Tempestade, náufrago, fé, solidariedade e coletividade. O que um grave incidente em mar aberto pode nos dizer sobre os modos de vida das comunidades pesqueiras do litoral piauiense? Nesse texto, carregado de afeto e emoção, Vladimir Félix (do Conselho Pastoral dos Pescadores) e Maylla Olivera (da Associação Nacional das Pescadores), nos contam.
Manhã de quarta-feira, 27 de março de 2024. Como de costume, logo cedo, as canoas, com pescadores da comunidade de Pedra do Sal, foram ao alto mar, em busca do “ganha pão”. Era uma manhã incomum, ventava muito. O vento forte gerou uma inquietação em quem estava aqui na terra: “mas que ventos são esses, nessa época do ano?! Deve ser alguma tempestade!”.
Alguns pescadores voltaram logo que avistaram o mal tempo, pois o mar estava agitado. Quando se sai diariamente para pescar, os pensamentos estão relacionados com a questão de como vai ser a pescaria. Em uma semana de eclipse lunar e variação entre chuva e sol, sempre se respeita a vontade da Mãe Maré e sua força. De toda forma, nunca se imagina quando a maré “não está pra peixe”.
Assim, outros passaram o dia enfrentando a tempestade, mas voltaram de tardezinha, como de costume. Quando os ventos fortes cessaram, os agradecimentos foram efusivos. Mas no mar, outra luta pela vida tinha iniciado. Aconteceu de duas canoas (Canaã e Savina), uma com 2 e outra com 4 tripulantes, respectivamente, não regressarem, como se esperava ao entardecer. À medida que anoitecia, a preocupação aumentava.
Na pesqueira, local no qual guardam-se apetrechos da pesca artesanal, já se iniciaram as mobilizações e a concentração de pescadores, pescadoras e familiares. Os olhares aflitos se direcionavam ansiosos em uma única direção: o horizonte que passava pelo Canto das Pedras e além mar… Angustiados a espera de notícias, de um risco de vela, de um sopro de esperança.
Rapidamente, iniciou-se uma mobilização na comunidade. Pela experiência de tantos outros pescadores, era necessário começar a pensar estratégias de busca e resgate. Nossos companheiros não estavam bem, a situação não era fácil. O Mar calmo e agora a ventania era no coração de cada morador que já compreendia que se tratava de uma situação crítica. Acionaram corpo de bombeiros, marinha, agrupamento aéreo… Os bombeiros até foram à Pedra do Sal, mas regressaram sem contribuir com a busca, sem orientação e sem uma palavra de aconchego. Revolta!
Enquanto isso, a comunidade se ocupou, como se estivessem todos em um mesmo barco, começando a remar firme e juntos, como acontece em todas as outras situações e problemas, em que o coletivo prevalece. Quem podia estava na pesqueira, quem não podia estava mobilizando entidades, pessoas, barcos que pudessem ajudar dando todo tipo de suporte. Cada vez que o relógio girava, as “remadas afetivas dos homens e mulheres” se direcionavam em busca dos companheiros que estavam perdidos no mar sem fim.
Outros pescadores se organizaram em barcos e saíram em busca de qualquer indício e suspiro de vida. Foram em busca das canoas perdidas, de noite ainda, e madrugada a dentro! Todas, todes e todos ficamos apreensivos, rezando e nos apegando a Bom Jesus dos Navegantes, à Nossa Senhora dos Navegantes, à Iemanjá e aos nossos guias. Familiares e amigos passaram a noite em claro. O acolhimento vinha em cada atitude, no café quente, na preocupação em repassar informações, nas energias boas que emanavam da solidariedade comunitária. Foi uma noite difícil e longa.
No dia seguinte (quinta-feira, 28 de março), às 6h da manhã, os barcos retornaram com a tripulação a salvo. Aqueles olhos atentos, finalmente avistaram no horizonte as cores de Savina com os pescadores dentro. Canaã naufragou. Mas seus tripulantes já estavam salvos no Savina. Alivio! Em vídeo que circulou nas redes sociais, um dos tripulantes afirmou: “Mas a preocupação maior, lá, era as pessoas que tava, aqui, no seco, nossos familiares. […] Não tinha como nós avisar, nem tinha como nós chegar, assim no seco, ontem ainda”, disse um dos sobreviventes.
Nessas horas, a solidariedade é um barco comum que navega firme no território das águas. Não foram os bombeiros, foram os companheiros de pesca que não cederam à inquietação e partiram em busca de seus parceiros de lida. Haviam resgatado os companheiros. “Deus é Pai” diz uma das canoas, e “Maré é mãe!” está escrito em outra.
Nos emocionamos e nossos olhos de mar desaguaram de alegria. Ainda, uma alegria dolorida entraiada no corpo com linhas de pesca e da vida.
Texto de Vladimir Félix e Maylla Olivera. Parnaíba, 28 de março de 2024.
Comments (1)
Pedro Victor Modesto Batistasays:
29 de março de 2024 at 10:40 AMQue linda e forte lição. Não se pode perder a fé e solidariedade. A comunidade pesqueira sempre nos ensinando muito.