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O cu vai falar e numa boa

O cu vai falar e numa boa 

cu tarde da fauna
Experimenties corpográfikimagétikuis da Tarde da Fauna na Casa da Cultura de Teresina(PI) durante Residência Artística do Prêmio de Artes Visuais 2017 (CHAPA: Dinael)

Ninguém solta o cu de ninguém! Embora o esquerdomacho queira nos obrigar a ficar todas de mãos bem apertadinhas, obedecendo caladas as demandas que eles priorizam. E cuidado que eles mergulham de cabeça, e não de bunda, na onda fascista vigente de combate à educação. Fazem o maior estardalhaço com eventos como a palestra “A filosofia como modo superior de dar o cu” prevista para II Semana do CAF (Centro Acadêmico de Filosofia) UESPI que teve de ser cancelada por conta das ameaças truculentas da machulência.

Eu é que não seguro na mão de quem não deu uma dedada no próprio cu e permitiu-se abertura delicada e deliciosa das pregas, tão pouco abriu mínima MENTE.

Antes de achar que seu próprio cu ou de quem quer que seja é o cúmulo do absurdo, procure saber como nossas dimensões abjetas têm fissurado processos de resistência que devemos levar em conta sim no combate a regimes totalitários como este que assola o país.

O título da palestra que causou polêmica faz referência ao capítulo do livro Manifesto Contrassexual do filósofo espanhol Paul Preciado e trata dentre outros temas o conceito de homossexualidade molecular e transversalidade deleuzianos, da filosofia como enrabadas no pensamento e uma série de outras reflexões que têm implicações relevantes para se debater o desejo, identidades, essencialismos e os regimes de autorização discursiva. Falar do cu, em Preciado, não significa, portanto, falar meramente do uso científico/sexualis/biológico desta parte anatômica, mas um importante elemento de desestabilização da economia política hegemônica centrada na heteronorma, patriarcado e o sistema cisgênero.

Pensar cu é reposicionar-se diante do regime de visibilidade e produção dos corpos, mobilizando outras possibilidades de relação, afetos, desejos e referências desterritorializadas da norma/disciplina e dos esquemas de controle/vigilância.

FALA CU – viçante (Profanações, Brasília, maio/2019) CHAPA: Gabriela de Freitas

Bataille já nos alerta sobre a potência destas partes inferiores tão desprezadas ao evidenciar a associação que a higienização burguesa faz delas com o famigerado proletariado:

“Para os burgueses, os operários comunistas são tão feios e sujos como partes sexuais e peludas, ou partes baixas: e cedo ou tarde vai haver uma escandalosa erupção, durante a qual vão rolar cabeças de burguês, nobres e destituídas de sexo” (Bataille – O ânus solar).

Coitados daqueles que se afirmam como sujeitos racionais e universais que pensam com a cabeça e não com o cu. Como se o corpo todo não pensasse! Como se na hora das decapitações só não restasse o cu pra berrar.

Como o filósofo ressalta: “Quem acumula esta força eruptiva está necessariamente situado em baixo.” (Bataille – O ânus solar). Mas a machulência (praga que contamina todx os gêneros  e cria a ficção do binarismo com blabla homens e mulheres – está toda apodrecida pela lógica do macho) se recusa a pelo menos debater esta constatação e se alia à moral pequeno burguesa descaradamente.

Eles insultam a diversidade de pensadorxs que têm provocado este debate. Desde a psicanálise de Freud e Lou-Salomé o cu tem sido investigado em consonância com fissuras na filosofia que têm proposto esse olhar menos despretensioso e mais críticos sobre as partes baixas como propõe Sloterdijk, por exemplo.

Nesta esteira se articulam complexas discussões, muitas associadas aos  pós-estruturalistas com temáticas ligadas à identidades de gênero e a teoria queer, kuir, cu… Teorias geralmente implicadas e comprometidas em apontar conflitos, contradições e violações. Rupturas epistemológicas que discutem noções como analética de Javier Sáez/Sejo Carrascosa,  corpo máquina de Deleuze, o performativo de Butler e a ciborgue de Haraway, corpo flor de Castiel Vitorino… teoriazações de poder por Foucault e  desconstrução de Derrida. Jota Mombaça (teoria cu/ metodologias anais), Pedra Costa (Manifesto Cu do Sul), Bruna Kury (Pornopirataria), Tertuliana Lustosa (cuceta), Vulcânica Pokaropa (Cucetas Produções) , Kleper Reis (Cu é lindo), Bianca Kalutor (educação travesti) com suas teorias e obras cus desdobram pregas da  na árdua travessia anticolonial e antirracista das bichas artistas pesquisadoras.

São muitas debatedorxs mais ou menos próximos do tema como Javier Sáez, Sejo Carrascosa, Rafael Leopoldo, Hilan Bensunsan, Guy Hocquenghem, Deleuze, Guattari, Guacira Louro, Paulo Petronílio, Denilson Lopes, Thomaz Tadeu, Larissa Pelúcio,  Suely Rolnik, Leandro Colling, Megg Rayara Gomes de Oliveira e várias pesquisadoras que tem me ajudado a investigar imagens e imaginários relacionados ao cu, analidades/analéticas não hegemônicas no PPGCOM/UnB. Tal complexidade filosófica traz uma série de conflitos e incongruências que não podem ser debatidos livremente porque os meninotes da esquerda e da direita birraram e querem tirar do campo a bola da vez, que nem deles é.

Toda a profícua discussão é desprezada  porque os homens de esquerda tem que brigar com os da direita, e nós se não pudermos servi-los, estamos atrapalhando-os. Que dó deles que querem continuar nos dizendo o que fazer enquanto silenciamos.

Este tema do silenciamento,  desautorização discursiva, necessidade de autodefinição e fala nos espaços públicos/políticos tem sido abordado profundamente pela filósofa Djamila Ribeiro ao desenvolver seu conceito de lugar de fala. Ela frisa que todos podem falar e que este ato exige perceber e criticar suas posições de privilégios e desvantagens no mundo.

A pensadora ampara-se em nomes como Linda Alcoff, Audre Lorde, Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Patrícia Hill Collins, Grada Kilomba, Sourjone Truth dentre outras para apontar como determinadas identidades reificadas pelo colonialismo foram impedidas de falar e precisam urgentemente autorizar-se discursivamente como estratégia para reconfigurar as graves assimetrias de poder latentes na contemporaneidade. Violências gritantes como às “homenagens” a pseudo princesa Isabel, em pleno 13 de maio de 2019 ,usurpam e agridem o movimento negro, enaltecendo a branquitude, em vez da real luta contra o racismo. Esta imposição violenta do silêncio é a estratégia dos machos, racistas, sexistas…  e estrutura o apagamento de “identidades” dissidentes manipuladas pelo colonialismo/capitalismo para ocupar posição subalterna.

“Pensar lugar de fala seria romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado, um movimento no sentido de romper com a hierarquia. Muito bem classificada por Derrida como violenta” (RIBEIRO, 2017, p.90) É nesta perspectiva de quebrar o silêncio que Djamila começa e termina o livro referenciando-se em Lélia Gonzales ao afirmar que “o lixo vai falar e numa boa”.

Cu é lindo – Kleper Reis
JOTA MOMBAÇA - combinamos de não morrer
JOTA MOMBAÇA – A gente combinamos de não morrer – Chapas: Guto Muniz/ FIT-BH – 2018
Jota Mombaça -Corpo-colônia -2013- Local(is) de residência e criação do performer: Natal – RN – Chapa: Yanna Medeiros
Castiel Vitorino (corpo flor) – Como se preparar para guerra
Castiel Vitorino – A história tem me exigido crueldade
Castiel Vitorino – Sagrado Feminino de Merda – Vitória, ES,  2018

Vale ressaltar que muitas das sujeitx que estão produzindo este conhecimento CU combatido pela machulência são pessoas trans, negrsx, mulheres, bichas, sapatonas… uma pluralidade de dissidências e populações vulnerabilizadas que têm refletido estas questões. Não é ingênuo e ocasional que o ataque se volte à produção intelectual destas pessoas, na tentativa corriqueira de deslegitima-las e até mesmo desumanizá-las.

É esta velha política de eliminação de sujeitx que  tem feito muitas sucumbirem – em suicídios, homicídios, epistemicídios e as formas mais terríveis de apagamento. Mas como bem mostra a monstruosa pesquisa artística de Mombaça referenciada em Conceição Evaristo: Eles combinaram de nos matar e a gente COMBINAMOS DE NÃO MORRER!

Proclamar a vida e o direito de fala ecoam junto com os hinos, profecias de vida e prosperidade travesti de Ventura Profana e Jhonatta Vicente: EU NÃO VOU MORRER! Procurem ouvir!

Os esquerdomachos chegam ao despautério de afirmar que estas questões “indentárias” e até a mesmo a arte e a poesia podem esperar porque é preciso tratar pautas urgentes. Logo eles, que na UFPI, idolatram poetas tropicalistas. Logo a poesia que é uma urgência revolucionária de toda sociedade minimamente sensível! É como se disséssemos em 1968 ao Torquato Neto que parasse com esse negócio de Tropicália, pois há uma ditadura a ser derrubada. É como pedir ao Tom Zé: “Pare de brincar com os olhos do cu e pegue logo uma arma!” É como berrar com Wagner Ribeiro das Dzi Croquettes: “Acaba com essa besteira de só amor constrói, viado!”

Afinal estas rupturas comportamentais não adiantam nada para os excelentíssimos revolucionaríssimos, pois eles abertamente defendem a toxicidade de suas masculinidades, que eles julgam não ter nada haver  com a ordem vigente de violência e dominação. Se eles se prestassem a estudar as estruturas que entrecruzam-se para formar o tecido social, saberiam que gênero e sexualidade são os pilares da economia sexuada dos corpos que preza pelo disciplinamento e docilização dos sujeitx a serviço da ordem econômica dominante.

Esta é uma das chaves da contrassexualidade trazida por Preciado, cujo texto intitulava a palestra do CAF UESPI. O autor nos falará em fecundar, ao invés de reprodução sexuada, ele nos impele a pensar numa sexualidade contraprodutiva, sem obrigatoriedade aos usos servis da lógica de produção capitalista. Daí vem a necessidade de discutir o cu e as potencialidades de corpo que não reduzem a sexualidade à produtividade dos regimes de consumo e gestão de recursos imperantes.

Tal reflexão não pode ser feita dissociada das questões de raça e classe  como reiteradamente as feministas negras nos apontam, demandando que a análise seja interseccional. Isto é, deve-se atentar às intersecções da raça, da classe, do gênero, geração, capacidades e quaisquer outras categorias/vulnerabilidades que se apresentem relevantes nas situações de opressão e violência.

Para os machos, porém, toda esta falação de cu, é intelectualismo acadêmico e afasta a esquerda do povo. Eu não sei de que camadas populares estes machos estão se aproximando. As bichas periféricas com quem tenho contato querem cada vez mais falar da força de seus cus. Basta ouvir o Culto das Malditas, por exemplo. Em suas produções protestos elas evidenciam os rabos como forma de rebater toda a carga pesada de violações contra seus corpos. Seus discursos são feridas abertas e ao mesmo tempo suas armas. Plena de “palavrões”, a revolta delas não admite contenções para ser palatável a uma sociedade hipócrita que nunca ofereceu nenhuma mãozinha, ao invés disso só lhes deram mãozadas para destruir suas vidas.

Bianca Kalutor, Ventura Profana, Jonatta Vicente – A morte do plano piloto – Casa da América Latina – CAL – Brasília -2019
Conceitinho, Ventura Profana, Bianca Kalutor, Pietra Sousa, Iêda Figeiró na CAL, Brasília, 2019. Chapa: Ana Lira.
Bruna Kury, Lançamento de DVDs do projeto PORNOPIRATARIA. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Junho de 2017. Fotografia de Nu Abe
Pedra Costa – Solange, tô aberta- OCUPABARÃO – chapa: Ariel Volkova, 2018
Pedra Costa/ de_colon_isation

Mas estas são vidas precárias que não importam/pesam como lembra Butler. São vidas que podem ser perdidas nos agenciamentos da morte pelo poder que determinam a necropolítica tratada por Mbembe. O esquerdomacho não interessa pela voz dessas vidas. Na visão deles, elas podem esperar caladas, ou mesmo morrer, já que na sua curta concepção não são suficientemente revolucionárias. Eles são piores que os bolsominions, pois tem acesso ao debate e persistem em nos subjugar.

Incapazes de perceber que o que eles chamam de mancha na esquerda, são as manas que estão no front fazendo barulho, como foi nítido nas ocupações de 2016 retratadas no filme de Eliza Capai “Espero tua (re)volta”.  Eles não aceitam nada que não seja o protagonismo, mas é bom que eles se preparem, porque A REVOLUÇÃO SERÁ TRANSFEMINISTA! As bichas não precisam ser aceitas por esta esquerda carcomida, que nos quer para ajudá-los, desde que devidamente caladas.

E aqui relembro as sábias e revolucionárias palavras de Pagu em não compactuar com nenhum desses pólos podres:

“Tenho várias cicatrizes, mas estou viva. (..) Contra uma esquerda totalitária, que distribui palavras de ordem arruinando a democracia e contra uma direita reacionária, que não quer ver que a civilização atual esgotou as possibilidades de permanência dominante.” (Patrícia Galvão, Pagu, Verdade e Liberdade, 1950)

Ao invés destes machudinhos se darem o trabalho de escutar e tentar minimamente compreender estas vozes “agressivas”, insistem em rebater que nós precisamos nos aquietar para segui-los, pois eles “agem com a razão”, são essenciais, universais, legitimados e autorizados a falar.  Só eles sabem atirar. Afinal, isso é o que se precisa saber nesses tempos: ser agressivo e violento como o macho tóxico de sempre. É essa mesmice que eles anunciam como revolução.

Evidentemente que a violência é um componente de revolta, mas por que ela tem que ser guiada pelos mesmos machos tóxicos de sempre? Por que ela não pode ser redistribuída como propõe Jota Mombaça? Os machos da esquerda não concebem autocrítica e balbuciam falácias da lacração que eles inventaram por pura covardia e para não se responsabilizar pela desarticulação provocada por eles.

A ignorância em que estão submersos os atolam neste estado ridículo de pânico moral e eles não conseguem lidar com o desconhecido e a instabilidade, apelam como bebês chorões para alguma tábua de salvação que nem mesmo as carolas fervorosas estão dispostas a procurar na bíblia.”Trata-se de afiar a lâmina para habitar uma guerra que foi declarada a nossa revelia, uma guerra estruturante da paz deste mundo, e feita contra nós.”(MOMBAÇA, p.10). Se estes machos soubessem um pouquinho só sobre os estudos da dissidência, por exemplo, saberiam que as bichas estão mais  interessadas em barricadas que nestes contos do vigário disfarçados de solução revolucionária.

Os machos preferem fazer o joguinho de balbúrdia em vez de pesquisar. Fazem bacanal com nossos corpos e fraquejam em suas proposições gastando energia em nos sufocar. Querem que nós paremos de bichar e interditam lacres em nossos cus, pois o Brasil é urgente e nós… nós somos lixo, né?! Pois nossos cus são lixeiras escancaradas que vão falar numa boa. Não vamos deitar à  política lacradora deste machos!

Eles que se preparem, pois as bichas não vêm sobrevivendo a gerações de extermínio para ficar submissas e censuradas ao moralismo burguês piegas seja de esquerda ou de direita. Ou essa sociedade assassina aprende a nos respeitar e se digna pelo menos a nos ouvir ou sentirão o peso rebolativo das nossas ancestrais que têm incendiado nossos cus e nos ensinado, como Pedra Costa e tantas outras, que a movimentação das massas só faz realmente Revolução com o movimento dos quadris.

Salve a sexualidade selvagem (Lygia Rissope)… libertação de todx corpx – balancem muito a raba de vocês da forma que quiesrem e puderem. Protejam-se e Ocupem todos os espaços possíveis: do samba ao jazz… do funk ao gospel… Se joguem, porque EU TÔ CANSADA DE OUVIR a machulência e faço coro com as Malditas, Podríssimas, as Rainhas do Babado, com Deize Tigrona: “Lambe cuzinho lambe, lambe que eu to cheia de tesão. Bacanal é o caralho quero ver disposição!” SOMOS MUITXS! NÃO VÃO NOS APAGAR! NÓS VAMOS GOZAR!

1001 dias de calor na travessia das margens, Teatro de Arena – Teresina -PI, 2017, Viçante

A tarde da fauna, 2017, Teresina -PI, Viçante (Chapa: João
CU MARA JAH, 2019 – THE-PI, still Saruaya feat beth baureth, viçante

Citações:

BATAILLE, Georges. O ânus solar  Tradução: Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena Editora , 1985.

GALVÃO, Patrícia. Verdade e Liberdade, São Paulo, 1950. IN: CAMPOS, Augusto de. (Org.) Pagu – Vida-Obra. São Paulo: Brasiliense, 2015. 2ª edição;CAMPOS, Augusto.

MOMBAÇA, Jota. Rumo à Uma Redistribuição Desobediente de Gênero e Anticolonial Da Violência. Publicação comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo em ocasião da 32ª Bienal de São Paulo – Incerteza Viva, 2016. Disponível em <https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi

PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. Tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro.
São Paulo: N-1 Edições, 2014.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Holorizonte: Letramento: Justificando,
2017.

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