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QUEM AMA, NÃO MATA!

A violência doméstica contra a mulher não é crime passional

Este conteúdo faz parte da série de reportagens sobre Direitos Humanos realizada pelos estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) matriculados na disciplina Direitos Humanos, Comunicação e Políticas Públicas, unidade ministrada pelo professor Dr. Antonino Condoreli. As reportagens têm como objetivo refletir as questões de direitos humanos criando ambiente crítico no âmbito da mídia, além de contribuir para a disseminação dos conteúdos acadêmicos na sociedade.

Por Alexandre da Cunha Carvalho

Denuncias de violência contra a mulher através de vídeos que circulam pelas redes sociais chocam cada vez mais o país. Exemplo disso são dois casos que aconteceram esse ano em Ilhéus, no sul da Bahia e em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Cada vídeo mostra um casal discutindo e, no fim das gravações, o homem agride a mulher com uma sequência de socos no rosto.

Embora causem grande comoção social, não são raras as cenas de violência contra a mulher, em especial quando o agressor tem ou teve com ela relação de convívio.

A violência contra a mulher é uma questão global e um problema de saúde pública que atinge todas as classes sociais e diferentes níveis de formação cultural, educacional, religiosa e profissional, entre outras. É uma forma de violência que não obedece a fronteiras, princípios ou leis. Ocorre diariamente no Brasil e em outros países, apesar de existirem inúmeros mecanismos constitucionais de proteção aos direitos humanos.

Aprofundando mais a questão, podemos fazer uma análise em cima do recorte de classe e raça dessas mulheres aqui no nosso país. O “Atlas da Violência” traz dados que apontam que em 2018 houve uma queda de 12,3% nos homicídios de mulheres não negras, enquanto a redução para mulheres negras foi de 7,2%. Os números do “Monitor de Violência” apontam que nos seis primerios meses de 2020, em plena pandemia da COVID-19, 1089 mulheres foram assassinadas, sendo 631 vítimas de feminicidios. Desse número, 75% das mulheres eram negras, e tratando de casos de agesssões e estupros, o percentual fica em torno de 50%.

O problema sempre existiu ao redor do mundo e ganhou destaque nos últimos anos com a evolução do papel da mulher no ambiente social, político e profissional, a consolidação do movimento feminista e a luta pela promoção da igualdade de direitos.

Este tipo de violência sempre foi uma questão gravíssima no Brasil. Em 2019, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada dois minutos era registrado um Boletim de Ocorrência em alguma delegacia do país com denúncia de vítima no convívio doméstico. O problema já era imenso e ficou pior com o necessário isolamento social, decorrente da pandemia pela Covid-19.

De acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde, o isolamento social tem sido a medida mais segura para amenizar o contágio e a propagação do vírus. Porém, com mais homens e mulheres dentro de casa, o número de agressões aumentou nos últimos meses. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a quantidade de denúncias de violência contra as mulheres recebidas no canal 180 cresceu quase 40% ao compararmos o mês de abril de 2020 e 2019.

Violência a espreita

A violência doméstica engloba desde uma relação abusiva, com ameaças e sem contato físico, até crimes de lesão corporal e homicídio, que recebe a denominação de feminicídio quando praticado contra a mulher, pela “simples” condição desta ser do sexo feminino

O termo “feminicídio” é recente no ordenamento jurídico brasileiro. Somente no ano de 2015, por meio da Lei nº 13.104, que o crime passou a fazer parte do Código Penal, no art. 121, prevendo pena de reclusão de 12 a 30 anos para homicídio envolvendo razões de condição do sexo, como violência doméstica ou discriminação.

Entretanto, um caso ocorrido em meados da década de 70 mostra que as sanções para crimes contra a mulher nem sempre foram tratadas assim. No dia 30 de dezembro de 1976, a socialite brasileira Ângela Diniz foi assassinada com quatro tiros por seu companheiro, na praia de Búzios, litoral do Rio de Janeiro.

O autor do crime, Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, alegou legítima defesa da honra, o que resultou em uma pena de dois anos de prisão. O crime, justificado pela “violenta emoção”, teria ocorrido por ciúmes. O caso marcou o início dos debates sobre os assassinatos considerados “passionais”.

O Amor não Mata

Passional significa “provocado pela paixão”. É tudo aquilo motivado pelo sentimento excessivo da paixão. Chama-se de crime passional aquele  motivado pela paixão doentia, cometido por pessoa dominadora e sem o controle de suas emoções, que mata por ciúme, sentimento de traição ou vingança.

Os crimes passionais existem desde os tempos mais antigos, quando existia, com maior força, a ideia de propriedade do homem sobre a mulher. Com a evolução social, houve uma gradual necessidade de se condenar cada vez mais tal prática. No Brasil, durante muito tempo, aqueles que cometiam crimes passionais conseguiam absolvição com a tese da legítima defesa da honra, que preconizava que os homicidas assassinavam suas companheiras porque sua honra havia sido ultrajada de tal forma que eles precisavam “lavá-la com sangue”.

Nesta época, havia atenuante para crimes cometidos após injúria ou desonra, e a legítima defesa não era limitada unicamente à proteção da vida, mas compreendia todo e qualquer direito violado. Esta regra prevaleceu até meados do século passado, quando os movimentos feministas se fortificaram cada vez mais e a impunidade começou a diminuir.

O caso que envolveu a morte de Ângela Diniz foi uma forte motivação para os movimentos feministas da época combaterem a violência extrema contra as mulheres, bem como a utilização da figura jurídica da “legítima defesa da honra”, e o slogan “Quem Ama Não Mata” foi difundido após o primeiro julgamento de Doca Street.

A defesa foi exercida por Evandro Lins e Silva, advogado de presos políticos durante a ditadura militar e ligado à área de direitos humanos, responsável por montar a tese de legítima defesa da honra, que costumava ser bem aceita nos tribunais brasileiros na época.

O embasamento do advogado levou o juiz a decidir pela condenação de Doca Street à pena de dois anos de prisão, mas o réu seria beneficiado por um mecanismo chamado sursis, que suspendia o cumprimento da pena.

O crime teve repercussão em todo o país. Doca e Ângela formavam o casal perfeito: dois jovens bonitos, ricos e famosos, que estavam sempre presentes em colunas sociais. Reportagens da época mostram Doca saindo do tribunal ovacionado. Ele era parado nas ruas por pessoas pedindo autógrafos, uma vez que o julgamento o alçou à fama como o homem que matou por amar demais.

Ângela, em contrapartida, foi alvo de uma campanha difamatória e, na sociedade, acabou condenada pela própria morte, já que sua vida sexual foi exposta a tal ponto durante o julgamento que virou a “vagabunda”.

Inicialmente, a paixão surgiu, no Código Penal de 1940, como uma espécie de redução de pena, não excluindo totalmente a prática do crime de homicídio. Assim, o crime passional não ficou mais impune, e passou a ser considerado crime de homicídio privilegiado, ou seja, aquele delito cometido quando o agente está impelido por motivo de relevante valor moral ou social, ou sob o domínio de violenta emoção, tendo, por isso, a regalia da atenuação da pena.

A sociedade evoluiu, a cultura mudou, os costumes se diversificaram, tornando desatualizada a legislação de 1940, que não atendia mais às necessidades sociais, principalmente, das mulheres, que reivindicavam por mudanças mais substanciais.

A luta é todo dia

Na década de 1990, a Lei de Crimes Hediondos foi modificada, em decorrência do movimento gerado pela autora Glória Perez, que teve sua filha, a atriz Daniela Perez, de 22 anos, assassinada por seu colega de novela, com 18 golpes de tesoura, em um matagal no Rio de Janeiro. Com a mudança, o homicídio qualificado passou a integrar o rol de crimes hediondos. Assim, o homicida passional começou a receber tratamento mais severo, o que prevalece até os dias de hoje.

Infelizmente, mesmo com a evolução cultural e o advento de leis mais rígidas, os homicídios passionais estão mais presentes do que se espera e se deseja na sociedade atual. Entretanto, a vertiginosa evolução da posição da mulher na sociedade, acrescida ao desmoronamento de paradigmas patriarcais, desencadearam um processo de nova percepção e aplicabilidade de seus direitos como assevera a Constituição Federal, principalmente no que concerne ao julgamento dos crimes passionais. A sociedade patriarcal, enfim, começa a dar sinais de submersão.

A Constituição Federal de 1988 foi, finalmente, um grande marco na proteção às mulheres. O texto dispõe sobre direitos e obrigações igualitários entre homens e mulheres; protege o mercado de trabalho da mulher; diz que direitos e deveres referentes à sociedade conjugal devem ser exercidos por ambos os sexos, e dispõe ainda sobre outros direitos civis.

No tocante ao crime contra a mulher, a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, é sancionada como símbolo da luta contra a violência doméstica e familiar em face das mulheres. A lei ficou popularmente conhecida pelo nome de Maria da Penha, devido à luta da farmacêutica para ver seu agressor condenado.

Embora a evolução caminhe a passos lentos, o direito  feminino  é uma conquista cada vez mais presente nas leis brasileiras,  e a busca por igualdade ainda não cessou.

A violência contra a mulher tem sido descrita como provavelmente a mais vergonhosa violação dos direitos humanos. É essencial resolver esse problema para a realização do terceiro dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) sobre a igualdade de gênero e o respeito à vida, à integridade física, ao ir e vir e demais direitos fundamentais das mulheres.



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