Sentia que o sapato era pequeno demais pro meu pé. Cortava meus calcanhares onde as meias xadrez não alcançavam. Era um tênis bonito e delicado com recortes branco, laranja, rosa e roxo. Não sei bem o motivo que insisto num número que não me cabe. Andar por aí não precisa ser desconfortável. Sinto a tentação de tirar o tênis, mas sigo em frente determinadamente masoquista e civilizada. A verdade é que estou sozinha, não importa se estou ou não com alguém. É como se eu não fizesse parte onde quer que fosse. Casulo que costumo viver há muito tempo e é nele que eu limito minha expressão muitas vezes a apenas estar desenhando.
Durante muito tempo eu desenho figuras femininas com afinco. Eventualmente o corpo masculino entra. Esses dias ele retornou. Acho que veio pra ficar. Tudo isso atravessa meu pensamento quando saio de casa a espera do precário transporte público. Uma amiga querida, vizinha de bairro, vai passando. Fico alguns segundos feliz. Ela pergunta se eu vou pro arraial, compreendendo. Aceno um mudo sim, com a cabeça. Gosto dela por não ser intimada a explicar nada se não quiser.
Bom, finalmente o ônibus chega. Temo que a nota de dez reais que deram pro meu pai seja falsa, alguem deve ter percebido que ele já tá idoso e com visão fraca e vem se aproveitando disso. Olho apreensiva pro cobrador ao entregar o dinheiro. Pro meu alívio, ele guarda automaticamente a quantia e me dá o troco sem pestanejar… diferente dos comerciantes do bairro, que sempre olham pra mim e conferem.
No trajeto do ônibus, toca uma música bonita do Paralamas do Sucesso. A vida sem freio me arrasta… você sabe essa né?! Pois é, tava tocando essa. Olho a zona norte mais uma vez do mesmo ângulo nos últimos 34 anos. Mas é a primeira vez que vou a um evento LGBTQIA+ sem combinar com ninguém. Claro que não falei aonde ia em casa também. Eu fico ansiosa, apenas avisei uma colega de Insta que queria trocar uma ideia, mas ela só chegaria mais tarde.
Eu desço na cansada Frei Serafim, onde uma grande bandeira se estende pelo canteiro principal em frente ao antigo Bom Preço, interrompendo o cotidiano dos teresinenses. Como não avista o Hiperbolar? Primeiro rosto conhecido. Ele estava com chapéu e sobretudo de pelúcia rosa, salvo engano. Um short da mesma cor. Não o cumprimento de imediato, mas já fico feliz por que ele transpira liberdade. Tento apenas sentar. Estou um pouco anêmica e com dor na garganta, meu fôlego acabando rapidamente não era mais o mesmo de 10, 15 anos atrás, andando pra cima e pra baixo no centro com os amigos do CEFET/IFPI, na companhia da clássica vodka com Fanta laranja, vinho barato ou nos dias bons, mangueira.
Avisto vários grupos de estudantes secundáristas e a saudade é imediata. Sento um pouquinho no banco laranja como há muito tempo não fazia… paro pra ver os rostos. Não conheço ninguém. Depois de alguns minutos, tomo uma pequena coragem de cumprimentar o Richard (Hiperbolar). Ele me recebe com o sorriso, pergunta se eu vinha lá da concentração. Já meio sem assunto, sem nem começar, aviso evasivamente que nem sabia onde era a concentração e rapidamente me livro da interação humana com gente pouco íntima, e saio em direção a Praça da Liberdade um tanto aliviada.
Quando chego na altura do Convento, também não avisto ninguém conhecido. Fico um pouco ansiosa mas resolvo sentar. Alguém com olhar doce me pede pra tirar uma foto. Faço meio sem graça, faz tempo que não fotógrafo gente. Mas a pessoa é tão gentil que fao um esforço pra enquadrar minimamente bem. Fico por lá um tempo e tem muito repórter, militantes de partido e representantes institucionais da sociedade civil. Fico com medo de aparecer em alguma tomada, por isso não me demoro ali. Subo de volta a grande bandeira perto do cruzamento.
Algumas pessoas tiram foto umas das outras: casais, amigos, colegas. Não sei, não conheço ninguém ali. Isso me deixa nervosa, como já disse. Fico impaciente de esperar. Não sem uma relutância, assumo que quero tirar uma foto também…mas fico sem coragem de pedir pra alguém tirar, como acabaram de pedir pra mim. Faço uma selfie. A melhor amiga da solidão, como diz o Marcelo Evelin. Resolvo tirar foto da mesa decorada… já tinha esse desenho que fiz de manhãzinha, na lagoa perto de onde moro.
Depois aviso os pixos e acho que com a grande bandeira tudo fica mais lindo, até os ônibus cansados e verde velho. Sinto o cansaço me abater depois disso. Meu pé em carne viva reclama enquanto faço o caminho de volta. Quando piso no ônibus, na cadeira de um lugar só, as lágrimas caem automaticamente. Deve ser a milésima vez que perco a dignidade nesse Duque de Caxias. Enquanto vou vendo o sol se pôr nos morros do Água Mineral, a música Invisível do WG invade minha mente. Essa você não deve conhecer muito… ela diz assim:
“… todo mundo calado busão lotado vindo do trabalho um monte favelado. Olhando os prédios, as luz e os carros, não tão ligado que tão sendo enganado. E as quebrada cada vez mais distante, longe na linha do horizonte. Invisível pros pilantra governantes, cidadão, cidadão da rotina sufocante”
Vou deixando a música passar na cabeça enquanto as lágrimas secam sem esforço. Eu tinha encontrado alguém mais cedo de quem guardava mágoas e vai tudo se juntando a várias coisas sem nome. Não sei bem porque insisto num número que não me cabe. Por isso, ao descer nas lagoas… assim que um noia termina de me dar boa noite, tiro o tenis e vou sentindo o asfalto por debaixo das meias xadrez.
Ludmila Nascy é jornalista e artista da zona norte de Teresina.
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