Devemos falar, nós do outro lado da trincheira. Vivemos no Brasil uma crise sanitária há um bom tempo. Uma guerra agravada ainda mais desde o congelamento dos investimentos em saúde (Emenda 95), não menos apelidada de PEC da Morte, que acelerou o desmonte do SUS. Vimos, desde então, aumentar as mortes por dengue e os casos de sífilis dobrando como nunca vistos antes, e por falta de medicações básicas. Mortes ainda não calculadas, de uma guerra que parece que não haverá um fim tão próximo, e que nos seus desdobramento vem a ostentar o vergonhoso título de pior crise sanitária brasileira, não sendo essa a pior, pois não se pode esquecer nessas terras aquela que levou a óbito milhões dos povos originários.
Quem irá construir as narrativas dos acontecimentos de hoje? Seguimos calados diante de tamanhas barbaridades ao mesmo tempo que engolimos números e ainda devemos seguir para o trabalho. Os número dos mortos por Covid triplicaram, morre nosso vizinho, o amigo de um amigo, nossos parentes. A cada notícia parece que resta apenas nós. Diante de cada aviso, notícia, mensagem em grupos e postagem morremos também. Querem nos empurrar goela abaixo números e mais números. Frios, como quem conta pedras. Ao passo que a imunização tardia no Brasil acontece de forma lenta, vidas são perdidas por falta de uma vaga em UTI. A população pobre é a mais atingida.
Sabemos que a tortura nunca acabou. O Brasil segue na sua esquizofrenia de país democrático e de oportunidades para todos. Enquanto pouco falamos das milhares de pessoas torturadas na ditadura pelos militares quando estavam (ou estão?) no poder, e a todo momento falamos que estamos vivendo um novo 2020, mas não será um eterno 64? Os corpos daquela época foram torturados até a morte e enterrados em valas clandestinas pelo Estado em um ato escuso. Hoje, vemos transmitido pela TV ao vivo no horário nobre o mesmo Estado abrir valas para enterrar corpos que perderam seus direitos e sofreram por falta de oxigênio. 50 anos e ainda não digerimos os casos de tortura, as mortes, e nem abrimos e descobrimos as tantas valas ainda perdidas pelo Brasil. Se não conseguimos identificar 1049 ossadas do cemitério do Perus que ainda seguem como números sem nome, sem enterro, perdendo sua identidade, residência e história. Seguirão o mesmo caminho os 350 mil nomes que viraram números e seguem mais uma vez apagados e negados pelo Estado nas inúmeras falas do presidente?
Devemos nesta chaga aberta termos o direito de gritar. Não podemos criar a falsa ideia que a todo instante martelam na nossa cabeça de “novo normal”, que normalidade é essa de todos os dias termos que enterrar os nossos? A normalidade segue para as grandes empresas que com a pandemia dobram seus faturamentos com a valorização das suas ações nas bolsas.
Os últimos meses, um novo discurso vem se instalando, o presidente eleito como o novo herói, agora está nu. O Capital, esse ente presente na mídia e no nosso cotidiano, despertou para um risco Brasil, que não é o ex-presidente petista, mas a fábrica de mutações do coronavírus no seu tão glorioso maior celeiro do mundo desde 1500. O seu país agroexportador que nunca chamou atenção pela falta de saneamento básico (prevista universalização para 2050), pelos inúmeros casos de violação dos direitos humanos, por grande parte da sua população viver abaixo da linha da pobreza, agora pode ser um grande exportador de novas cepas do covid-19, cada vez mais transmissíveis e que atinge de jovens até pessoas que já contraíram o vírus. A mão de obra do capital está em risco mais uma vez, não só no Brasil, mas em todo o mundo, criando a possibilidade de uma nova onda agora das supercepas produzidas no Brasil, por isso nota-se o alerta e o olhar voltado apenas agora. Há algo de podre no reino das terras do Brasil.
Seguimos pela primeira vez, nos últimos 17 anos, com mais da metade da população brasileira sem garantia de alimentação na sua mesa. Quero parafrasear uma postagem da chefe de cozinha Paola Carosella, não acreditem na vida perfeita dos influencer, eu digo não acreditem no “novo normal” perfeito propagado pela mídia. É necessário parar.
Devemos olhar as possibilidades que estão dadas, acreditar na real possibilidade de nos próximos anos termos desdobramentos dessa situação ainda mais complicados, como já estava para a grande maioria de nós. Temos que ser reais e não buscar um filtro em algum aplicativo para tentar disfarçar nossas olheiras de preocupação. Se possível chore, não devemos guardar no peito a nossa dor. Não estamos bem, nem eu, nem você, nem nós. Saber que estamos juntos cria a possibilidade de entender que nunca estivemos sozinhos, coletividade é o principal caminho para passar tudo isso e buscar soluções. A todo instante temos pessoas e mais pessoas abrindo seus consultórios, presencial ou online, e fazendo atendimento gratuito, pois não queremos ver nosso coletivo adoecer mentalmente. O lugar para encontrar forças para lutar e pensar em um futuro com nossos direitos básicos como saúde e alimentação garantidos é o apoio no outro, que no fim é parte de nós. O coletivo nos libertará.
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