Carta manifesto de arquitetas e arquitetos urbanistas do Piauí sobre a retomada das atividades da construção civil.
A construção civil compõe uma estrutura organizacional que representa muito das desigualdades estruturais brasileiras históricas, hoje ainda mais expostas na realidade da pandemia. Neste setor, movido por pessoas, existem aqueles que pedem pela volta das atividades, munidos de números em favor da economia, e há também a imensa maioria que sustenta esse setor em seus braços e pernas, e pouco participam dos resultados do sistema econômico aludido. São pedreiros, pintores, mestres de obras, marceneiros, eletricistas, encanadores, serventes, bombeiros etc. Pessoas sobre as quais pesa a pressão por uma futura retomada dos canteiros de obras quando as condições mínimas de proteção ainda nem foram garantidas (se é que podem ser garantidas no contexto de trabalho desse setor). Conhecidas as condições de trabalho na construção civil, em especial do Piauí e em tempos de pandemia, esta é uma carta escrita por profissionais de arquitetura e urbanismo do Piauí em solidariedade aos trabalhadores e trabalhadoras da construção civil.
A inferiorização epistemológica da importância do trabalho dos nossos mestres-operários na cidade potencializa a hierarquia dos papéis na arquitetura. Não soma, não agrega, não contribui. Importa-se nomear quem faz o quê. Quem manda, quem obedece. Quem cria, quem opera. Quem idealiza, quem executa. Quem projeta, quem serve. Não é essa arquitetura que aceitamos para o presente, não é esse o caminho que perseguimos para o futuro. Trabalhamos com ensino, comunidades, coletivos, escritórios, construtoras, lojas de material de construção, lojas de móveis, departamentos de arquitetura de instituições públicas, etc e temos nossas experiências e vivências em canteiros de obras. De obras de grande porte a obras residenciais de pequeno porte, sabemos da importância da construção civil para a economia e para sociedade, e é justamente por isso que reconhecemos a importância de todos que contribuem para sua realização e o porquê de valorizar seus saberes e principalmente as vidas destas pessoas. Deveríamos, então, depois de o mundo estar nos mostrando mais escancaradamente nossas desigualdades, continuar mantendo essas divisões arrogantes e egoístas sobre os indivíduos? Arquitetura não é isto. Esta arquitetura não nos representa.
Prezamos por humanidades. Entendemos de vidas e de números e o que os números nos trazem é que o país totalizou em 11 de junho 39.803 mil mortos pelo COVID-19, sendo no Piauí 8.823 mil casos confirmados e 299 pessoas mortas. Duzentas e noventa e nove vidas perdidas em todas as partes do estado do Piauí, de todas as idades, de todos os gêneros, de todos os segmentos da sociedade. Mas sabemos que a pandemia tem cor e endereço mais frequente. É negra e periférica.
Levantando responsabilidades e deveres, o Código de Ética dos Arquitetos e Urbanistas nos incita a contribuir para a adoção de soluções que garantam a qualidade da construção, o bem-estar e a segurança das pessoas, nos serviços de nossa autoria e responsabilidade. O código muito felizmente cita “pessoas”. Quem faz arquitetura são as pessoas. Separá-las por denominações e títulos não nos leva a lugar nenhum, nos deixa num só lugar: no banco do atraso do canto da sala. Tipificar os papéis que essas pessoas têm num canteiro de obras é classificar importâncias, segregar relações, dividir conversas, guardar experiências em fundos de gavetas.
Então, na cidade progressista-capitalista muitos dos mestres-operários que atuam nas obras do Piauí usam suas bicicletas para o deslocamento casa-trabalho-casa. E agora falamos de outros números: saem das suas casas às 4, 5 horas da manhã; iniciam as atividades no canteiro às 6, 7 horas; e finalizam por volta das 17 horas da tarde para conseguirem alcançar suas moradas antes do anoitecer. Mais um dado numérico: cumprem uma jornada de trabalho, precarizado e desvalorizado, em média de 14 horas diárias. Portanto, cerca de 58,33% do dia de quem trabalha na base da construção civil é vivido fora da sua casa. Dividem o espaço da cidade com uma frota de automóveis que não aceita esse compartilhamento do espaço. Um percurso inglório, numa cidade que possui umas das menores infraestruturas cicloviárias do Brasil e que ainda perdeu 25% do seu espaço ciclável nos últimos anos. Mesmo assim, o trabalhador da construção civil usa dignamente sua bicicleta na sua grande e arriscada travessia pelo espaço urbano. Saibam que a cidade que nós e vocês habitamos é uma criação e construção dos mestres-operários e suas bicicletas.
Desconhecemos que seja atribuição das arquitetas e arquitetos desse país saber e afirmar categoricamente se é o momento de reabertura da construção civil. A Resolução CAU-BR nº 21/2012 nos chama sim atenção e regra que a arquitetura também pode vir a responsabilizar-se pelas atribuições que abrangem a aplicação do Programa de Condições e Meio Ambiente de Trabalho na Indústria da Construção – PCMAT; já a Lei nº 12378/2010, conhecida como lei do CAU, é clara e coloca que “as atividades e atribuições do arquiteto e urbanista consistem em”, dentre outras, na “direção de obras e de serviço técnico, na execução, fiscalização e condução de obra, instalação e serviço técnico”.
Não nos convém imputar aos nossos mestres-operários o enorme peso da responsabilidade sobre a retomada do poder de compra da sociedade. Muita responsabilidade para quem depende do transporte cicloviário para deslocar-se pela “cidade planejada”. Arquitetas e arquitetos também não possuem o direito de convocar em ato intimatório a volta daqueles, na sua esmagadora maioria, sem plano de saúde privado ou sem acesso mínimo ao sistema único de saúde em caso fortuito de contágio pelo vírus pandêmico que assola o mundo. Não, nosso papel é outro, é coletivo, é profissional, é empático. Se há alguma forma das arquitetas e arquitetos desse país ajudarem na retomada do “novo e diferente normal” é levantar diálogos participativos entre todos os profissionais indistintamente.
Devemos questionar a quem se aplica esse novo estilo de vida. Assim como a quarentena – e a própria pandemia – o “novo normal” funciona diferentemente de acordo com a classe social – e não esquecendo do recorte racial – a que se pertence. Oferecemos a possibilidade do novo normal à classe tradicionalmente privilegiada da nossa sociedade e, para garanti-lo, relegamos aos demais as engrenagens para que ele funcione. Do alto do nosso “home office”, nós, profissionais da arquitetura e urbanismo, não podemos sinalizar pela volta do setor da construção civil sem antes nos questionarmos se a cidade em que vivemos oferece condições para que os trabalhadores se desloquem em segurança, se oferece as mínimas condições de isolamento e salubridade dentro das suas próprias residências para que suas famílias e comunidades estejam resguardadas caso hajam contaminações; para não falarmos das questões obviamente necessárias que precisam ser garantidas dentro do ambiente do trabalho.
Aqui trazemos o exemplo da cidade de São Carlos, interior do Estado de São Paulo, na qual 43 de 125 funcionários de uma única construtora testaram positivo para a COVID-19. Os trabalhadores foram testados após apenas três deles apresentarem sintomas, mesmo a empresa informando que seu funcionamento estava garantindo uso das ferramentas para o “novo normal” dentro do canteiro de obra – prática de distanciamento, aferição de temperatura, álcool em gel, máscaras, entrevistas e os demais equipamentos de proteção individual. Estariam as construtoras e demais empresas do setor preparadas para uma contaminação em grande número? Estariam essas aptas à responsabilidade pela vida de seus funcionários? E, a parte mais preocupante, estaria nosso sistema de saúde municipal com condições de atender todos os cidadãos contaminados?
E para o levante desses diálogos, que devem envolver todos os profissionais da construção civil, sem hierarquizar suas funções, devemos nos colocar como agentes modificadores, para além da prestação de serviços. É momento de reconhecer a precarização dos trabalhadores informais da construção civil e suas dificuldades pessoais, bem como reconhecer que a retomada de atividades não proporciona melhoria a estes profissionais, na verdade reforça a desigualdade que foram impostas a eles, quando estes são enviados a arriscarem suas vidas perante a uma pandemia causada por um vírus mortal.
Teresina/PI, 12 de junho de 2020.
Assinam esta carta
Antonio Augusto Teixeira
Áureo Tupinambá
Camila Ferreira
Claudiana Cruz dos Anjos
Elane Coutinho
Isadora Leal da Costa Moreira
Luan Rusvell
Lucas Cézar Santana Ferreira
Marina Lages
Nelson Barbosa
Raquel Carvalho
Vanessa Cordeiro
Foto: Luan Rusvell. Teresina 2019
²https://datastudio.google.com/u/0/reporting/a6dc07e9-4161-4b5a-9f2a-6f9be486e8f9/page/2itOB
³ Informação amplamente divulgada em portais e confirmada pela prefeitura municipal de São Carlos no dia 10 de junho de 2020: https://saocarlosemrede.com.br/trabalhadores-de-construtora-testaram-positivo-para-a-covid-19-em-sao-carlos/
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