Cardosx Santos, Francisco Cardoso dos Santos Neto, graduade em farmácia e residente da Maternidade Escola Assis Chateaubriand da Universidade Federal do Ceará, transformou suas vivências ufpianas (Universidade Federal do Piauí – UFPI) na graduação em uma nova pesquisa em farmácia clínica, sobre o uso de medicamentos por pessoas trans e travestis.
O estímulo pela pesquisa começou sob a copa de um cajueiro, no “Pingo do Sol” quente, em 2015, quando nascia as Kátias Coletivas, coletiva impulsionada por Adda Lígia Rissope, que movimenta as pautas trans com intervenções políticas e artísticas. Hoje a realização da pesquisa começa a ser realidade.
É importante sempre destacar o real significado da nomenclatura trans , o que acaba causando muita confusão, desrespeito e preconceitos. “Existe travesti, transgênero e até transexual, que já caiu em desuso, porque o “sexual” tem a ver em como as pessoas se relacionam afetivamente e o (trans) “gênero” é mais relacionado ao papel social que a pessoa exerce”. Elu (ele/ela) ainda explica que a denominação travesti é uma realidade da América Latina, por não reconhecer outras experiências de gêneros, além do homem e da mulher, que é o que não acontece em países como EUA e Índia.
O que Cardosx deseja em sua pesquisa é discutir o acesso e a forma como essa população usa medicamentos para a transição de gênero, pois sabe que o uso sem acompanhamento pode trazer danos graves à saúde destas pessoas que carecem de amparo do poder público.
Pesquisador comprometido, ele lembra que a ideia surgiu depois de um debate em um centro de referência à LGBT em Teresina. “ Tive a oportunidade de participar de espaços que traziam a tona este tema. Uma demanda constante é essa questão da transição, onde a pessoa com renda melhor, que poderia pagar um médico endócrino, acessar um serviço de saúde e adquirir uma receita acabava repassando essa mesma receita para as outras”, explica Cardosx sobre o itinerário de uma receita que deveria ser individual, mas acaba tomando formas coletivas, por falta de recursos.
O risco disso, diz nossa pesquisadore, é que cada um/uma tem uma demanda específica e precisa de um olhar e cuidados diferenciados. “Sabemos que cada pessoa tem uma demanda, e o uso dos medicamentos pode interferir no cabelo, na voz, no corpo…”.
Elu afirma ainda que saiu de um desses debates com uma certa crise de inquietude de uma pessoa e pesquisadore engajade “Desse espaço que participei já tive a inquietação e tentei trazer o mesmo para a UFPI, mas não tive as condições para isso, só agora na residência que consegui, junto com a professora Mirian Parente e a Dra. Eugenie Desirèe que aceitaram acolher essa pesquisa”.
Implicações do uso de medicamento sem acompanhamento
Defensor da universalização da saúde de boa qualidade para toda a população, Cardosx nos ensina e ensina ao mundo que somente o acesso ao SUS de forma qualificada poderia resolver as complicações de ser Trans no Brasil. Apesar de existir a Política Nacional de LGBT que institui as questões das trans precisa ser melhor equipada e efetivada.
Em geral, essas pessoas saem de casa, sem amparo nenhum da família e da sociedade, o que torna a busca pela transição um sofrimento ainda maior. É assim, que sem recursos, a comunidade procura se apoiar compartilhando suas receitas. Mas o efeito colateral pode ser muito danoso.
Cada corpo, um afeto, um cuidado. “Usos contínuos de medicamentos podem gerar doenças na ordem óssea e perda do tônus muscular (não ter força corpórea para fazer as suas atividades do dia a dia). Como fazer esse uso correto? Através de uma assistência orientada multiprofissional (endócrino, psiquiatra, psicólogo)”, explica Cardosx.
Elu explica também que, “Na hormonioterapia, para garantir, que o efeito do tratamento seja permanente, é preciso que o uso do medicamento seja feito continuamente até um dado momento da sua vida em que ele se estabelece (entre 10 ou 15 anos) e hoje temos escassez de dados para saber quanto tempo esse tratamento levaria, pois as pessoas usam esse tipo de medicamento sem nenhum cuidado profissional”, explica sem qualquer tipo de juízo as pessoas que fazem esse uso. Antes, Cardosx problematiza o fato do sistema público de saúde ainda não oferecer esse tipo de serviço.
Outra questão que se levanta é o uso de determinadas substâncias com outra finalidade que não a de laboratório. “Uso off label é quando um medicamento é feito para um perfil e acaba sendo usado para outro perfil. Por exemplo, um remédio que serve para contracepção, reposição hormonal, e tratamento de doenças ginecológica e acabam sendo utilizados pelas pessoas trans para realizar a transição. É preciso ver se o hormônio está condizente com a idade, com o peso, com a nutrição”, explica sobre o uso de hormônios.
Vale ressaltar que as pessoas não utilizam apenas hormônio neste processo, elas fazem uso de remédios. Nossa pesquisadore explica, “Eu coloco o termo ‘medicamentos’ e não hormônios, porque esse último são substâncias do próprio corpo, mas tem medicamentos que elas usam que não é hormonal. Por exemplo, espironolactona, ´que é um remédio diurético, pra quem tem hipertensão, uma mulher trans utiliza para inibir a testosterona. Originalmente não tinha relação com a questão hormonal, mas conseguem tal efeito”.
“Sair do Campo místico e do medo das trans”
Voltando as experiências de Cardosx junto ao COletivo e a Universidade que se colocou como um lugar de escrachos e exclusões, a inquietação sobre como o fetiche da figura trans ser um grande mistério no imaginário coletivo, faz com que os profissionais da saúde deixem de oferecer um serviço de qualidade e gratuito para essa população inquieta.
É preciso celebrar a presença trans, “Necessidade de sair do campo místico e de medo da pessoa trans. Tem que sair desse campo de medo da pessoa trans. Essas pessoas estão em todos os locais que você está. Ela está no dia a dia, não apenas na noite e na esquina, como muitos pensam e querem”, diz Cardosx. E ainda, acrescenta que para realizar pesquisas e serviços à altura desta população, “temos que nos desprender dos discursos religiosos que privam a liberdade. É o direito delas viverem com plenitude, segurança e dignidade. Não podemos mais permitir que desgovernos e autoritarismos matem nossos irmãos e irmãs”, afirma.
Dizem que agora que a gente começou a falar de trans. É mentira. As pessoas trans existem desde que existe humanidade, sempre existiram. Não é minoria. Temos uma dívida histórica e milenar com essa população.
Gêneros: “Mais que o arco-íris”
Cardosx explica pra gente que as identidades de gêneros são tantas que ultrapassariam até mesmo as cores do arco-íris, comumente abraçadas bandeiras que ocupam os corações ativistas da causa. Elu explica que gênero de forma tradicional é homem e mulher “mas isso é devido a um processo educacional histórico, eurocentrado e cristão. Até a educação cultural é uma herança européia. Em povos quilombolas, indígenas e outros povos, por exemplo, gênero é uma experiência bem mais ampla”, argumenta.
A Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero (WPATH ) lançou norma de saúde para essas pessoas, Trans e Variabilidade de gênero. “Esta última (gênero) expressa todo um espectro, uma forma como os norte-americanos compreenderam de pegar vários grupos ‘minoritários’ que não conseguem se enquadrar em nenhum gênero que está colocado. Dentro deste espectro vem os não-binários, queers, andrógenos, que não reivindicam masculino ou feminino. Tem sujeites que não tá nessa marcação”, explica a complexidade desse arco-íris, que apresenta sempre novas cores tanto mais a liberdade se expressa.
Usos medicamentosos e a Passabilidade – O que é?
Cardosx nos explica que a problemática de sua pesquisa parte da perspectiva da “passabilidade”. Termo que se refere à pessoas que tem a aparência do gênero com o qual fez a transição. Por exemplo, é comum dizermos que “fulana de tal” passa por mulher ou por homem. O termo “é igualzinha” é também parte de um mundo que padroniza corpos e corpas, fazendo com que a luta para conseguir um corpo “passável” seja ainda sofrido.
E a busca por essa corpa/corpo “perfeito”, não é apenas um desejo pessoal, mas uma imposição social. “Porque uma pessoa trans é mais aceita quando ela não é reconhecida como trans. Uma pessoa que se assemelha mais a uma cis (pessoa que se identifica com o gênero de nascimento), tem mais portas de acesso (aceitação no meio social). Uma trans pra ser uma boa trans, teve até um caso no BBB, que diziam ‘ah, mas ela é tão feminina’. Mas a que preço ela alcançou essa corpa ‘tão feminina’?”, questiona Cardosx.
Daí onde entra a questão do uso medicamentoso. “Uma pessoa pra ser considerada feminina precisa inibir o hormônio dela fazendo uso de outros hormônios. A mulher trans precisa inibir o hormônio de nascença dela. A testosterona em si inibe a transição do fator do hormônio feminino. Tem mulheres trans que fazem uso somente do hormônio feminino e acaba gerando uma mulher trans que tem uma feminilização que não é ‘completa’ e ela acaba sofrendo muitas violências. Nem sempre ela tem informação de que precisa ter acesso aos dois medicamentos”, alerta Cardosx, acrescentando que o tratamento para homens trans é diferenciado e tem seus cuidados específicos.
Hoje, segundo Cardosx, há adolescentes de 16 anos que já começam a inibir os hormônio para não desenvolver fatores sexuais secundários (crescimento de pelo e mama, por exemplo). “Se a pessoa consegue perceber ainda na infância e a família aceita e escolhe tardar a puberdade para não adquirir os fenótipos do crescimento secundário (mama, voz, pelos…). O segmento terapêutico será diferente e o resultado também. Geralmente as famílias não aceitam, e essas pessoas crescem e acabam tendo que enfrentar uma luta na fase adulta que gera outras implicações. Isso na figura trans binárias”, diz.
Como será a pesquisa?
Esta pesquisa é uma espécie de guarda-chuva que abriga várias perspectivas do tema, que como vimos, é muito complexo. A pesquisa busca entender de forma prática o uso destas substâncias na realidade brasileira, conhecer os/as sujeites brasileiros e saber o que essas pessoas usam para transição de gênero.
“Faço questionário socioeconômico para construir um perfil epidemiológico da pessoa. Em segundo lugar é um questionário para construir um perfil clínico. Por exemplo, busco saber se depois de utilizar esse remédio vai ter reação de adversa”, explica Cardosx.
Os questionários serão enviados para grupos de pessoas LGBTQIA+ de todo Brasil e o mapeamento destes grupos está sendo realizado. Até o final do deste ano a pesquisa entra em execução e deve servir como instrumento comprometido para melhoria de vida desta população.
Quer colaborar com a Pesquisa? Faça sua voz ser ouvida
Acesse o questionário e o respectivo TCLE clicando no link e colabore com o desenvolvimento desta pesquisa.
Reportagem por: Sarah Fontenelle Santos; Maura Vitória
Edição de texto: Vicente de Paula
PS: Procuramos respeitar a neutralidade de gênero na construção do texto, encontrou algo que pode ser alterado? Nos avise, estamos aprendendo.
Assim, algumas palavras não usuais na língua portuguesa foram transgredidas/Transicionades tais como: Ele/Ela = Elu; Graduado/graduada= Graduade… E vamos criando um mundo onde caibam muitos mundos. Por um Jornalismo Inclusivo.
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