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Rendeiras: cenas cotidianas trançadas nos fios da vida

O fio da linha cruza, se entrelaça, passa de lá pra cá, de cá pra ali, e assim vai se transformando em uma flor, um pássaro, umas conchas, uns desenhos criativos e bonitos, muito bonitos. Essa é a arte e a magia das rendeiras de bilro: transformar uma linha num desenho que encanta pelo fino traço. 

Foi o que o comunicador popular Samuel Santos da Silva descobriu ao entrevistar a rendeira Ednalva Maria Alves Silva, associada da Associação das Rendeiras da Ilha Grande do Piauí. Samuel, 22,  não pensou duas vezes em aceitar o convite para participar do projeto Culturando. “Com ele tivemos a oportunidade de deixar vivas algumas das raízes e tradições da Ilha, como a renda de Bilro das nossas rendeiras que já são famosas”, diz Samuel com orgulho que “nosso lugar, nossas raízes e nossa cultura são nosso maior tesouro”.

Samuel Santos, conta a história das rendeiras, riqueza imaterial de Ilha Grande

O Projeto Culturando nos Morros da Mariana é desenvolvido com o apoio do Sistema de Incentivo Estadual à Cultura (SIEC) da Secretaria de Estado de Cultura do Piauí, patrocínio da Equatorial Energia e parceria da Colônia de Pescadores Z 7. Para saber mais do projeto clique aqui.

Rendeiras: “a tecnologia é a nossa inteligência”

Samuel Santos da Silva.

“Antigamente tudo era mais difícil. Como as mulheres trabalhavam em casa, não tinham espaço para fazer renda, então as rendeiras mais velhas falaram que era melhor fazer um lugar pras rendeiras se juntarem e facilitar na hora de produzir e vender para os turistas”.

Conta a rendeira Ednalva

Foi com o pensamento no passado que a rendeira Ednalva Maria Alves Silva começou a responder as perguntas que fiz durante nossa entrevista.

A renda de Bilro do Morros da Mariana é muito famosa. As rendeiras já ganharam muitos prêmios, entre eles o “Top 100 de Artesanato do Sebrae Nacional”. Também vestiram muitas celebridades, como a primeira-dama de um ex-presidente da República e artistas de novelas. 

A arte de rendar com a linha presa a um pauzinho de madeira e amarrada no em um coco de tucum é desafiadora. A rapidez das mãos para lançar o bilro de um lado a outro é impressionante. Os olhos nem conseguem acompanhar de tão rápido que é. O trabalho exige paciência e dedicação.

Na entrevista que fiz com dona Ednalva, ela conta um pouco da história da arte da renda de bilro e sobre a organização que tiveram para poder aumentar as vendas.

A entrevistada conta que em 2002 foi fundada a Casa das Rendeiras. Conta também que “as meninas mais novas viam suas mães e avós fazendo renda e então, tomavam gosto pela coisa” e, com isso, preservavam o conhecimento vivo. Tendo como material uma almofada e um bico chamado “olho de pombo”, elas começavam seu trabalho de trançar as linhas. Como antigamente não tinha ‘xerox’ (para copiar os desenhos do padrão das rendas), tudo tinha que ser produzido na mais perfeita capacidade artística, “a inteligência era a nossa tecnologia”, diz dona Ednalva.

Com o trabalho bastante conhecido até mesmo fora do município de Ilha Grande, as rendeiras se entristecem com o pouco interesse da população em conhecer sua arte. Gostariam de ser mais visitadas pelas pessoas da Ilha para que uma cultura tão bonita e rica não seja extinta com o passar dos anos. Acham que seria importante “a prefeitura investir em cursos de renda de Bilro para trazer as jovens para mais perto de suas raízes”.

Rendeira Ednalva trançando histórias e cotidianos

Mas, vamos deixar que dona Ednalva explique para nós toda essa história…

Samuel: Como tudo começou, dona Ednalva? Conte pra gente sobre a associação e o desejo de montar um lugar para todas as rendeiras se juntarem para fazer seu trabalho?

Ednalva: Na verdade, já existia a renda. Tinha as rendas de bico e renda. Eu lembro que conheci o trabalho através da minha avó trabalhando em casa. E tinha uma mulher que vinha de Parnaíba comprar as rendas e levava as rendas da vovó para vender lá. Ela andava de casa em casa comprando as rendas das rendeiras. Um dia, as rendeiras mais antigas resolveram que seria melhor fazer uma casa para poder juntar as rendeiras. Para quando os turistas viessem de fora, já saber onde procurar. Elas acharam a ideia muito boa e foram atrás de apoio. Conseguiram e arrumaram essa casa onde é a Casa das Rendeiras até hoje. E também essas pessoas ajudaram a formar a associação, em 2002. E algumas rendeiras foram trabalhar lá e até hoje a gente está trabalhando. Eu já estou há 19 anos na associação das rendeiras.

No começo, a gente começou a fazer vestidos, blusas, aplicações. A Socorro, nossa presidente, investiu muito e, hoje, temos orgulho de nós mesmas, rendeiras, por conta que nosso trabalho está no Brasil e no mundo inteiro.

Lembra orgulhosa, Ednalva

São gerações de Rendeiras e o trançado não para

Samuel: Quando uma rendeira começa a ser rendeira e desde quando a senhora faz rendas?

Ednalva: Eu lembro que eu tinha 7 anos e já via minha avó fazer renda. Eu fui criada pela minha avó, mas chamava ela de mãe.

Eu via minha avó fazendo renda e tinha curiosidade, eu sempre ajudava ela. Aí, chegou um dia que eu falei ‘mãe, eu quero aprender’. Aí, ela me colocou lá e falou, ‘pois, tu vais aprender a trocar’. Me deu dois pares de bilro, fez uma almofada pequena e eu comecei a mexer lá. Olhava pra ela, mas não entendia nada. Aí ela começou… Colocou um bico, o outro bico… que o primeiro bico que a gente sempre começava era o olho de pombo. Porque, antigamente, não tinha xerox né? Era bem difícil, a gente só via aqueles buraquinhos pequenininhos. Mas assim mesmo, eu aprendi, minha mãe – que era minha avó – ela era um pouco rígida e eu tinha medo. Ela dizia que se eu não aprendesse, ela ia tacar o bilro na minha cabeça. Eu ficava com um pouco de medo, né? E eu já pedia para as meninas maiores: ‘me ensina aqui, que a minha mãe falou que se eu não aprender…’. 

Aí, fiquei adolescente, parei um pouco. Fui pra casa de uma tia minha, a nora dela fazia renda. E logo me deu um trabalho pra fazer. Com 19 anos eu casei e fui pra casa da minha sogra. Quando chego lá, minha sogra era rendeira. Deu tudo certo. Daí por diante eu não parei mais. Passei dois anos na casa da minha sogra e fui morar ao lado da Casa das Rendeiras. Quando cheguei lá comecei a me entrosar com as mulheres rendeiras e elas me convidaram, porque sabiam que eu sabia fazer renda. Eu já tinha duas crianças e pra eu poder ir rendar, a maiorzinha olhava a outra de dois anos. Nesses 19 anos que eu trabalho na associação já dei curso aqui e já fui pra fora ensinar fazer renda de bilro.

Casa das Rendeiras em Ilha Grande. Acesse a página da casa

Samuel: Eu queria saber se no dia a dia de trabalho de vocês, a tecnologia está presente na hora de fazer a renda. Se na hora de montar um desenho para colocar na renda, vocês usam tecnologia.

Ednalva: Na verdade, a presidente da associação, a Socorro Reis Galeno, é uma pessoa muito inteligente. Nós rendeiras tiramos o chapéu pra ela quando ela dá uma ideia. Quando alguém pede: ‘eu quero uma blusa com essa aplicação’, ela pega o desenho e vê se dá pra fazer. Então ela forma o desenho, manda a foto pra pessoa e a pessoa diz se gostou. Então a gente faz. A tecnologia é a inteligência dela e nossa.

A tecnologia é a inteligência dela e nossa.

Ednalva

Samuel: E se for um homem, pode se associar? Ou vocês só aceitam mulheres rendeiras?

Ednalva: Na verdade, é por que desde quando a gente entendeu e iniciou a renda, nunca vimos homem trabalhar. Teve só um homem na Ilha Grande que eu vi fazendo renda, mas agora até deixou porque se tornou enfermeiro. Ele não é mais um homem rendeiro. Veio uma vez dois homens de São Paulo para aprender a fazer renda, eles eram bem inteligentes, até. Eu fui uma que ensinei e gostei de ensinar eles. Aprenderam rapidão, pegaram bem. Mas, foi passageiro, só três dias que eles ficaram lá na associação, mas aprenderam os primeiros pontos.

Samuel: Mesmo o trabalho de rendar sendo um trabalho feminino, eu queria saber se a senhora já passou por alguma dificuldade por ser mulher. Alguém desmerecendo seu trabalho.

Ednalva: Olha, na verdade nós sempre falamos que algumas pessoas não entram lá na associação pra saber como é o nosso trabalho. Não sei se é por sermos mulheres ou por quê. Mas, elas não vêm nos ver. Gostaria muito que as professoras, as outras pessoas, entrassem pra nos conhecer, nos convidassem pra mostrar o trabalho lá na escola. Elas vêm quando tem atividade de cultura na escola, trazem as crianças para poder fazer perguntas, aí a gente conversa. Mas, ficamos tristes que não vêm mais vezes. Eu queria muito que as pessoas da Ilha Grande viessem porque é a cultura daqui.

Samuel. Com toda tecnologia que existe hoje em dia, que leva o interesse das pessoas, dos jovens para outras coisas, qual o desejo de vocês para a nova geração de rendeiras?

Ednalva: Na verdade, pra geração de novas rendeiras, eu queria que tivesse algum projeto que trouxesse os jovens pra rendar, pra trabalhar, aprender. Porque eu mesma, eu tenho duas filhas, eu ensinei pra elas na minha idade, 7 anos, eu já ensinei. Até hoje elas fazem quando estão em casa. Cada uma tem sua almofada e quando têm um tempo, à noite, elas pegam a almofada e fazem. Quando tem uma rendeira dentro de casa é mais fácil ensinar a criança. Mas pra gente colocar esses jovens, essas crianças de 11, 12 anos aprender a fazer a renda, tem que ter um curso, alguém que ajude.

O recado final da Dona Ednalva é que as mulheres vão continuar a rendar no Morros da Mariana e somos todos convidados a aprender a fazer renda de bilro com elas.

Quer conhecer mais da Casa das Rendeiras? Acesse a página: https://www.facebook.com/casadasrendeiras.pi/

Mariana, logo do Projeto Culturando nos Morros da Mariana

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