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Podemos questionar a Banalização da Brutalidade Brasileira (BBB)?

Da série de ensaios “subjetividades em série”

Sugestão de música para esta leitura: Smile – Nat King Cole

bbb by peste

Diria que mais que poder, precisamos questionar BBBs que nos bombardeiam! O momento pandêmico explicitou nossos abismos sociais e a necessidade de conter os poderosos e socorrer os que mais carecem. Se a tão celebrada lei do mais forte, ou que vença o melhor, ou a da oferta e procura vigorasse despudoradamente restaria a carnificina viral, que ainda ronda o Brasil. 

Sim! Precisamos sim refletir sobre nossas práticas culturais violentas, as desigualdades naturalizadas e o sadismo descontrolado que paralisa milhões: seja em torno de programas policiais, reality shows, videocassetadas dentre outros retrocessos da nossa era que não se distanciam muito das arenas romanas em que a antiguidade europeia se regozijava com  a dor do outro. 

É óbvio que a violência vomitada dos policialescos difere da que é  maquilada pelos requintes dos realitys disfarçados na perfumaria (corpo/cama, mesa e banho…) que deslumbra e infla a plasticidade da vida burguesa. A Globo é uma das raras concessões públicas de televisão que não possui programas religiosos e/ou policiais. Ainda que seja vantagem  na drástica conjuntura, é evidente que seu padrão técnico pseudo inclusivo sublima graves violências, crimes. 

“Que exagero! São inocentes brincadeiras! É só um jogo! É só um programa” Pois estas e outras brincadeirinhas de programas nada engraçados alavancaram a imagem do tragicômico grande ditador, que não foi levado a sério, e hoje impõe um genocídio a um país em colapso exponencial nas áreas mais decisivas. Não devemos generalizar processos sádicos e absorvê-los meramente como entretenimento. Assim também como não devemos desprezar nossa dimensão sadomasoquista e romantizar a humanidade como seres civilizados e puros.

Desde Freud  já é sinalizada com mais nitidez a relação entre pulsões sexuais e a crueldade, desdobrando discussões sobre o caráter agressivo da libido. A meu ver temos um problema psíquico e social quando a selvageria de nossos desejos se perdem em doses que transformam trocas prazerosas em manipulações doentias. Descuidar das formas que lidamos com nossas camadas violentas pode resultar em situações muito perigosas como agressões, abusos, humilhações, estupro e até mesmo morte.  

Por isso, é importante ampliarmos às vozes que trazem reflexões sobre o show business que nos consome para conseguirmos, enquanto sociedade, debater profundamente em vez de aceitar “naturalmente”, por exemplo, a fúria dos fandons que chegaram até ameaçar e agredir virtualmente uma criança, filha de uma dos participantes da edição de 2021. Não podemos banalizar esta e uma série de outras barbaridades que acompanhamos inevitavelmente por conta do peso dos algoritmos nas nossas vidas. 

Criticar a mediocridade com que elaboramos as nossas pulsões violentas nos produtos midiáticos não se confunde com preconceito intelectual ou qualquer tipo de purismo. Não se trata de considerar um produto melhor que o outro e de dizer que certo tipo de coisa é vulgar e outra sofisticada. Não é sobre a suposta atualização “erudito X popular” apontada pela pesquisadora Helena Vieira em seu texto na revista cult “Eu não vejo BBB: um ensaio sobre iluminados”. De fato, são sem efeito os juízos de valor (bom/mau) simplistas contra o BBB. A crítica que só inferioriza seu objeto é sem fundamento. É mais útil a crítica que move elementos de emancipação e dominação para serem refletidos e não o mero ataque gratuito impregnado de arrogância. 

A desumanidade do jogo é o deleite da audiência? 

Também não se trata de negar a excitação do jogo. Sim, o jogo é algo estimulante, mas a obsessão em competir é estratégia de dominação colonial. Aos amados amigos que amam futebol e suas variações (e vice-versa rsrs), recordemos: É um esporte de origem europeia que em certa medida reforça dialética do senhor e do escravo. O teórico Nego Bispo critica muito bem o modelo competitivo eurocentrado ao nos lembrar que podemos jogar sem a sanha agressiva de querer vencer/dominar e humilhar o outro pela derrota. 

É possível jogar com ginga e respeito. A capoeira é uma chave da sociabilidade de culturas negras muito bem lembrada por Bispo. Mesmo tendo origem numa luta que pode ser fatal, reconfigura o entretenimento em relações envolventes e vitalistas numa roda de brincadeiras/malícias auspiciosas e salutares.

O importante nos questionamentos ao entretenimento e à cultura midiática agressiva/neoliberal é não menosprezar o poder das massas, tampouco se deixar levar ingenuamente por elas. É certo que estamos inescapavelmente inseridos em processos massivos de consumo, mas esta situação não pode submeter a cidadania e dignidade humana à condição de mero consumidor produtivo: ávido em sugar e ansioso em ser útil, acoplando-se assim a estrutura que garante seu pertencimento e ao mesmo tempo status de indivíduo – desesperado em ser notado pelo grupo por meio dos padrões de beleza/consumo elencados em larga escala.  Padrões esse que em programas como BBB se propagam numa overdose que vai dos utensílios da cozinha aos corpos/comportamentos (subjetividades) dos participantes.

Os desejos são moídos na máquina televisiva e no fundo ninguém escapa de ser amassado, mas nisto é interessante também dar uns bons amassos, né não?! O fato de estar no meio da massa não impede que se busque diversas opções de recheio e cobertura, né?! Atolar na massa é se conformar com uma morte horrível por asfixia e indigestão. Também não devemos confundir a cultura massa com as camadas pobres/populares. Afinal, é a elite cultural de influenciadores e a velha classe média mediana que impulsiona os debates bigbrotheranus para uma população adoecida que sucumbe à alta de preços, alimentos envenenados e lazer lesivo.

A massa não é algo abstrato, é algo a ser preparado e transformado rotineiramente. Questionar as formas de preparo, a indústria do entretenimento, não podem ser generalizadas como “preconceito”, mas como uma via de autonomia, um respiro. A programação violenta que temos precisa ser problematizada sim, principalmente porque se utilizam de concessões públicas de televisão. Não dá pra passar pano e dizer que os realitys integram nossa cultura por ser cultuado por milhões. Os programas policiais são tão venerados, ou mais, e isso não faz deles emblemas culturais, mas sim a tragédia da nossa sensibilidade/humanidade. 

Hannah Arendt nos relatou a perplexidade de perceber no “homem comum” “cidadão de bem”, a incapacidade de discutir a crueldade e apenas incorporá-la numa  harmonização do mal com a ordem dominante. Esta é a banalidade do mal que ela pôde constatar nos crimes nazistas, fatos bem mais extremos dos que estamos abordando. Contudo, a banalização do mal não é tão distante de quem se  recusa a examinar a toxicidade de relações escancaradas por acreditar piamente que o que assiste não pode nunca ser danoso, que é apenas uma distração, um momento alienante que deve ser relaxante: Uma pausa para não pensar. 

Como se “não pensar” fosse realmente algo necessário, como se a atividade cerebral fosse interrompida e os signos de horror não fossem transmitidos durante o relaxamento. Pensar não é  um ônus, é uma dádiva! Este tratamento, típico do totalitarismo, do pensar como calvário e da arte como estorvo faz gerações inteiras odiarem os estudos/ leitura e considerarem aprender um suplício, quando pode ser algo empolgante e encantador. Precisamos romper com esta cultura que celebra a ignorância e demoniza o conhecimento, pois daí surgem graves problemas éticos e de cognição, como os da corja presidencial e seus capachos, que não alcançam elaborações complexas de si e do outro rejeitando qualquer diferença como mimimi. 

É complexo e impossível assimilar conscientemente o turbilhão de signos expostos no que assistimos, mas me parece mais complexo ainda negligenciar os sentidos (brutais) de qualquer coisa a que assistimos. Não temos obrigação de significar e interpretar tudo, mas é necessário recuperar a sensibilidade que nos alerta à ojeriza de certas práticas que ferem direitos humanos. 

Não assimilar BBBs não é ser purista, é rejeitar as manobras de mercantilização das nossas vidas. Sim, discussões importantes no programa até podem ser levantadas ao passo que  rapidamente derrubadas numa lama de consumo que dilui o debate em muito close errado. A questão racial, por exemplo, foi ampliada, mas velozmente minimizada e todo Brasil insiste que é mimimi. A política editorial da Globo sobre racismo é deturpadíssima em qualquer programa, qualquer mesmo, não é sobre BBB. A grade minimiza o racismo brasileiro e prefere dar holofotes ao racismo dos EUA. Isso é grave. Não é um problema do BBB, é um problema de não democratização da comunicação no país. 

Descortinar a violência e Democratização da mídia

“Mas o programa já acaba!” A solução é acabar? Censura? De maneira alguma creio que proibições sejam boas soluções, mas opções são sim uma possibilidade próspera. É urgente democratizar as mídias de massa. É preciso que as diversas camadas, principalmente as mais excluídas, acessem seu direito constitucional de informar e se informar e sensibilizar nossa sociedade. Não podemos ficar à mercê de jogos meritocráticos, pautados num star system estereotipado que nos condena à limitada dialética escravista que necessita de heróis estrelados por padrões inalcançáveis, que beneficia algumas campeãs, vencedoras vendedoras… “Deus dá asas, então faz teu vôo…” Ainda que cague na cabeça de todes. Comunicação não é mera mercadoria, é direito!

Infelizmente estamos na contramão de toda a política pública necessária a uma comunicação democrática.  A Globo e a corja da mídia hegemônica se posicionam contra a necessária regulação das mídias e o fortalecimento da comunicação pública. A Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), tão necessária na nossa formação democrática, sofre vários ataques e beira ser privatizada, o que vai piorar muito as chances de democratização. Ano passado despencamos 04 posições e  nos encontramos na “zona vermelha” do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, que anualmente avalia a situação do setor em 180 países. Precisamos de posturas e políticas que combatam este cenário de horror. 

Chega de banalizar a violência que vemos e vivemos! O problema não é só da sister que foi agressiva, ou do brother desequilibrado, ou da vítima isolada. O problema é estrutural. Por mais que existam participantes incríveis, travestis revolucionárias, como Linn da Quebrada, o sistema é bruto. E é vicioso:  a fábrica de conflitos desnecessários, que culminam em atrocidades, é a tromba de um elefante presa ao rabo do outro que brada por punição /eliminação selando o círculo de violência. 

Por mais que o público cobre medidas para coibir os abusos já programados, não existe reparação real de danos e muito menos recompensa aos lesados. O que vemos são pessoas oprimidas, sobretudo pelo racismo, se degladiando, enquanto a plateia assanhada por uma “vingança gladiadora” decide qual opressão é supérflua (“falsa”)e merece sangrar na arena do paredão. 

O programa televisivo violento é um reflexo do nosso programa de sociedade. Não se combate a desigualdade e exclusão, sem se combater seus tentáculos midiáticos. Se queremos uma sociedade justa e democrática, seus meios de comunicação precisam ser pautados por justiça e democracia, ao invés de irradiadores da barbárie. Todas as pessoas e temas por mais relevantes que sejam visibilizados globalmente, são dilacerados nas engrenagens da estrutura do BBB e de toda mídia hegemônica, que assim como nossa sociedade, seguirá com seu formato bem brasileiro de banalizar a brutalidade das nossas ações violentas. E assim será até tivermos coragem de cobrar conteúdo diverso, qualificado e democrático que realmente reflita sobre as complexas diferenças e diferenciações brasileiras. 

Ressalto que a base deste texto foi escrita em 2021 quando Camilla de Lucas desmaiou em uma prova de resistência. É aterrorizante observar o “entretenimento” colocar a saúde física e mental das pessoas em risco em nome de cifras astronômicas (Round 6?). Hoje me dói ver as agressões viralizadas contra Natália. O que mudou? Continuamos normalizando a tortura de mulheres negras na tv, assassinatos de homens pretos em seus locais de trabalho, a disseminação do nazismo, a transfobia, angustiantes crises de solidão escancaradas: enfim  a crueldade envernizada na beleza de algoritmos doloridos. Vibremos para que tanta dor nos mova de um luto silenciado para uma luta que precisa ser televisionada. 

E se a sociedade do espetáculo

Nos seduz com o fetiche de nos vigiarmos em estado degradante

Sorria, não porque está sendo filmado

Mas porque a luz da revolução

É a alegria radiosa dos indignados

Textos de cabrita da peste

Comments (1)

  • Valdemarsays:

    15 de fevereiro de 2022 at 10:08 PM

    Texto essencialmente necessário, quero que leiam em todos os canais, pra ver se conseguimos derrubar esse sistema falecido que nos enclausuram em sensacionalismo barato e altos índices de violência.

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