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Religiões de matriz africana e tradições indígenas são as que crescem proporcionalmente no Piauí

Reportagem: Luan Matheus Santana

Entre 2010 e 2022,  o quantitativo de pessoas de 10 anos ou mais que se autodeclarou adepto às regiões da umbanda ou candomblé no Piauí cresceu 662%. Nesse mesmo período, as pessoas que se declararam ligadas à regiões ligadas à tradições indígenas cresceram 505%. São aumentos expressivos, que evidenciam uma transformação silenciosa, mas significativa no mapa da fé no Piauí, mesmo diante de um cenário marcado por violações, preconceito e intolerância religiosa.

Em números absolutos, o número de pessoas que se declararam seguidoras da Umbanda e do Candomblé saltou de 1.604 para 12.237. Já os que professam tradições indígenas passaram de apenas 20 para 121 pessoas. Embora esses grupos ainda representem uma parcela pequena do total da população, o avanço em termos proporcionais é expressivo — e carregado de significado político, cultural e ancestral.

Para a sacerdotisa de umbanda, Mãe Maria Lúcia de Iansã, esse crescimento reflete um processo de retomada e afirmação identitária. São números que marcam um novo cenário, mas que para ser entendido precisa ser observado com uma lente histórica. “A gente tem que fazer um panorama histórico: uma das coisas que os dominadores atacaram foi nossa religião. Disseram que era preciso nos humanizar — como se não fôssemos humanos — e impuseram a religião deles pra isso. Só que nós, povo africano, trabalhamos com a essência ancestral que está dentro da gente. Ela se manifesta, quer eles queiram ou não. E é muito mais forte que qualquer imposição.”

Mãe Maria Lúcia lembra que o crescimento apontado pelo IBGE revela mais coragem para se afirmar do que necessariamente o surgimento de novos praticantes. “Nem falo do IBGE, porque essas religiões sempre foram muito potentes nas comunidades. Só que as pessoas tinham medo de dizer. As práticas já estavam lá: com a rezadeira, a parteira, a mulher que aprende na oralidade. A minha avó era do catolicismo popular, mas tinha um pé na umbanda porque sabia dessas práticas”, afirma.

Mãe Maria Lúcia de Iansã, sacerdotisa de umbanda e liderança comunitária da Boa Esperança. Foto reprodução

De dentro da igreja católica, mas com um olhar inter-religioso, o Padre Ladislau Silva, assistente eclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) do Piauí, analisa esse crescimento como um sinal de libertação do povo oprimido, “um grito de liberdade”, disse ele, ressaltando que essas religiões apresentam relações complexas, que também são atravessadas e marcadas pelo sincretismo religioso. “Nenhum ser humano se realiza sob um jugo. Desde o século XVI, o povo escravizado, instrumento de lucro para a Igreja e sociedade, só resistiu na dor. O poder político e religioso foram tiranos. O chamado cristianismo aliado ao poder político opressor, não tinha nada de Cristianismo. Pessoas destas matrizes africanas e indígenas cultivavam valores profundamente cristãos, porém eram endemoniadas por um tipo de falso cristianismo, que era impositor, manipulador, malvado”, afirmou o Padre. 

Celebração de missa por Padre Ladislau Silva. Foto reprodução internet

Uma nova geração nos terreiros

Apesar de ainda pagar “um preço muito caro” por ocupar esse espaço, Mãe Maria Lúcia diz que há um movimento claro de afirmação entre os jovens. “Nossos terreiros têm atraído muito a juventude. Isso ajuda muito. O que atrai é que a gente não impõe. Não chamamos ninguém pro terreiro, quem alinha a corrente são os guias. Mas existe disciplina. Existe verdade. E as pessoas sentem isso”, conta.

Segundo ela, o que assusta e, ao mesmo tempo, encanta a juventude é justamente a potência da ancestralidade. “Você não vai ver uma Iansã passiva. Vai ver ela na luta, na guerra, usando sua sexualidade. Isso assusta as regiões europeias.. O fato de vir muito forte essa força da natureza faz muita gente se identificar”, finaliza.

Foto: Mãe Maria Lúcia de Iansã

O paradoxo católico

Enquanto religiões antes marginalizadas crescem, o catolicismo apostólico romano, que ainda é majoritário no estado, foi a única religião a apresentar queda no número de seguidores. Em 2010, 85,25% dos piauienses com 10 anos ou mais se declararam católicos. Em 2022, essa proporção caiu para 77,43% — uma redução de mais de 24 mil pessoas. 

A retração do catolicismo ocorre em um contexto mais amplo de pluralização religiosa e de crise das instituições tradicionais. As novas gerações buscam espiritualidades mais conectadas com sua realidade cotidiana, suas raízes étnico-raciais e suas experiências pessoais no mundo. Ao mesmo tempo, a ampliação do debate público sobre liberdade religiosa contribuiu para que mais pessoas se sentissem seguras em declarar sua fé, mesmo diante do preconceito.

“A sociedade piauiense nasceu de famílias de brancos, exploradores da mão de obra dos indígenas e negros. Eram bem católicos. Usavam a fé para para o lucrar em vários sentidos A sociedade piquenique é hipócrita, como a de todo Brasil. Sendo o Piauí, o estado mais católico do Brasil, ele não respeita tanto a diversidade religiosa. Quer ainda o controle de tudo, bens, religião, cultura, etc.”, afirma Padre Ladislau Silva. 

“A intolerância religiosa é um sinal forte de um cristianismo falso”, afirma Padre Ladislau Silva

Um caso emblemático quando se fala de racismo e intolerância religiosa em Teresina e no Piauí é da nova estátua de Iemanjá — agora representada como uma mulher negra — às margens do Rio Poty, na  Avenida Marechal Castelo Branco, em Teresina. A nova estátua foi inaugurada há pouco mais de um ano e  tornou-se alvo de ataques racistas e intolerância religiosa nas redes sociais

A nova imagem, criada pelo artista Jean Pimentel, substitui o antigo monumento de 1980 que representava Iemanjá com traços brancos e referência à Nossa Senhora dos Navegantes — um símbolo do sincretismo religioso. Pela primeira vez, a divindade é retratada com traços negros, como forma de reafirmação das origens afro-brasileiras do culto.

Para o Padre Ladislau, o cristianismo não pode esconder sua essência em guetos sagrados. “O cristianismo real só acontece quando o amor passa da teoria para a prática. Quando a pessoa é valorizada acima da religião, sexo, condições sociais, etc.”, afirma. Tudo o que foge a isso, segundo o religioso, não é cristianismo e, por isso, geram intolerância. 

É importante lembrar: intolerância religiosa é crime no Brasil, com pena prevista de 2 a 5 anos para quem impedir, atacar ou desrespeitar práticas religiosas. Respeitar todas as crenças é não apenas um princípio de convivência, mas um dever constitucional.

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