“Não existe atendimento de saúde mental destinado à população indígena. Não tem. E eu não me sinto bem com isso, porque embora tenha nosso histórico e cadastro, quando a gente inicia um tratamento, não somos respeitados como povos indígenas. Eles não entendem que existem questões diferentes, que somos diferentes, que pensamos diferente, que temos uma espiritualidade diferente. Isso é completamente ignorado pelos profissionais. Pra mim é muito difícil, muitas vezes eu paro o tratamento e retorno em crise, porque não sou respeitada e acho que não vou ter retorno”, desabafa Telma Tremembé, indígena do Povo Tremembé do Ceará.
Telma teve amnésia no ano de 2014 e logo no ano seguinte iniciou o tratamento no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, do município de Aquiraz, litoral do Ceará. Nesse processo, ela também reencontrou seu povo e sua ancestralidade, passando a morar na aldeia. Nos últimos oito anos Telma tem se dedicado a escrever, estudar e produzir. Ela é autora de dois livros, onde ela refaz seus caminhos e das que vieram antes. Também é especialista em Patrimônio Cultural, Museologia, Saúde Mental Indígena e Mediação de Leitura.
“Olha só o tanto que eu consegui construir. Mas é como se as pessoas com problemas de saúde mental não tivessem direito de seguir sua vida. Eu tenho um problema, eu vou cuidar dele, cuidar do meu bem viver. Eu decidi não desistir, eu tenho problemas, falhas de memórias, mas não vou parar. Eu vou continuar”, diz Telma.
O sentimento de Telma é partilhado por muitos. A falta de uma melhor preparação dos profissionais (sejam psicólogos, psiquiatras ou mesmo assistentes sociais) é a principal queixa, sobretudo, no que diz respeito à espiritualidade indígena e as interações com a natureza, uso de plantas medicinais, etc. “Algumas questões não são compreendidas, não é satisfatório, porque não tem esse entendimento. Eles precisam nos entender mais ou ter uma equipe na própria aldeia, porque não existe essa preparação para atendimento indígena, pelo menos aqui em Aquiraz não existe”, afirma.
Flávia Marajoara é uma mulher indígena, médica e atua diretamente no contexto dos povos indígenas. Atualmente é coordenadora de Grupo de Trabalho em Saúde da Associação Wyka Kwara, instituição que reúne indígenas em contextos urbanos de todo o país. Para ela, é importante entender inicialmente que, ao falarmos da saúde mental no contexto dos povos indígenas, os conceitos são bem diferentes do que a sociedade não indígena está acostumada.
“O primeiro é a pluralidade de povos que existem no Brasil e no mundo. Se pensarmos só no Brasil, são mais de 300 povos, vivendo em diferentes contextos (urbano x rural, em terras demarcadas x periferias, etc). Isso já nos leva a pensar que essa pluralidade também se aplica às múltiplas questões que podem afetar a saúde mental. O segundo conceito é o do “Bem viver”, que é comum a muitos povos e poderia ser considerado um equivalente ao que a sociedade não indígena chama de “saúde mental”. O bem viver é mais que apenas sentir-se “bem” ou “feliz”, é como um pensamento coletivo de que tanto eu quanto as pessoas do meu povo, quanto todos os povos indígenas estão conseguindo viver de acordo com a sua cultura, com segurança alimentar, com terras demarcadas e sem ameaças constantes de invasão, assassinatos ou doenças”, afirma.
Nesse sentido, ela explica que falar em saúde mental no contexto dos povos indígenas é pensar em abordagens totalmente diferentes da psicologia e psiquiatria convencional. Para isso, é preciso muito estudo e principalmente ouvir o que os povos indígenas têm a dizer.
E quanto aos profissionais da saúde mental, o que fazer?
Para a Dra. Flávia Marajoara, não podemos simplesmente pegar conceitos pré-prontos e aplicar a um povo ou mesmo a um indivíduo indígena. Ela explica que esse cenário é bem complexo e o profissional muitas vezes não saberá como ajudar, mas ao escutar e se mostrar como um aliado na luta pelos direitos já é uma grande ajuda na busca do Bem viver.
“Creio que a principal diferença que temos é que, quando nos propomos a abordar o tema saúde mental com um povo, um grupo ou uma pessoa indígena, devemos sempre ouvir primeiro. Isso pode tomar bastante tempo, mas é fundamental entender qual o contexto em que aquela pessoa ou grupo de pessoas se encontra: é um povo que sofre com a ameaça constante de invasão de suas terras? É um povo que luta para que suas terras sejam demarcadas? É um indígena em contexto urbano que tem a sensação de não pertencimento? Ou talvez uma pessoa que está se reconectando com o seu povo?”, afirma.
Telma reforça a necessidade da escuta e do conhecimento. Para ela, falta humanização. “Porque eles tratam as pessoas como se tudo tivesse o mesmo pensamento, a mesma condição. E não é. Cada pessoa tem sua especificidade, é diferente. Eu acredito que uma qualificação em torno da questão indígena para esses profissionais é muito importante, para que eles conheçam nosso modo de vida e de pensar. Mas também é importante ter atendimentos dentro das aldeias, com profissionais indígenas”, afirma.
Autoatenção e estratégias comunitárias, pertencimento, identidade, proteção, cuidados e tradições orais como caminhos para a saúde mental nos contextos indígenas
A luta indígena tem como base fundamental o coletivo, a união. Então as trocas, sejam elas de sementes, de pinturas, de afeto ou de conhecimento contribuem para fortalecer o pertencimento e a identidade indígena. “E isso é fundamental quando se trata de melhorar a saúde mental”, acredita Dra. Flávia.
Telma relata que, apesar das dificuldades de atendimento e também do entendimentos dos profissionais quanto a sua espiritualidade, ela busca associar os sabedores do seu povo com os atendimentos oferecidos pelos sistemas de saúde. “Nós temos direito a esse atendimento, é um direito nosso, mas precisamos ser respeitados nos nossos modos de vida também”, afirma.
Assim, ela busca suporte no Pajé do seu povo, mas também das plantas medicinais e soma isso ao tratamento convencional. Isso reforça sua ancestralidade e identidade, a fortalece enquanto mulher inidgena e é importante suporte de autocuidado e cuidado coletivo.
Os impactos da Pandemia na saúde mental indígena
A pandemia moveu impactos distintos em cenários e contextos distintos, com os povos indígenas não foi diferente. Muitos povos, que vivem em áreas rurais ou remotas, sofreram e têm sofrido bastante com a invasão dos territórios por grileiros e garimpeiros, que levam a COVID (além de outros males), e com a distância dos serviços de saúde.
Muitos anciões foram levados por essa doença, o que abalou muito as aldeias, uma vez que eles são fundamentais para a manutenção da cultura indíegna; são os guardiões dos conhecimentos ancestrais. Essas perdas com certeza causaram muita tristeza em todos os povos.
“Quando pensamos nos indígenas em contexto urbano, creio que a sensação de não pertencimento foi exacerbada pela pandemia, pois ficou muito mais difícil fazer visitas às aldeias e isso é fundamental para manter o vínculo com o povo e com a natureza. Isolar-se num ambiente urbano costuma ser muito mais difícil para quem tem essa conexão com a terra”, afirma a Dra. Flavia.
De modo geral, esse isolamento impactou indígenas do país inteiro devido ao cancelamento de eventos com o Acampamento Terra Livre, onde há um grande encontro de povos, ocorrem trocas de sementes, de conhecimento e principalmente de afetos. Esse ano, após o avanço da vacinação, o acampamento ocorreu, mas de forma diferente. No final de agosto (antes ocorria em abril) e para lutar contra o Marco Temporal (votação que ocorria no STF na época, mas foi mais uma vez adiada).
Texto: Luan Matheus Santana
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