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O Programa Lagoas do Norte e sua herança fascista

 

A nova etapa do Programa Lagoas do Norte (PLN) chegou a um dos bairros mais tradicionais da Zona Norte de Teresina, o Mafrense, dando anúncio ás 147 famílias que seriam removidas de suas casas. Essa cena, que já se tornou típica desde a implantação do Programa, é também um remake dos tempos do Governo Militar, hoje cumprindo a sina dos rejeitados do passado, em um projeto viciado nas táticas da ditadura urbana.

O que sabemos sobre o  Mafrense? O bairro que atualmente é um dos campos de concentração dos projetos do PLN?  Em uma rápida busca na internet, é possível encontrar um breve histórico, dentro do documento ‘Teresina, perfil dos Bairros’, elaborado pela Prefeitura Municipal. O texto de um parágrafo na seção ‘história’, diz o seguinte:

“Entre 1967 e 1969, o prefeito Joffre do Rego Castelo Branco mandou abrir grandes avenidas na cidade e assim transferiu centenas de famílias que tiveram suas casas desapropriadas para esta região (Mafrense), que, no início, foi pejorativamente apelidada de Favelão.(…)

O ano era 1969 e  o país vivia sob a prensa do Governo Militar. A Teresina de então, gerida pelo Coronel Castelo Branco, podia se resumir a um núcleo inchado ao redor do que hoje é o Centro de Teresina. A avenida em questão tratava-se da avenida circular, hoje Miguel Rosa, mas que na época era a própria margem da cidade.

Coube então que a margem virou centro,  no entanto a periferia não precisaria deixar de existir, apenas seria transferida de lugar.  Como tudo na capital planejada, uma nova margem foi tecnicamente inventada – “ao norte, muito para lá da linha do trem” – e popularmente receberia um nome mais fiel, o Favelão. Nenhum pouco pejorativo, o apelido refletia uma realidade e fez jus a imensa favela que se criou na novíssima-recém-centenária capital do Piauí.

À então gestão municipal coube o papel de realizar a cerimônia de inauguração da nova avenida e abafar a fama da cidade-favela. Como a história diz, achou-se por melhor, talvez mais civilizado, revogar o nome Favelão e rebatizar o terreno de Mafrense.

Sem a mínima pretensão de unicamente responsabilizar o poder público pelos males do ‘progresso a qualquer custo’, é importante que se diga que escolhas foram feitas na construção desta cidade. Na verdade, temos motivos para acreditar que optou-se por uma cidade sem opções, onde as regras do jogo são unilaterais, onde é válida a lei dos que detêm o poder, onde as individualidades não são respeitadas e onde se tenciona pelo apagamento da memória de um povo – isso é fascismo.

Á vista grossa é possível que se enxergue as desapropriações urbanas como um fluxo normal do crescimento, no entanto, quando se opta pela cidade ditadora, as remoções fazem parte de um projeto maior de extermínio.

O urbanismo é um instrumento de poder capaz de conduzir a vida das pessoas. Na cidade contemporâneo o genocídio também pode se chamar higienização e a sentença agora é a morte um povo pelo isolamento territorial. No caso do Mafrense, a sina do desterritorializado foi passado de geração a geração e talvez, o que muitos moradores não saibam, é que a terra prometida ainda não era essa.

Bairro Mafrense. Área de intervenção do Programa Lagoas do Norte, em destaque casas com ameaça de remoção. Fonte: Prefeitura de Teresina. Plano de Reassentamento Involuntário – Trecho II. 2018.

 

Se uma certa ingenuidade nos faz pensar que o novo nome do bairro foi uma homenagem às terras Mafrenses da ex-capital do Piauí, a realidade é que o golpe foi maior:

(…)A Prefeitura, contudo, deu-lhe o nome de Mafrense em homenagem ao sertanista Domingos Afonso Mafrense, português dono de fazendas na Bahia. Mafrense instalou muitas fazendas de gado no sertão do Piauí, com o apoio de Portugal, que não reconhecia os índios como donos das terras e estimulava os fazendeiros no combate às tribos e na ocupação do território.”

Pois bem, sem rodeios, a real é que, já naquela época, a cidade de Teresina se expandia sob um manto higienista, refundando o Favelão como Mafrense, em uma cínica  homenagem aos que conduziram o genocídio. E se o cenário erguido pretendia recontar a história, ao centro do bairro projetou-se uma praça em honra ao algozes: Praça Princesa isabel. Isso é fascista.

Como uma herança maldita, mais uma vez a cidade planejada bate à porta dos despejados e os mesmos personagens que foram removidos do contorno urbano de 1969 hoje calharam de morar dentro da cidade, de novo. Pois bem, 50 anos após a refundação do Favelão, o Mafrense agora virará parque e, como um raio que cai duas vezes no mesmo lugar, neste novo trecho da cidade revitalizada, as casas darão lugar a uma avenida, de novo.

A cena é mesma, mas o cenário é outro: na Teresina do século XXI, não se exibe tanto as velhas táticas de remoção forçada do período ditatorial, hoje isso recebe um nome oficial: Plano de Reassentamento Involuntário. As pessoas talvez sejam outras, mas a cidade é a mesma e as filhas das desapropriadas da Miguel Rosa agora fazem parte de um novo cadastro social da Prefeitura. As opções, no entanto, hoje são outras: “a senhora prefere uma casa ou um apartamento?”

Para além destas, hoje o povo escolheu ficar porque já são vividos pra saber que um dia, na cidade, a beira será centro, e que outros Favelões já se erguem, cada vez mais pra lá, ao norte e ao sul. Só que dessa vez o Centro terá que encarar a Periferia, e o erro da cidade do passado, ‘torturar e não matar’, agora será cobrado pelo povo que resistiu. Que povo? Esse povo que sempre habitou as margens – da cidade, dos rios e das lagoas.

Luan Rusvell

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