Press ESC to close

Os dois lados do G20 em Teresina: o povo também tem fome de justiça

Do lado de dentro Centro de Convenções de Teresina, cerca de 50 delegações das maiores potências econômicas do mundo iniciaram a terceira reunião da Força-Tarefa para construção da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza do G20; do lado fora, sob os olhares a gatilhos da polícia, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, sindicais e estudantis se reuniram para dizer que não há combate efetivo a fome e à pobreza sem justiça socioambiental e sem serviços públicos de qualidade.

A abertura oficial do evento foi feita pelo Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome do Brasil, Wellington Dias (PT), que destacou a tragédia política,  ambiental e humanitária que atinge milhares de moradores do Rio Grande do Sul e relatou o exemplo do Piauí no combate à fome. “Há apenas 20 anos, o Piauí era o estado mais pobre do Brasil. Hoje, graças a um progresso acelerado e inclusivo, conseguiu elevar significativamente a renda dos mais pobres e teve crescimento mais acelerado que a média brasileira. Essa transformação é o testemunho do que pode ser alcançado com políticas públicas eficazes e um compromisso com a justiça social”, afirmou.

Enquanto, do lado de dentro o discurso oficial construía a imagem de um Piauí modelo de programas sociais e experiências de combate à fome, do lado de fora muitas denúncias foram expostas em faixas, cartazes e panfletos. No centro dessas denúncias, estava a proposta de flexibilização da Política Ambiental do Piauí, proposta pelo governador Rafael Fontenelle em novembro de 2023 e que ainda está em tramitação na Assembleia Legislativa (ALEPI). O Projeto de alteração da Política Ambiental de Fonteles (PT) prevê, dentre outros pontos:

  • Auto-licenciamento ambiental: as empresas poderão fazer suas licenças alegando boa fé;
  • Super-poderes para o secretário de meio ambiente com emissão de “licenciamento cautelar”;
  • Anulação de multas na ocorrência da infração ambiental no curso do pedido de licenciamento.
  • Concede até 95% de desconto para multas de infração ambiental.

Uma proposta que, em diversos aspectos, é muito semelhante à reformulação do código ambiental feita por Eduardo Leite, em 2019, no Rio Grande do Sul. “Estamos aqui dizendo que a política ambiental precisa ser levada a sério e que o grupo dos ditos paises mais potentes do mundo têm maior responsabilidade. Porém, o que a gente tem visto é que nesses países não há mais reservas ambientais e agora, eles se voltam para lugares onde haja esse recursos, como o Piauí, para fazer o processo de destruição que o capital requer para continuar se reproduzindo. Nós estamos aqui denunciando isso. Eles podem até fazer, mas não farão sem a nossa denúncia, sem o nosso protesto”, afirma a professora e defensora dos direitos humanos, Lucineide Barros. 

“Retrocessos na política ambiental do Piauí”, denuncia a Dra. Leida Diniz, advogada e ex. promotora de justiça

Em novembro de 2023, o governador Rafael Fontelles (PT) encaminhou um Projeto de Lei (Mensagem Nº 164) para Assembleia Legislativa do Piauí, que dispõe sobre a Política Estadual de Meio Ambiente e revoga a Lei de Nº 4.854, de junho de 1996. O governo vem anunciando as alterações na lei como modernização e desburocratização da política ambiental. Um discurso amplamente rejeitado pelos movimentos socioambientalistas e por juristas do estado. 

A exemplo da ex. promotora de justiça e advogada integrante da Ordem dos Advogados do Brasil (Piauí) e da Comissão de Justiça e Paz da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dra. Leida Diniz, que é categórica ao denunciar os retrocessos jurídicos que esse projeto de lei vai gerar e os riscos impostos à população piauiense.   

“Essa é uma lei ambiental que vai mitigar e reduzir as exigências do licenciamento ambiental. Isso é muito grave, é preocupante. Nós já temos um meio ambiente muito sufocado e degradado pela ganância dos grande proprietários e pouca coisa ou quase nada está sendo feito na esfera pública. Então, é preciso não só ocupar o fóruns e, diante dos holofotes da imprensa, dizer que é contra o desmatamento, desmatamento zero, quando por outro lado, as instâncias governamentais se sentam com os gananciosos do agronegócio, que estão desarticulando e flexibilizando a legislação ambiental brasileira”, afirma. 

De acordo com a Dra. Leida Diniz, a mensagem do Governador Rafael Fonteles é uma mensagem de retrocesso jurídico na legislação ambiental, para beneficiar os exploradores dos recursos naturais. “A água, a terra… são bens coletivos, que são individualizados, mas servem ao bem social, servem a coletividade. E nenhum recurso natural pode ser explorado sem a efetiva participação do poder público, exercendo o poder de polícia para, através dos licenciamentos, dizer se aquela atividade é ou não nociva ao meio ambiente”, explica.

A experiência do”Lagoas do Norte” revela o caminho almejado pelo G20

Foto: Luan Matheus Santana

A imprensa oficial do Ministério do Desenvolvimento tem dito, ao longo dessa semana de realização do G20 em Teresina, que o objetivo dessa reunião é que países desenvolvidos, em desenvolvimento e os mais pobres atuem em conjunto na erradicação da fome e da pobreza.

Facilitação no acesso a recursos, empréstimos a juros baixos, negociação de dívidas, transferência de tecnologia e capacitação técnica estão entre as possibilidades de apoio de países ricos e em desenvolvimento para que o objetivo seja alcançado. “A Aliança tem o potencial de acelerar os nossos esforços e implementar políticas comprovadamente eficazes para chegarmos em 2030 com o objetivo de Fome Zero no mundo alcançado”, destacou o Ministro Wellington Dias.

Maria Lúcia – Foto reprodução

Experiências locais e programas sociais estão sendo apresentados aos representantes das mais de 50 delegações presentes na reunião como modelos e propostas de replicações nos outros países. Maria Lúcia de Oliveira, liderança comunitária e defensora popular de direitos humanos, alerta para os riscos potenciais dessas alianças na vida das comunidades periféricas e mais vulneráveis de todo o mundo. E o alerta a partir da sua vivência, na luta por moradia na comunidade Lagoas do Norte, quando alianças com organismos internacionais tentaram expulsar mais de 2 mil pessoas de suas casas na zona norte de Teresina. 

.

“Nós somos de uma comunidade tradicional e fomos surpreendidas por um projeto financiado pelo Banco Mundial, que gerou fome pra comunidade. Mas não só a fome, como também a exclusão e a expulsão desse povo. E o relato que nós temos é de que, onde esses grandes projetos são enviados, as pessoas estão enlouquecendo, como é o caso dos projetos de energia eólica, com seus cataventos gigantes”, afirma Maria Lúcia. 

.

Para a defensora, a grande contradição desse processo é a tentativa de inserir o capital internacional nos territórios e não respeitar seus modos de vida. “Essa população sobrevive porque sabe tratar a terra. Mas como se vai combater a fome, sem ouvir os principais envolvidos, que são as comunidades? Pra nós, esse forum que está acontecendo aqui é pra esconder todas as violações que tem acontecido nos territórios tradicionais”, finaliza. 

Privatização da água retira comida da mesa do povo

Veúculo estacionado do lado de fora do Centro de Convenções. Foto: Mariana Medeiros

Enquanto as delegações dos países mais ricos (economicamente) do mundo conhecem o Piauí pela versão oficial do Governo, direitos básicos dos piauienses estão sob ameaça. A proposta de Fonteles (PT) de privatizar a Agespisa (empresa pública de águas e esgotos do Piauí) prever um leilão que supere 1 bilhão de reais aos cofres públicos. Um dinheiro que, na prática, não vai ajudar os piauienses a custear o aumento da tarifa de água após a privatização, que deve ficar em torno de 16,5% (a tarifa ainda pode aumentar de acordo com a inflação) nem a elevação da taxa de esgoto (de 80% para 100%), segundo prever o próprio governo.

Para o professor Geraldo Carvalho, da Central Sindical e Popular – CSP Conlutas, o projeto que está no centro dos debates do G20 para o governo do Piauí é a entrega dos recursos naturais e serviços públicos para  exploração do capital privado. “Na prática, a pauta é dar seguimento e oficializar a política que vem sendo feita no Piauí, que é, por um lado, a privatização dos serviços públicos e de empresas do estado e, por outro lado, a entrega dos recursos naturais para os investidores estrangeiros. Essa é a essência da política que está sendo traçada no G20”, afirma. 

O vice-presidente do Sindicato dos Urbanitários do Piauí, Francisco Ferreira, chama atenção para a postura do Governo do Piauí que, embora seja de um partido político dito de esquerda, executa políticas neoliberais típicas de partidos da direita. “Quer privatizar, entregar os bens do estado e não quer que ninguém fale nada? Nós temos que nos manifestar e dizer o que estamos sentido. A sua política (Rafael Fonteles) é uma política parecida com governos neoliberais”, afirma. 

De acordo com os manifestantes, a privatização dos serviços de águas e esgotos, prever de imediato o aumento das tarifas e outras taxas de adequações aos serviços de esgotamento sanitário. Na prática é mais gastos para as famílias, mais endividamentos e menos dinheiro para colocar comida na mesa. 

Manifestantes são cercados pela polícia

Teve início na quarta (22/05) e segue até sexta (24), a terceira reunião da Força-Tarefa para construção da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que reuniu mais de 50 delegações internacionais no Centro de Convenções de Teresina para acertar os termos finais da Aliança Global.

Durante os três dias do evento do G20 em Teresina, as delegações ficarão reunidas, durante todo o dia, apenas com pausas para as refeições que acontecerão no mesmo local, dialogando e negociando os termos do que pode vir a ser o texto final da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, proposta apresentada pelo presidente Lula ao Brasil assumir a presidência do G20.

Além dessa força tarefa, uma outra foi organizada para impedir que manifestações contrárias pudessem intervir nas discussões. Ainda na abertura, na quarta-feira (22), um grupo de manifestantes foi cercado pela polícia, numa tentativa de intimidação.

“Eu estou seriamente preocupada e decepcionada, porque nas instâncias governamentais, o povo nem sequer pode andar nas calçadas dos prédios públicos, a exemplo desse evento, onde nós gostaríamos de nos manifestar e não podemos”, afirmou a Dra. Leida Diniz, que levou a denúncia à Ordem dos Advogados do Brasil. 

Nossa equipe de reportagem também tentou ser impedida de fazer o trabalho e de acessar o espaço cercado pelos policiais, que recuaram após intervenção de manifestantes que estavam do lado de dentro da corrente humana de policiais feita para impedir seu  deslocamento.

G20 Social e a falta de envolvimento

Antes do encontro do grupo dos vinte países mais ricos do mundo, o Governo Federal inaugurou uma nova trilha dentro do G20: o G20 Social. De acordo com o Governo Federal, o objetivo desse novo espaço é ampliar a participação de atores não-governamentais nas atividades e nos processos decisórios do G20, que durante a presidência brasileira tem por lema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”. 

.

Apesar disso, a participação popular ainda parece restrita. Na abertura do G20 Social, na última segunda-feira (20/05), uma voz divergente emergiu dos fundos do auditório da FIEPI, onde aconteceu o evento. O músico e conselheiro estadual dos Direitos Humanos, Raimundo Gutemberg, mais conhecido como Bai Bai, fez ecoar um grito de liberdade. “Esperança Garcia, liberdade está escrito em teu nome”, cantou.

.

Antes da intervenção, a segurança particular do evento tentou impedir, chegando a colocar o conselheiro para fora do auditório. Bai Bai denunciou a presença de micro plásticos nos rios do Piauí e ausência de políticas efetivas para resolver os muitos problemas sociais do estado. “Essa foi minha intervenção pra gente não ficar achando que tá tudo uma maravilha”, disse.

.

Apesar das palavras fortes, nenhum representante da mesa comentou a intervenção de Bai Bai. ”Esse contínuo distanciamento que o desenvolvimento traz, que tira nosso envolvimento. Quem mais lucra com o racismo estrutural é o empresariado das parcerias público privadas. Assim fica difícil diminuir a desigualdade, a fome e a probreza”, finaliza o conselheiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Pular para o conteúdo