Por Sarah F. Santos
A diversidade vencerá o ódio. E as soluções serão pelas vias comunitárias. No dia 27 de outubro, a trajetória de Jade, que conquistou respeito e proteção em um quilombo paraense, ganhou o Prêmio Ana Maria Galano em dos mais importantes eventos científicos do país. O quilombismo travesti de Jade ensina à ciência muito mais do que recebe e aproxima a academia do povo. O Prêmio foi concedido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e homenageia uma pioneira que protagonizou a consolidação da área de imagem nas Ciências Sociais brasileiras.
Lourival Ferreira de Carvalho Neto, advogado popular piauiense, pesquisador e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), foi a ponte entre a comunidade quilombola do Pará que abriga Jade e suas ciências contra-colonais. A produção do ensaio premiado nos inspira a Esperançar. Jade é travesti, consertadeira/puxadeira, técnica que envolve massagens e benzimento, tornou-se personagem fundamental e querida no quilombo onde vive. O pesquisador Lourival, que faz de sua vida científica um modo de virar o mundo cada vez plural, nos concede uma entrevista que você pode ler a seguir.
O ensaio premiado pode ser visto neste link.
Conta para a gente a importância de ganhar este prêmio da Anpocs.
Primeiro, é um reconhecimento à trajetória de Jade, a grande protagonista no ensaio, e à luta que ela encarna como travesti e quilombola. Acho que a premiação é uma forma de visibilizar essa perspectiva plural.
O trabalho reforça o vínculo comunitário do quilombo e a sua capacidade de proteger a diferença.
Afirma Lourival
Como pesquisador, fico extremamente feliz por ter tido a oportunidade de testemunhar a trajetória de Jade e do quilombo e, nesse meu primeiro ensaio fotográfico, receber um prêmio tão valoroso nas Ciências Sociais. É um incentivo necessário para os estudos de raça, gênero e sexualidade, temas muito atacados, com uma particularidade assustadora, nesses tempos neofacistas.
Como você conheceu Jade?
Em 2016, eu já pesquisava sobre sexualidades não normativas no mundo comunitário, só que em áreas rurais no Piauí. Sempre aprendi muito com o processo de pesquisa em conversação, de modo partilhado, em momentos informais do dia a dia. Na parada de ônibus, no barzinho, no intervalo da aula.
Quando você conta uma história, sempre alguém tem outra para dizer. E, nessas conversas em que contava sobre as inquietações da minha pesquisa no mestrado, em 2016, ouvi sobre a história de uma travesti que vivia em um quilombo no Pará, mas sem nenhum dado específico sobre o nome dela ou da comunidade. Apenas a cidade. Anos depois, já no doutorado, lembrei desse caso e passei a buscar informações para chegar até ela, e nos encontramos. E tem sido um grande encontro.
Quem é Jade? Nos fale sobre epistemologia Quilombista que Jade, uma mulher do Pará, ensina.
O grande tema que a trajetória de Jade no quilombo apresenta é a solução comunitária encontrada para o tema da diferença. As evidências do campo demonstram que Jade tem um lugar social dentro da comunidade, que lhe permite trabalhar na pesca, participar da deliberação política no quilombo, ser referência para puxar/consertar de machucados musculares e ósseos, além de ser benzedeira.
Jade é requerida na maioria dos espaços de sociabilidade da região, como festas, jogos de futebol, entre outros. Isso não ocorre sem conflitos e sem contradições, mas isso não a impediu de ocupar o lugar que tem hoje e de ser protegida.
Penso que essa dobradiça questiona a rota da fé que depositamos nas metrópoles, nas grandes cenas urbanas, e desprezamos em outras formas de vida. Posso afirmar que não encontrei a violência da avenida Paulista e de suas lâmpadas homotransfóbicas dentro do quilombo de Jade.
Lourival suas pesquisas são pioneiras e desafiadoras diante de um mundo que ainda experimenta o ranço do conservadorismo e o desrespeito às pluralidades, bem como suas fontes de sabedoria e conhecimento. No mestrado, você estudou o “Vaqueiro Viado”. Você não economiza no uso das expressões que se forjam no chão da vida. Gostaria que você comentasse como é criar ciência decolonial, combativa e desafiadora neste contexto em que a ciência parece lutar para ser crível.
O termo viado é usado de forma depreciativa, como ofensa, no geral. Há perspectivas, como a queer, que têm invertido o sentido dessas expressões negativas como forma de subverter seu peso ofensivo e politizá-las como autoafirmação. Esse desafio tem sido teorizado há um tempo. E é muito importante. É uma possibilidade de, além de reafirmar como identidade, refleti-la no discurso teórico.
No caso do ‘vaqueiro viado’, de 73 anos, é o termo do repertório local. Lembro que esse interlocutor me disse que ‘gay’ chegou lá pela ‘novela das oito da Globo’. Lá, o homem que é passivo na relação sexual com outro homem é viado.
O interessante é que, no final da pesquisa, perguntei a ele como gostaria de ser identificado no estudo: gay, homossexual, bicha, viado, etc. Ele respondeu “diga apenas que sou muito querido aqui”. Essa fala comunica que sua diferença era secundária na descrição de sua vida na comunidade. A provocação do ‘vaqueiro viado’ foi usada mais para fora, em Brasília, onde as pessoas desconfiavam de uma vida respeitosa a uma LGBTIQPA numa comunidade rural no Piauí.
A potência desses estudos está aí. É descobrir formas possíveis de se relacionar com o Outro. É estranhar a ordem política estabelecida, refletir e propor novos rumos. Gênero e sexualidade são temas perseguidos não à toa. Sem saber, eles dizem o caminho certo. O incômodo deles é a nossa bússola para onde devemos seguir na ciência.
Por que fazer ciência com o povo? Você constrói ciência com a Jade? Ou ela é fonte de pesquisa? Como é este processo?
É um processo de reflexão constante. Não dá para ir ao automatismo e ficar afinado com o repertório mais atualizado sobre como tratar seus interlocutores na pesquisa. É preciso ir além dessa superfície.
O estudo é fundamental: desde a literatura especializada no tema e, sobretudo, na audiência do campo onde você se insere. Aprender a observar é um exercício exigente, confesso. E que ainda tenho aprendido. Envolve uma capacidade grande de escuta, de organização sobre o que se quer fazer, sobre o que perguntar e, claro, de se permitir a errar. É entrar na casa de alguém, por exemplo, e compreender a etiqueta básica do espaço e se permitir estar junto. E isso não é automático. É um exercício. Não é fácil.
Porém, é necessário. A boniteza da performance do envolvido do que seria fazer a ciência com o povo não deve se sobrepor ao esforço real e criativo de garantir métodos capazes de, com confiabilidade, produzir conhecimento em conjunto. A ciência, a meu ver, tem o compromisso importante de responder a interpelações da sociedade. E nosso papel como cientista nas humanidades é aprender a captar as perguntas que circulam no espaço-tempo em que nos inserimos.
Com Jade, meu esforço tem sido de mantê-la atualizada de tudo o que ocorre. Do que se trata o estudo. Devolvo, por exemplo, todas as fotografias que fiz nas visitas à comunidade. Foram cerca de mil fotos devolvidas.
Antes de sair na ANPOCS, fizemos uma exposição numa rede de pesca, ornada com girassóis, no Barracão do quilombo. Foi um dia muito bonito! Deliberamos juntos sobre o uso dos materiais fotográficos e entrevistas, sobre as pessoas com quem eu iria conversar, e fomos pactuando isso ao longo do processo. Até hoje. Meu compromisso é garantir um estudo ético e comprometido com o que testemunhei ao seu lado no quilombo, deixando esse registro com ela dentro da ciência.
Como foi o processo de produção deste ensaio premiado? Como é realizar um mergulho no cotidiano das pessoas simples que sustentam o país nas costas? É possível ver nas fotografias que Jade tem uma série de saberes, diria, ciências, o que este diálogo com Jade permite dizer ao mundo?
Fiquei muito feliz com a premiação. Como disse, foi o meu primeiro ensaio fotográfico. Não tinha intenção de submeter o material fotográfico, que era apenas parte dos registros em campo e uma forma material de, mais na frente, devolver à Jade e ao quilombo os registros do processo. Não tenho câmera profissional. As imagens foram de um smartphone comum.
Não imaginava que, com essa simplicidade instrumental, pudéssemos ganhar um prêmio tão precioso nas Ciências Sociais. Um amigo meu, Lucas Coelho, também premiado em 2020 pela Anpocs, foi fundamental nesse encorajamento. Ele me disse algo fundamental: “Lourival, câmera boa é a que você tem no momento!”. E me incentivou a me inscreve. E assim fiz. Fomos aceitos. E, agora, premiados. É gratificante devolver isso à Jade, ao quilombo e às LGBTQIA em geral.
Para registrar o cotidiano de alguém, é necessário pedir, ainda que tacitamente, a autorização da pessoa, do espaço, do momento. É preciso essa habilidade para captar os contextos. E isso é um aprendizado. O registro com Jade foi isso também. Eram momentos que, para ela, eram comuns, como ir pescar pela manhã ou chegar da pesca com 47kg de peixe. Mas havia tanto significado em suas expressões, em seus momentos, sobretudo quando conectamos com a vida fora dali.
Aos 55 anos, Jade já superou a expectativa de 35 anos estimada para uma travesti no Brasil. Seus saberes têm um valor fundamental para a continuidade daquele espaço. Por isso, ela é importante. Não falo de Jade como indivíduo desamparado, pois ela é o quilombo e vice-versa. Sua história nos ensina que é possível aprender a tratar sobre a diferença a partir de outros chãos, de outros rios.
Durante a Anpocs, você recebeu ataques na internet pelo teor do seu trabalho, por ser trazer tanto a temática de gênero visto que Jade é uma mulher trans, mas também, me parece que tem um teor racista, pois escandaliza a sociedade ver as mulheres negras no centro do palco e no lugar de destaque na produção da ciência. Você gostaria de comentar sobre este momento?
A página virtual, ligada à direita, criticava o governo de Bolsonaro por supostamente financiar o evento da Anpocs que iria apresentar a exposição “Quilombismo Travesti” e uma palestra crítica ao governo. E ironizava que, com isso, o próprio presidente facilitava a volta do PT ao poder. O print trazia o meu nome completo e o título do trabalho. Não cheguei a acompanhar os comentários e a repercussão parece ter sido pequena.
Contudo, me impressiona o nível desse patrulhamento miliciano que esses grupos fazem às nossas pesquisas e as mentiras que disseminam. É dever do Estado financiar a ciência e garantir o sustento da pesquisa. Há editais públicos para isso. Não é discricionário a nenhum governo – ou, pelo menos, não deveria ser – interferir na liberdade de pensamento e julgar, moralmente, a cientificidade de certos temas e eventos.
A mentira é corrosiva. Sabemos que se trata de um método que, infelizmente, ainda opera forma corrente.
E, sim, há racismo nessas manifestações. Há transfobia. E há não apenas o ódio, que é limitado para explicar como esses grupos conseguiram ocupar os espaços de poder institucional e social, existe a instrumentalidade lucrativa e o desejo pela arbitragem de quem é digno de viver, de morrer e, inclusive, de ser considerado gente.
Nossa equipe tentou contato com Jade, mas não conseguiu. No entanto, acreditamos que este encontro próspero com o OcorreDiário ainda poderá acontecer. Um abraço, Jade.
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