacional. Em 2020 foi a primeira mulher negra a concorrer à Prefeitura de São Paulo.
Ser a primeira tantas vezes não é, para ela, um motivo para se comemorar. Pelo contrário, é reflexo do racismo estrutural que se acentua de forma ainda mais agressiva nas estruturas políticas e de poder, fazendo com que, séculos depois do fim da escravização, o povo preto ainda seja empurrado a contextos de extrema vulnerabilidade e precariedade.
Vera Lucia migrou ainda criança com a família para Aracaju e se estabeleceu na periferia da capital sergipana. Aos 19 anos começou a trabalhar como operária na indústria da construção civil, onde se destacou como ativista sindical, ocupou cargos de diretora do sindicato da categoria e atuou na Federação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Têxtil. Mais recentemente se mudou para São Paulo, onde reside atualmente.
Vera esteve em Teresina-PI, nesta segunda-feira (20/06), para lançamento das candidaturas do PSTU. O ‘Ocorre Diário’ conversou com Vera sobre racismo, luta antirracista, bolsonarismo e eleições de 2022. Confira abaixo a entrevista:
Ocorre: Até o momento, você é a única candidata negra à presidência do Brasil. O que isso significa pra você, enquanto mulher negra? E o que isso diz sobre a nossa política?
Vera Lúcia (PSTU): eu, ser a única candidata negra, nordestina e da classe trabalhadora é expressar que nós somos a maioria da população brasileira, é expressar também o fato de onde eu venho, que é o setor mais pauperizado da sociedade brasileira, que são o daquelas mulheres que estão no desemprego e informalidade, que moram nos bairros mais longínquos, sem nenhuma estrutura, sem creches.
Então, eu expresso isso e por ser única mulher negra também é uma forma de dizer que a política, que é um espaço público e deveria ser um espaço para toda a classe trabalhadora, não é. Ela ainda é um espaço majoritariamente ocupado por homens da burguesia e brancos. Isso porque é muito comum achar que o espaço reservado para nós, mulheres, é o espaço privado, que é o espaço doméstico, de cuidado da casa, com a família, com os filhos. No caso das mulheres negras, ainda somos a maioria das mães-solos que, por conta do machismo, são abandonadas com seus filhos. O fato de que nós saímos das senzalas, depois de mais de 300 anos de escravização, sem casa, sem terra e sem trabalho, condena essa parcela da sociedade brasileira ao que há de pior.
Nós, mulheres negras, somos maioria em tudo. Somos maioria das que passam fome, somos maioria daquelas que não tem casa, somos maioria também daquelas que lutam para ter moradia, somos a maioria das desempregadas, somos maioria daquelas que recebem os menores salários, somos maioria das assassinadas, somos maioria das que ficam a margem de qualquer coisa que o sistema capitalista tenha produzido. Isso porque esse sistema se utiliza de nossas diferenças e transforma isso em desigualdades. Para nós, mulheres negras, existe uma combinação entre exploração capitalista, machismo e racismo que, de forma inseparável, transforma nossas vidas em um verdadeiro tormento.
Ocorre: você acredita que só mulheres negras, como você, que sentem e vivem na pele o racismo, são capazes de apresentar propostas que possam romper radicalmente com a opressão racial?
Vera Lúcia (PSTU): Isso é muito importante, mas o central é você saber, mesmo sendo mulher negra, a quem você defende. Nós vivemos em uma sociedade dividida em classes. Na burguesia, existe gente branca, mas também existe gente negra, em menor grau, mas existe. Existem homens e mulheres, existem LGBTs também. Mas o que nos divide mesmo é a nossa classe.
As opressões não são comuns, mas a opressão que uma mulher negra da classe dominante sofre não é igual a sofrida por uma da mulher negra da classe trabalhadora, que sente e vive, além do racismo, o machismo e a exploração capitalista, que se combinam. As mulheres da classe dominante vão sentir o racismo, mas elas têm os bens materiais que permitem que elas não passem fome. Elas, inclusive, são favorecidas socialmente dentro desse sistema. Nós, por outro lado, em sendo negras, temos menos condições materiais que qualquer outra parcela da sociedade e do interior da classe trabalhadora também.
Por isso é importante a unidade das mulheres e homens negros contra o racismo e contra o machismo, dentro e fora da classe, já que o machismo também está nos homens da classe trabalhadora. Buscamos essa unidade porque temos um inimigo comum, que é a classe dominante, a burguesia, que condenam 125 milhões a não ter comida em casa, 33 milhões de pessoas à fome, condena hoje 92 milhões ao desemprego e subemprego, que condenou 6 milhões de pessoas antes das enchente a não ser moradia.
Ocorre: uma parte da esquerda está reivindicando uma unidade, centralizada na candidatura de Lula, como caminho para derrotar Bolsonaro. Mas o PSTU optou por lançar uma candidatura própria nessas eleições, porque?
Vera Lúcia (PSTU): Nós entendemos que botar Bolsonaro pra fora é uma necessidade extremamente importante nesse momento, aliás, Bolsonaro já era pra ter caído pelas ruas se as direções dos movimentos não tivessem minguado as manifestações e até incentivado sua queda e não tivessem canalizados as lutas para as eleições. Tirar Bolsonaro é muito importante, mas tão importante quanto isso é derrotar o bolsonarismo. E o bolsonarismo, que está armado e organizado, você não tira pelo voto. Você tira na derrota política, eles precisam ser vencidos, de fato, politicamente. E isso você não faz abraçado com a burguesia, com os grandes empresários, latifundiários e banqueiros, que também se favorecem desse mesmo governo, que é responsável pela fome, pelo desemprego, pela miséria e pelas mortes da classe trabalhadora.
Não podemos condicionar o Brasil hoje a descer a ladeira ao status de colônia, com o desmantelamento do parque industrial, para torná-lo um mero exportador de produtos primários ou pouco industrializados, enquanto condena a classe trabalhadora a todo tipo de sofrimento.
Não podemos dizer que essa é a saída pra classe trabalhadora e achar que Lula, porque está com PSOL e PCdoB, vai solucionar os problemas da classe trabalhadora, os problemas como a fome e miséria do povo. Porque Lula também está com Alckmin, Renan Calheiros e agora está buscando Temer, que são os responsáveis por essa realidade que estamos vivendo hoje também.
Não é só Bolsonaro, ele não é sozinho, ele tem atrás de si os bancos, madeireiras, as mineradoras, mas do lado de Lula também tem tudo isso. A diferença é que, óbvio, Lula não defende uma ditadura militar e Bolsonaro defende. Agora, sabendo que Bolsonaro defende ditadura e questiona a eleição, a tarefa das direções era organizar a classe pra botar esse genocida pra fora, ao invés de dizer que somente votar e tirar Bolsonaro vai resolver. Qual o projeto para resolver o problema da fome? Qual o projeto para resolver o problema de 92 milhões de desempregados? Qual o projeto para retirar todo mundo das encostas e barrancos? Qual o projeto para resolver o problema da inflação? Qual o projeto para que o Brasil se torne, de fato, independente? Não tem!
Então, Bolsonaro é um problema que, de fato, precisamos resolver e é muito importante, mas ele não é o único problema. Por essa razão é que não nos juntamos com PT, PCdoB e PSOL, juntamente com PSB e REDE Sustentabilidade, dizendo que a eleição vai resolver o problema da classe, por que não vai.
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