Este conteúdo faz parte da série de reportagens sobre Direitos Humanos realizada pelos estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) matriculados na disciplina Direitos Humanos, Comunicação e Políticas Públicas, unidade ministrada pelo professor Dr. Antonino Condoreli. As reportagens têm como objetivo refletir as questões de direitos humanos criando ambiente crítico no âmbito da mídia, além de contribuir para a disseminação dos conteúdos acadêmicos na sociedade.
Por Ana Clara Bilro Medeiros Barros Neri e Lorena Maria Pinheiro de Souza
A história está cheia de mulheres como Simone de Beauvoir, Chimamanda Adichie, Marie Curie, Coco Chanel, Nísia Floresta, Joana D’arc e Margaret Thatcher. Mulheres, grandes mulheres que invadiram um universo governado pelos homens. Mulheres que fincaram suas raízes no solo e se negaram a serem derrubadas pela ignorância da vaidade masculina. Apesar de cada uma lutar por diferentes sonhos e propósitos, estavam e estão todas no mesmo barco: a submissão da condição feminina. Hoje guardamos essas mulheres em nossas memórias com admiração, mas esquecemos os outros milhões de mulheres cujos rostos e nomes nunca entraram para a história, a não ser que entrem como um mero número ou estatística que passa despercebida por entre tantas discussões.
Sobreviver em um mundo de homens não é fácil. É preciso ter postura, andar num salto alto, passar batom para ficar bonita e sorrir mesmo que esteja berrando por dentro. É preciso aceitar, se submeter, obedecer e até mesmo morder o lábio até sangrar para não gritar. É preciso se ajoelhar perante os “grandes mestres” que “sabem o que é o melhor para nós” porque somos “incompetentes” demais. E como somos “incompetentes” demais até para cuidar da casa, que é nossa “única obrigação”, temos de ser disciplinadas. Um tapa, um soco, um chute, marcas roxas no pescoço, um olho inchado ou um corte, que às vezes é apenas na alma. Essa é a disciplina que milhões aceitam caladas todos os dias.
Em fevereiro de 2019, um levantamento do Datafolha apontou que 37,1% das brasileiras já sofreram assédio e 1,6 milhões de mulheres foram vítimas de espancamento e estrangulamento no Brasil em um período de 12 meses. 42% dos casos de violência foram dentro de casa e 52% dessas mulheres aceitaram a agressão caladas, sem sequer buscar ajuda, quanto mais fazer denúncia do parceiro. O que é ainda mais difícil, já que apenas 8% dos municípios brasileiros têm delegacias da mulher. Se o medo já impede a ação, a inércia do Estado pode ser ainda mais avassaladora.
A expressão “direitos humanos” pode ser tristemente engraçada do ponto de vista feminino. A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”; que todos temos “capacidade para gozar os direitos e as liberdades” independente de gênero; que todo o ser humano tem direito à liberdade, à vida e à segurança pessoal. Se é assim, porque tantas mulheres têm esses direitos básicos violados? Somos algum animal? Um tigre enjaulado em um circo, que as pessoas pagam para ver ser chicoteado? É engraçado? Acham que não dói? Se acomodaram tanto a nos ver submissas, que se esqueceram que os tigres são naturalmente selvagens e fazem um grande estrago quando mordem.
“Ainda bem que existe” (o movimento feminista)
Em 1960 a onda dos movimentos feministas começou a ganhar voz e espaço, se tornando um marco na vida de toda a mulher até hoje. Os sutiãs queimados são o símbolo de que não queremos mais aceitar ser oprimidas por dois pedaços de arame, que mais parecem uma metáfora para a sociedade patriarcal em que o mundo se desenvolveu. Condenados por estupro como Robinho – o jogador de futebol – têm a coragem de dizer que “infelizmente, existe esse movimento feminista” (sic). Mas milhões de mulheres dizem com toda a força que felizmente existe. Graças ao rugido feminino passar a ser ouvido em todos os cantos, o mundo patriarcal tem começado a desmoronar e agressores como ele passam a ser julgados. Aos poucos e lentamente, o tigre começa a se alimentar. A tolerância com machistas, agressores e estupradores passou a minguar e a legislação começou a acompanhar a nova realidade mesmo que a passos de tartaruga e um pouco de preguiça.
A Lei Maria da Penha, que completou 14 anos agora em 2020, virou a tábua de salvação para as brasileiras que se veem em situação de violência dentro de casa. Inclusive, seu art. 6º nos lembra que violência contra a mulher “constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”. A Lei 13.104 de 2015, conhecida como “lei do feminicídio”, veio como um escudo e a espada para proteger e punir em nome das mulheres que são assassinadas e menosprezadas em razão de sua condição feminina. A Lei 13.718 – sobre importunação sexual – se tornou outra ferramenta de combate à violência contra as mulheres. Ainda, assim o Estado continua passivo nesse combate, promover leis nem sempre é o suficiente. É preciso incentivar a mulher a não ter medo de lutar pelos seus direitos e principalmente, educar os homens. Ser mulher, nunca foi tão desafiador.
Inclusive, a pandemia provocada pelo coronavírus foi mais outro motivo de retrocesso. Passando mais tempo em casa, e consequentemente, mais tempo com seus agressores, a quarentena permitiu que as mulheres se tornassem ainda mais vulneráveis à violência doméstica. O número de casos aumentou e as vítimas encontraram ainda mais dificuldades em buscar ajuda. Como consequência, houve diminuição na quantidade de denúncias nas delegacias de polícia. Segundo a pesquisa feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), essa redução foi de 25,5% em comparação com o mesmo período de 2019. Por outro lado, houve crescimento de 27% nas denúncias telefônicas no Ligue 180 também em comparação com o ano anterior.
Saindo do Brasil para percorrer o mundo, um exemplo da legislação internacional dos direitos humanos, que visa promover e proteger os direitos das mulheres, é a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979). De acordo com o art. 3º do tratado, as mulheres devem ter garantidos o seu pleno desenvolvimento e progresso nas esferas política, social, econômica e cultural, em igualdade de condições com os homens. Analisando todo o cenário legislativo, acabamos podendo afirmar que sim, há leis de proteção à mulher. Mas elas funcionam? É fundamental que essa e outras legislações, como as que já foram mencionadas, assegurem de modo efetivo os direitos das mulheres e não se tornem apenas mecanismos sem utilidade prática no combate às violações desses direitos.
Por essa ineficácia que acaba existindo, passa-se a observar o âmago da sociedade, o real motivo. Mulheres não são alvo de violência porque merecem. São violentadas – em todos os sentidos latos da palavra – porque somos todos criados para aceitar isso.
Em 2017, o Brasil se deparou com o caso Diego Novais, que ejaculou em uma mulher no ônibus; de acordo com o portal G1, em Natal-RN, 5 homens foram presos em cerca de 24 horas neste mês de outubro acusados de violência doméstica; também pelo G1, foi veiculado que em agosto, mais de 10 casos de violência contra a mulher foram registrados em uma semana na Paraíba e 4 desses casos estão relacionados a feminicídio. Isso é verdadeiramente normal? Ninguém se choca? Hannah Arendt já falava da banalização da violência, mas chegamos a tal ponto de precisar de leis específicas para proteger a mulher porque os homens não são educados para nos respeitar em igualdade?
Ter medo de sair na rua não é normal. Ter medo de ficar em casa com o parceiro não é normal. Ter medo de ser estuprada não é normal. Ter medo de ser assediada não é normal. Ter medo não é normal. Por isso, milhões de tigresas ao redor do mundo estão rugindo para o anormal.
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