No final da semana passada, o Governo do Estado do Piauí, por meio da SETUR (Secretaria Estadual de Turismo) e com apoio do SEBRAE – PI (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), começou a circular nas redes sociais e emissoras de televisão uma propagando de ‘incentivo’ ao turismo no litoral do estado, com um mote de campanha que dizia: “faça comos gringos, visite o litoral do Piauí”. Na propaganda, um homem e uma mulher, brancos e loiros, estrangeiros e com sotaques carregados apresentam o litoral do Piauí aos piauienses; mais do que isso, eles convidam os piauienses a conhecer o seu próprio litoral. Como quem diz que é preciso uma nova invasão colonizadora para que sejamos descobertos. Mau sabem eles que nós não precisamos ser descobertos por gringos, nós reExistimos a revelia de suas caravelas.
O vídeo, direcionado ao público do estado do Piauí, gerou polêmica nas redes sociais e dividiu opiniões. O que, em um primeiro momento, pareceu apenas uma outra visão do litoral para alguns, para outros se configurou como uma contradição lógica e um erro grotesco de ação de marketing. Entretanto, para além dessas posições, essa ação revela questões bem mais profundas e perigosas, que são motivos de indignação pra muitos que vivem no litoral.
Começamos pelo estereótipo colonial, que não poderia ser maior: um casal heteronormativo, branco e estrageiro tentando convencer a nós, filhos dessa terra, sobre as belezas do nosso litoral. Tentam dizer, mais uma vez ( e como fazem a mais de 500 anos), que a visão dos estrangeiros é a visão certa sobre tudo; tentam nos convencer que, se os estrangeiros estão vindo pra cá, é porque as praias são boas mesmo. “Eu viajei mais de 5 mil quilômetros para conhecer esse paraíso, e você, tá esperando o que?”, diz a propaganda.
Se, no século XVII, foram os colonizadores europeus, sobretudo portugueses e holandeses, que invadiram nossas terras e usurparam nossos saberes, ocultando o conhecimento das mais de 17 etnias indígenas que já habitam esse solo que hoje chamamos Piauí, hoje vivenciamos uma “outras forma de colonização” em nosso litoral, que adentra nossos territórios por meio da especulação imobiliária e ocupação irregular de terra, inclusive, de áreas de proteção ambiental, como já mostramos aqui em outras oporttunidades.
Semelhante ao que aconteceu no século XVII, onde a invasão europeia se deu com o apoio das instâncias do poder e com base na força de guerra, hoje essa “outra colonização” é incentivada pela Governo do Estado e pelo poder econômico (SEBRAe) que, por um lado aplaude as iniciativas de fora e, por outro, oculta os saberes, o trabalho e a existência dos povos litorâneos, que fazem toda a engrenagem local girar. Ao contrário, nós dizemos: Litoral para os moradores. Litoral para os povos dos mares e seus modos de vida.
Quem nos ajuda a entender isso é Antônio Bispo dos Santos, um quilombola que, do meio da caatinga, evoca as vozes contra-coloniais a partir dos saberes ancestrais e nos convida, sobretudo, a pensar a nossa realidade a partir das nossas vivências, dos saberes construídos por nós. Talvez você ainda não visto Nego Bispo (como é conhecido), embora, você já deva ter visto dos gringos da propaganda da SETUR e SEBRAE. A lógica é a mesma, desde sempre.
Em seu livro, “Colonização, Quilombo: modos e significações”, Bispo nos mostra como os Europeus, desde a colonização, buscam impor suas cultura, religiosidade e modos de vida aos povos que viviam e ainda vivem aqui. Para ele, no começo isso foi feito por meio da força e genocídios (colonização) e hoje, essas relações se mantêm como marcas vivas desse processo de exclusão e subalternização, gerenciados sobretudo por meio da separação dos seres humanos da natureza, da racialização dos povos, da divisão de classe e gênero (colonialismo).
Então, como podemos ser incetivados a fazer como os gringos, se tudo o que eles já fizeram e ainda fazem é invadirem nossos territórios em buscar e dinheiro e poder? Consomem e vedem nossos recursos naturais como mercadorias na feira e sem quase nenhuma contrapartida social. Devemos mesmo fazer como os gringos?
Turismo de base comunitária como alternativa à degredação do território e à especulação imobiliária
Para Luciano Galeno, representante do Conselho Pastoral dos Pescadores do litoral do Piauí, essa propaganda tem um objetivo muito definido e esse objetivo não é o de incentivar o turismo local. “É uma ação focada na ampliação da especulação imobiliária. Não representa o estado do Piauí, não representa o litoral. É totalmente excludente e a gente entende qual é o foco dessa propaganda”, afirma.
Em outros momentos já denunciamos aqui as disputas e avanço da especulação imobiliária na região, que chegou até em áreas de proteção permanente. Conflitos que ameaçam diretamente a vida e trabalho de moradores de comunidades tradicionais, pescadores e artesãos.
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“Em vez de ter feito essa propaganda, deveriam exaltar os trabalhadores, os pescadores e as pessoas que fazem o litoral acontecer, seria muito mais interessante. O Governo tem esse fetiche de achar que os estrangeiros e os investimentos de fora fazem o turismo acontecer, no entanto, nem é isso. O que acontece, na verdade, é uma exclusão, com concentração de renda nas mãos de poucas pessoas. O que o governo deveria fazer era incentivar seu povo, com turismo de base comunitária, turismo inclusivo, fomentado pelos moradores que vivem aqui. Isso resolveria um monte de problemas”, defende Luciano.
A matemática colonial é fácil, expulsa-se a população local, para dar lugar a um paraíso para os ricos, onde quem pode pagar fica. Desterritorializa famílias que vivem em biointeração e harmonia com a natureza. Estamos no século XXI e o governo trocando nosso litoral por falsas ilusões, que só reflete sua própria ignorância, mesmo existindo uma diversidade de projetos de turismo de base comunitária ou ecológica que valorizam o fazer local. No lugar disso apostam no turismo de exploração, que expropria pescadores, pescadoras, marisqueiras, artesãs e artesãos, contadores e contadoras de história e toda sorte de subjetividades que reExistem no nosso litoral.
Gentrificação e turismo (in)sustentável em Barra Grande, litoral do Piauí
O que acontece hoje no litoral do Piauí e talvez esteja mais escancarado em Barra Grande, é um fenômeno muito comum ao sistema capitalista, cujo os lucros estão acima de qualquer outra coisa. Um fenômeno conhecido como Gentrificação, que na prática é um processo de transformação urbana que “expulsa” moradores de seus territórios e transforma essas regiões em áreas ‘nobres’. A especulação imobiliária, aumento do turismo e obras governamentais são responsáveis pelo fenômeno.
José Maria Alves da Cunha e um grupo de pesquisadores do mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Piauí, desenvolveram uma pesquisa que mostra os principais impactos do turismo na região na vida dos moradores nativos de Barra Grande. A pesquisa evidencia aspectos positivos e negativos da implementação daquilo que eles chamam de ‘Turismo Global”, ou seja, um modelo turístico voltado para estrangeiros.
O que os pesquisadores evidenciaram, todavia, é que esse modelo de turismo é socialmente excludente. “Questionados acerca da ocupação funcional, percebe-se um cenário de exclusão dos moradores quanto ao fator empregatício nas atividades ligadas ao turismo, tendo em vista que 51% dos pesquisados afirmaram que são donas de casa, em seguida vem a atividade de pescador com 17% e, em terceiro, comerciante, com 15%”, afirma a pesquisa.
Para os pesquisadores, os resultados expõem, de maneira evidente, a exclusão social relacionada à ocupação dos postos de emprego pelos nativos no turismo em comunidades tradicionais. “Sobre a renda, 68% dos pesquisados têm renda familiar de até 01 salário mínimo, outros 22% possuem renda entre 01 e 02 salários mínimos, enquanto 5% possuem renda superior a 02 salários mínimos”, evidencia a pesquisa.
Ou seja, enquanto a maioria da população nativa vive com um salário mínimo, grandes empresas enchem os bolsos de dinheiros a partir da exploração dos potenciais turísticos da região. O setor de serviços abrange 70,9% da economia local de Cajueiro da Praia, município que abriga a comunidade de Barra Grande, seguido pela agricultura (15,25%) e, em terceiro lugar, a indústria, segundo o IBGE.
Mas a própria pesquisa mostra que a comunidade Barra Grande é conhecida não apenas pelo turismo desenvolvido em seu território, mas, principalmente, pelos costumes tradicionais, caracterizados por meio da pesca artesanal, das práticas agrárias e pecuárias de subsistência e pelas práticas sociais relativamente simples. Saberes e fazeres quase nunca vistos ou exibidos em propagandas de TV.
“Esse progresso, que chamam de desenvolvimento, é destruidor na vida das pessoas que moram aqui”, afirma Adriana Marcia da Barrinha.
Adriana Márcia não escolheu a Barrinha como seu lugar de morada e refúgio, ao contrário disso, foi escolhida pelo território. Moradora da comunidade há 14 anos, foi lá onde ela entrou a calma que precisava em um momento de muitas inquietações (políticas e sociais) na sua vida. Uma calma que não durou muito, mas que foi o suficiente. Ela lembra bem de como eram as coisas assim que ela chegou e como o cenário se modificou rapidamente. “Aqui não tinha nem torre de telefonia, há 14 anos atrás ninguém usava celular na comunidade. Jovens, de 20 anos, sem saber o que era um celular. Mas em pouco tempo, depois que chegaram as tecnologias, as coisas mudaram muito”, ressalta.
Mas esse ‘progresso’ que chegou trouxe também uma série de problemas para a comunidade, que afeta diretamente seus moradores e o ecossistema local. “O lugar é bonito, mas a vida em sociedade não está sendo uma coisa muito bacana, sabe? Esse progresso, que chamam de desenvolvimento, é destruidor na vida das pessoas que moram aqui”, afirma Adriana.
Adriana acredita nisso porque não vê um retorno real e concreto para a comunidade, que possa de fato transformar a vida das pessoas que moram e que fazem a cidade acontecer. Segundo ela, não há serviços básicos de saúde, o transporte é precário, os serviços que se estabelecem na comunidade não atendem o que os seus moradores/as precisam.
Em contrapartida, à beira ao mar, o que ela observa são grandes empreendimentos milionários sendo erguidos para benefícios individuais, degradando áreas de mangue e de preservação ambiental. “Já quiseram jogar esgoto em nossas lagoas, já tentaram construir muros na nossa praia, mas a comunidade foi lá, se ergueu e impediu. Mas infelizmente não conseguimos impedir tudo”, conta Adriana.
“Aqui no litoral não há uma política de motivação junto às comunidades, que realmente são nativos e nativas, para que existam lugares, feiras, eventos populares onde as pessoas pudessem mostrar suas habilidades, seus trabalhos, a realidade local. Não há esse incentivo, é muito pouco. E por que? Porque o interesse do governo é atrair investidores internacionais”, finaliza.
Comments (1)
Empreendimentos no litoral tentam destruir comunidades tradicionais pesqueirassays:
4 de maio de 2023 at 8:15 AM[…] O turismo predatório no Delta do Rio Parnaíba, pesca esportiva e o incentivo ao turismo náutico vem provocando conflitos com as comunidades. De acordo com o Educador Social do Conselho Pastoral dos Pescadores, Regional Ceará e Piauí, Luciano Galeano, catadores de caranguejos e pescadores, principalmente os nativos das Ilhas das Canárias, transformada em Reserva Extrativista-RESEX, a falta gestão e ordenamento do turismo na região já causou a morte de um pescador, quando em 2021, uma grande embarcação com turistas, atropelou sua canoa. […]