Então, eu conheci a Paloma no ano de 2000. O que me chamou a atenção na Paloma era a autoafirmação dela enquanto mulher trans. Me aproximei dela porque ela me disse que não tinha documentos. Então, lembro que cheguei em sua casa de manhã cedo, ela estava dormindo num lugar muito insalubre e as coisas dela estavam dentro do encaixe. Eu falei: se arrume e nós vamos tirar o seu documento.
Nós andamos por muitos lugares para que a gente pudesse encontrar alguma prova de que ela era gente. Nós fomos na maternidade, fomos na igreja procurar o batistério dela. Então, a gente conseguiu, num projeto de cidadania ativa, tirar a identidade da Paloma. E ela sempre foi uma mulher. Muito alegre.
Paloma: Da negação à autoafirmação
A exclusão provocada pelo sistema opressor foi fazendo com que a Paloma se sentisse uma mulher não aceita dentro da sociedade, mas ela lutou muito para se autoafirmar. Ela passou por um processo de drogadição e a gente tentou ajudar ela de todas as formas e aí chegou um tempo que ela mesmo foi numa dessas fazendas de que cuidam de pessoas que têm problemas de drogadição. Lá ela passou um tempo e quando ela voltou, ela voltou com o cabelo cortado e disseram que o nome dela não era Paloma, era Francisco, mas ela rompeu todas essas estruturas e se manteve firme com a identidade de mulher trans. Que ela tinha.
E ela dizia pra mim: Lúcia, não é porque eu queira ter esse comportamento, não é porque a gente queira ter esse comportamento, isso está dentro de mim. Eu sou uma mulher trans.
De lá pra cá, a gente veio acompanhando como podia. Na época da pandemia, ela foi morar numa invasão e ela estava passando fome e foi acusada de roubar um botijão de gás. Então, espancaram a paloma, inclusive na presença da guarda municipal. Ela foi colocada num carro espancado até por criança e isso teve uma repercussão nacional. Quando eu vi a cena nas redes sociais, eu me dirigi.
Paloma, torturas e negações de direitos
Até a Central de Flagrante, quando cheguei lá, ela estava algemada, então eu disse pra ela, “fale a verdade”, e ela relatou que tinha tentado fazer esse furto porque estava com fome. E aí ela foi liberada. Teve essa repercussão nacional e nós acionamos as instituições para que ela fosse abrigada.
Ela foi viver com a mãe em um conjunto habitacional que fica distante da cidade. A mãe dela, também por conta de tantos maus tratos, veio a óbito e ela ficou na rua. Eu encontrei a Paloma morando na rua e conversei com ela e ela me pediu que eu ajudasse, então eu procurei novamente as instituições, inclusive o Ministério Público, e aí ela foi assistida numa casa.De abrigo, que ela ia dormir e passava o dia na rua. E sempre indo e voltando nessa questão do uso da droga.
Ultimamente, ela tinha me relatado alguns maus tratos que ela estava sofrendo nesta casa de abrigamento, inclusive de homofobia. E aí, mais uma vez, nós tentamos fazer a denúncia, entrar em contato com o Ministério Público Estadual, pedindo que amparasse a Paloma. Quando Paloma me ligava me falando dessas contradições que ela estava passando nessa casa-abrigo. Ela buscou ajuda em muitos locais, tanto do estado quanto de grupos sociais.
Das muitas mortes em vida
Tantas vezes a mídia local noticiou sua morte. Ainda este ano ela mandou áudio no whatsapp para denunciar isso. “Esse pessoal toda vez fica me mostrando no face que eu tô morta. Eu preciso dizer para as autoridades que eu tô viva. Porque morreu uma travesti aí, aí jogaram dizendo que eu que tinha morrido. Queria pedir para ser ouvida pelo amor de Deus”. Ela repetia “Lúcia me mataram de novo”. Também chegou a dizer “Esqueceram de mim, a sociedade foi esquecida completamente de mim”.
E eu tive ontem essa notícia que ela tinha sido espancada e tinha sido morta. Resumindo, mesmo nós fazemos todas as denúncias que fizemos, mesmo nós procurando o Estado. Para que o Estado amparasse Paloma. Mesmo eu, fazendo parte do Conselho de Direitos Humanos, eu não consegui salvar a vida da Paloma. A vida da Paloma não tem importância para um Estado que não respeita um corpo preto, o corpo de uma mulher preta.
Paloma é símbolo de luta e de resistência. Paloma queria viver, sempre com um sorriso no rosto. E eu sempre dizia, Paloma, você passa por tudo isso e você não se revolta. Ela disse, para que é que eu vou me revoltar? A vida já é muito dura, para que eu tenha revolta no meu coração.
Então, Paloma foi essa mulher que lutou até o fim. Paloma é o fato vivo do que o Estado tem feito com uma população preta e uma população preta. Que não é vista, que não é enxergada como gente, as pessoas tinham nojo do corpo da Paloma. A Paloma sofreu a indiferença, mas mesmo assim, ela conseguiu lutar até onde ela pôde, ela foi ser fada pela indiferença, pela hipocrisia, pela indignidade e pelo nojo, pela homofobia praticada no estado capitalista que não tem servido para nós.
Por Maria Lúcia Oliveira, amiga e vizinha de Paloma no São Joaquim, defensora popular, comunicadora, presidenta do Centro de Defesa Ferreira de Sousa, Colaboradora do Ocorre Diário.
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