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O grito é pelo que resta de Esperança: Protesto de mulheres em atividade com Maria da Penha foi considerado agressivo; agressiva é a violência institucional

Antes de mais nada é preciso entender que feminismo é sobre justiça e nenhuma mulher estará livre enquanto uma tiver sua casa ruindo sobre seus ombros. Nenhuma de nós será livres enquanto tivermos que gritar por socorro com o filho nos braços enquanto homens derrubam a nossa casa. A visita de Maria da Penha à Teresina para receber o título de cidadã piauiense e sua simbólica ida à Praça dos Orixás, na região das Lagoas do Norte, é significativa para entendermos que o feminismo como modismo não cola bem, não pega bem e as mulheres pretas e pobres serão sempre a ponta amassada no rolo compressor. As atividades aconteceram na tarde da última quarta-feira (28). É preciso dizer que Maria da Penha tem importância sem igual para a luta das mulheres, mas os comportamentos que aqui registramos revela um atraso.

Performance-Ato realizado durante o corte do bolo no aniversário de Teresina.
Performance-Ato Banho de Sangue realizado durante o corte do bolo no aniversário de Teresina (2019). Na ocasião, as mulheres protestavam contra na demolição das casas na região do Programa Lagoas do Norte.

 

Há alguns dias, às vésperas do aniversário de Teresina, cerca de 30 casas foram demolidas na região das Lagoas do Norte, o horror talvez não seja uma tragédia tão grande a ponto de ser noticiada e declarada como a face mais cruel do machismo estrutural e institucionalizado causado pela Prefeitura Municipal de Teresina. Ocorre que, depois disso, a prefeitura organiza um evento para receber Maria da Penha e jogar o acontecido para debaixo do tapete. Na Praça, onde quase inexistia moradores locais, cerca de oito pessoas protestavam em carro de som, ao que foram convidadas pelas “feministas brancas” a se calarem, aliás, em dado momento, quando os pedidos não surtiram efeitos as brancas foram lá e tomaram mesmo o microfone das mãos das mulheres negras que protestavam contra o machismo institucional. E houve também mulher negra dizendo que protestar naquele momento era fazer caso desnecessário.

O evento começou com uma hora de atraso e tal não foi a surpresa no coração das manifestantes ao descobrir que parte do atrasou se deveu ao fato de que Maria da Penha “temia” as mulheres que protestavam. Acontece que disseram a ela que haviam mulheres violentas e agressivas na praça. “As organizadoras do evento disseram que Maria da Penha estava com medo da gente. A gente só queria mostrar a nossa realidade e a violência institucional da prefeitura contra as mulheres do lagoas do norte para uma mulher que é símbolo da luta contra a violência contra a mulher. Reconhecemos a importância de Maria da Penha para a luta das mulheres”, diz Lúcia, do coletivo “Lagoas do Norte pra quem?”.

O prefeito Firmino Filho e seu grupo político armaram todo um circo: trouxe a Teresina uma mulher de importância inegável para o combate à violência de gênero, cercando-lhe de homenagens forjadas em um discurso mentiroso, escancarando o absurdo que é a instrumentalização do feminismo. A culpa não é da preta, nem da branca. A culpa é do capital que lucra com o enfraquecimento de nossa luta, e se aproveita quando quer de nossa bandeira para gerar likes.

Dizem que são violentas as mulheres que protestam porque não sabem e não sentem a violência do patriarcado opressor sobre as costas das mulheres periféricas. Não confundam nunca, minhas amigas, a resposta e o grito dos/das oprimidos/oprimidas com a violência do opressor. Lélia Gonzalez, antropóloga e militante negra disse uma vez “dá para entender porque não só nossos irmãos, mas determinados setores do movimento de mulheres tenham ficado chocados com a nossa autonomia e agressividade de mulheres negras. Aliás, é importante ressaltar que agressividade significa “chamar a si”, ou seja, “chamar às falas” (GONZALEZ, 1996, p. 36).

Maria Lúcia, tão desolada com relação ao acontecido na praça disse “eu queria era viver incorporada para não ter que testemunhar tanto sofrimento”. Mas, a companheira não fecha os olhos e chama às falas, não se vende, não se rende, chama para si a luta contra as injustiças, pois sabe que no mundo cão quem cala diante da fome dos filhos são as mulheres, quem chora e luta por uma casa são as mulheres, que luta contra o despejo são as mulheres…. negras. Negras são as mulheres na ponta da lança da opressão.

É preciso entender que a luta do feminismo é uma luta política contra as injustiças, a libertação das mulheres passa também pela luta à cidade, ao pão, à moradia, ao trabalho decente. A luta do feminismo também tem que defender às mulheres atingidas pelo Programa Lagoas do Norte, que despeja vidas em troca do concreto, de uma praça sem vida, sem reconhecimento e sem intimidade com a população. Tão pobre de gente, ao final da atividade com Maria da Penha, a cantora de forró no palco implorou para que as pessoas ficassem na praça. Mas não ficaram, porque o programa de desenvolvimento que exclui as gentes, os bichos, as águas e a flora não é digno de aplausos nem de cantoria.

O feminismo que passa pano para o prefeito de uma cidade que esmaga, não nos interessa, não nos serve, não nos preenche. Agora, perguntamos à colega feminista negra que acusou a irmã negra de está fazendo espetáculo: quando o feminismo se perdeu na branquitude pacata e impertubável? Quando a potência feminina* de Angela Davis, Esperança Garcia, Luísa Mahin perdeu a sua radicalidade para o “feminismo” branco das assistentes sociais da prefeitura?

bell hooks, feminista negra norte americana nos alerta “a pobreza se tornou uma questão feminina central” e que as tentativas patriarcais capitalistas de supremacia branca priva as mulheres pobres de acesso à assistência social digna. Não nos referimos à assistência social que convence às mulheres a abandonar suas casas por qualquer vintém ou cesta básica. Falamos de acesso à vida e à vida com dignidade.

Por fim, evoco bell hooks quando ela diz que a sororidade ainda é poderosa.  No entanto, esta sororidade não pode ser clamada apenas aos corpos brancos. A solidariedade entre as mulheres tem que ser um ato político “a sororidade feminista está fundamentada no comprometimento compartilhado de lutar contra a injustiça patriarcal, não importa a forma que a injustiça toma” (bell hooks, em O feminismo é para todo mundo).

Finalizo as minhas palavras brancas e intrometidas para deixar que ecoem as vozes das mulheres indignadas que arranham, quebram e rompem o sistema que as oprimem. Assistam o vídeo a seguir e ouçam um pouco de muita verdade.

 

Assinam esta Matéria Colaborativa e transcendental:

Sarah F. Santos (texto)

Thais Guimarães (edição solidária e criativa)

Maria Lúcia, Dilma e Dona Maria (ensinando e reportando pelo audiovisual)

Luan Rusvell (Por trás das Câmeras e na escuta sensível)

*Inicialmente usou-se a palavra *Feminismo, no entanto, em respeito as concepções do mulherismo panafricanista, que nos chamou atenção à nossa querida pensadora Carmen Kemoly, ou outras concepções que não necessariamente reivindicam o femeninismo, preferimos trocar por *Potência Femenina, entendendo que em todos os momentos históricos em que as mulheres resistem, o fazem pela emancipação coletiva, para que um dia a vida seja verdadeiramente vida.

 

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